in

Os perigos da partidocracia

Como se não tivesse tanta coisa com que se preocupar, o governo Temer arrumou mais um problema. Um presidente da Câmara – eleito com parte dos votos de sua base – que está querendo passar de pato a ganso. E que vai se transformando num foco de instabilidade capaz de ameaçar a transição democrática pós-PT. Ao querer dar uma de malandro, negociando simultaneamente com a situação e a oposição para poder ter sempre um trunfo para chantagear o governo, Rodrigo Maia vem saindo muito pior do que a encomenda. Suas iniciativas recentes de aprovar a proposta de lista fechada na reforma política (e, pior, de entregar a relatoria da reforma política ao conhecido trapaceiro Vicente Cândido, do PT) e a proposta de lei que supostamente corrigiria o abuso de autoridade (uma Espada de Dâmocles sobre a cabeça dos agentes públicos da Lava Jato) são potencialmente explosivas. Se essas propostas, por um azar, forem aprovadas, poderão retirar parte do minguado apoio social que o governo Temer ainda tem.

A questão da lei de abuso de autoridade (o projeto de lei 280/2016) já foi brevemente comentada em um artigo de julho de 2016, na época em que a dupla Renan-Jucá queria empurrá-la oportunisticamente goela abaixo da nação. Vamos tratar agora, em termos mais conceituais, dos perigos da aprovação do voto em lista fechada. O perigo é degenerar a democracia numa espécie de partidocracia, transformando a política num condomínio de agentes privados – um verdadeiro oligopólio da política – que, no limite, dispensa os eleitores. Os democratas devem, portanto, se posicionar fortemente contra a partidocracia.

CONTRA A PARTIDOCRACIA

Embora partidos sejam organizações privadas da sociedade civil, eles se comportam mais como organizações estatais (pró-estatais ou proto-estatais) do que como organizações sociais. Assim, reina a confusão, no seio dos partidos, entre relações compulsórias (estabelecidas pela autoridade que deriva do pacto instituinte – e constituinte – do Estado) e relações voluntárias. Há aqui, evidentemente, uma enorme aberração conceitual que está na raiz de boa parte das dificuldades práticas da democracia erigida com base na competição entre partidos. Basta dizer, para evidenciar tal confusão, que partidos são levados a se comportar como ‘organizações privadas estatais’, ou seja, como organizações que, conquanto privadas e de adesão voluntária, se constituem sob o influxo de normas que deveriam valer apenas para instituições públicas estatais e esse é o absurdo, já mencionado, aliás. Então os partidos se acham no direito de exigir dos seus filiados, ilegitimamente, tipos de respostas semelhantes aquelas que o legítimo poder normativo do Estado pode exigir dos cidadãos (excluídos, é claro, os filiados que também são funcionários dos partidos e assemelhados, vinculados por contratos de trabalho ou de prestação de serviços).

Fidelidade partidária é uma dessas respostas exigidas pelos partidos de seus filiados. Não contentes em obter uma fidelidade por adesão espontânea e voluntária (como a fidelidade conjugal nas sociedades laicas contemporâneas, por exemplo), os partidos querem que o Estado decrete a fidelidade compulsória, por força de lei, conferindo aos seus chefes (aos chefes dos partidos) o poder de ameaçar e sancionar os seus integrantes que desobedecerem as suas orientações. E querem isso na ausência de regras que os obriguem – a eles, os partidos – a estabelecer mecanismos internos democráticos.

Essas propostas autocráticas dos chefes de partidos têm como objetivo constituir um oligopólio da política, restringindo a um círculo restrito, um condomínio privado dos chefes, o poder de decidir. Assim, alguns poucos chefes de partidos teriam – juntando-se a fidelidade partidária com o voto em lista fechada – poder de vida e morte (políticas) sobre seus correligionários. Isso, como é óbvio, não é uma medida democratizante, como muitas vezes se pretende e sim exatamente o contrário: aumenta o poder discricionário dos chefes de partido.

Em geral, a justificativa apresentada para tais barbaridades baseia-se na visão equivocada de que os mandatos pertenceriam exclusivamente aos partidos, quando, na verdade, o mandato é uma resultante da confluência de três vertentes: o próprio representante, o partido e o eleitorado. Ademais, cria-se um precedente para o mandato imperativo, o que é incorreto ao esvaziar a saudável pluralidade da representação dentro de um mesmo partido. Se fosse assim, no limite, não seria necessária a presença, por exemplo, dos parlamentares nas decisões: bastaria uma reunião dos chefes de partido ou de seus prepostos colocados na liderança de bancadas. Isso transformaria a democracia em uma espécie de partidocracia.

Há de fato, na velha política, uma confusão entre democracia e partidocracia. E parece haver também uma ultrapassada visão de partido como instância ideológica que deva estabelecer, por critérios extrapolíticos, algum tipo de relação mais profunda com seus membros possuidores de mandatos. Argumenta-se que a tolerância em relação à infidelidade partidária evidencia uma inconsistência ideológica na relação entre partidos e mandatários e que, na ausência de mecanismos eficazes de responsabilização política, a coesão partidária pode ceder lugar ao exercício de mandatos a título eminentemente de caráter pessoal.

Ora, em primeiro lugar, a coesão partidária é – e deve ser mesmo – um desafio para qualquer partido: ela deve ser conquistada pelas boas propostas geradas coletivamente no interior dos partidos, ou seja, no plano político-programático e não por uma suposta capacidade de impregnação ideológica dos filiados e, muito menos, por normas ditadas pelos interesses de um oligopólio político. E, em segundo lugar, os problemas da democracia, inclusive os recentes casos de “corrupção altruísta” verificados em países da América Latina, sobretudo no Brasil, quer dizer, de corrupção praticada coletivamente para cumprir objetivos partidários, mostram que aumentar o poder dos partidos e dos chefes de partidos não garante nada em termos de uma atuação mais ética e mais honesta dos atores políticos. Os desvios de conduta pessoais constituem, aliás, ameaças bem menores à democracia do que os desvios coletivos de partidos que se comportam como verdadeiras gangues políticas.

Partidos fortes e autocráticos não significam um fortalecimento da democracia, pelo contrário, representam um retrocesso para o processo de democratização da sociedade.

Esta parte final do artigo – intitulada Contra a partidocracia – foi escrita há 10 anos, para um curso de alfabetização democrática ministrado para mais de 300 empresários no Paraná (na FIEP – Federação das Indústrias do Estado do Paraná).

Deixe uma resposta

Loading…

Deixe seu comentário

Protegido: Embaraços do legalismo

O momento político atual: um resumo