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Conversas com os fiéis do liberalismo econômico

Gene Callahan (2008), scholar adjunto do Ludwig von Mises Institute, no artigo O que é uma ciência apriorística e por que a economia é uma, tenta mostrar que Mises estava certo ao postular que “o núcleo da teoria econômica é composto de conceitos a priori – isto é, proposições cuja validade é atingida por contemplação ao invés de por pesquisa empírica”. Segundo ele, “ao caracterizar os princípios fundamentais da economia como verdades a priori”, Mises não estava fazendo nada diferente do que fazem todas as ciências. Examinemos, porém, um trecho em particular do citado artigo de Callahan:

“Mises estava certo ao descrever estes princípios como apriorísticos, porque eles são logicamente anteriores a qualquer estudo empírico de fenômenos econômicos. Sem eles é impossível até mesmo reconhecer que há uma classe definida de eventos que podem ter explicações econômicas. Somente ao pré-supor que conceitos como intenção, propósito, meios, fins, satisfação, e insatisfação são características de um certo tipo de acontecimento no mundo é que podemos conceber um tema para a economia investigar. Esses conceitos são pré-requisitos lógicos para distinguir um assunto ligado a eventos econômicos de outros assuntos ligados a eventos não-econômicos, como o tempo, o percurso de um planeta pelo céu noturno, o crescimento das plantas, o quebrar das ondas no litoral, a digestão animal, vulcões, terremotos, entre outros”.

O que está dito parece certo. Os exemplos citados, entretanto, revelam onde está o problema. De um lado os fenômenos econômicos (que abarcam todos aqueles que concernem ao relacionamento entre os seres humanos) e, de outro lado, os fenômenos físicos, geológicos, químicos, biológicos et coetera. Assim, o mundo (e a ciência que explica o mundo) estaria dividido em eventos (e em explicações) econômicos e não-econômicos. Ocorre que nem todos os eventos que ocorrem entre seres humanos são econômicos (ou podem ser explicados pelas hipóteses, definições e teoremas da economia). O que Callahan está fazendo é promover a economia miseana a uma espécie de pan-ciência explicativa da ação humana, deixando todo o resto (ainda bem!) para as demais ciências.

Não lhe ocorreu que fenômenos como a linguagem (ou o linguagear) não podem ser explicados pela economia. E nem que a economia não abole as demais ciências ditas humanas ou sociais (como a psicologia, a sociologia e a antropologia).

Por outro lado, também não lhe ocorreu que os postulados fundamentais, princípios ou axiomas das demais ciências, ainda que não tenham sido estabelecidos a partir da observação e da investigação empírica, são corroborados pela coerência lógica, pela completude e pela verificabilidade (ou falseabilidade) das explicações (teorias) que deles derivam.

Ao dar o exemplo da ciência física, Calhahan se confunde e sua confusão revela uma certa incompreensão do que chama de ciência. Segundo ele, “toda ciência é fundada em proposições que formam a base – ao invés de o resultado final – das investigações. Por exemplo, a física toma como garantida a realidade do mundo físico que ela examina. Qualquer pedaço de evidência física que ela possa oferecer tem significado somente se for assumido que o mundo físico é real”. Há aqui um engano. A física não depende da crença apriorística de que o mundo físico é real e sim de que ele apresenta regularidades (ou invariâncias) dentro de certos limites de tamanho, velocidade ou energia. Pode-se construir uma ciência física admitindo o princípio antrópico forte (tanto faz se a realidade física existe independentemente do sujeito ou se ela é criada pelo sujeito que a observa, desde que ela apresente padrões que possam ser reconhecidos por sujeitos distintos: cabe à ciência estabelecer conexões entre o que varia e o que se mantém constante, que permitam identificar os mesmos padrões gerando explicações que sejam testáveis por sujeitos diferentes, predições gerais que possam ser objetivamente verificadas).

Mas deixando isso de lado, os pressupostos não demonstráveis e não verificáveis da ciência física – assim como os de qualquer ciência que passe pelos critérios epistemológicos correntemente aceitos – devem ser conformes às hipóteses que foram feitas sobre eles (no sentido de assentadas sobre a base que oferecem). Eis aqui o problema do pensamento econômico de Mises e da economia ortodoxa em geral. Se eu admito como pressuposto (não-demonstrável e não verificável, posto que evidente por si mesmo) que o comportamento coletivo pode ser derivado do comportamento dos indivíduos, já aparece o primeiro problema. Pois isso não é conforme ao comportamento observável das sociedades (swarmings sociais, só para dar um exemplo, não se explicam pelo comportamento dos indivíduos enxameados).

E se, ademais, tomo como verdade apriorística que o ser humano (sempre encarado como indivíduo) é inerentemente (ou por natureza) competitivo e se move tentando maximar a obtenção de seus interesses (ou preferências) – ou para melhorar a sua situação – e que esses interesses são, ao fim e ao cabo, egotistas, aparece então o segundo problema. Pois isso não explica, a não ser retorcendo e degenerando os conceitos admitidos para operar a explicação, como o ser humano teria realizado e continuaria realizando, do ponto de vista evolutivo e do ponto de vista de seu comportamento cotidiano, tantas ações gratuitas ou desnecessárias (do ponto de vista da obtenção de seus interesses): não compartilharia alimentos (sabendo que os alimentos doados podem lhe fazer falta no futuro), não ajudaria desinteressadamente ninguém, não colaboraria sem expectativa de reciprocidade, não se entregaria ao erotismo homossensual (sem possibilidade de reprodução) para dar prazer ao outro, não se sacrificaria por amor e não exercitaria a compaixão. Torturar o conceito de interesse para mostrar que o amor é também interessado, posto que retribuído “economicamente” pela compensação emocional que retorna aos amantes, criando uma espécie de economia das emoções e dos sentimentos, é uma glissagem indevida, um deslizamento epistemológico entre stati distintos, que não poderia ser aceito como operação válida em ciência.

Num sentido ampliado do termo podemos admitir que a economia é uma ciência, assim como a psicologia analítica junguiana também o é. Num sentido estrito do termo – para tomar como referência os critérios estabelecidos no dealbar do século 20 pelos epistemólogos da ciência – não! É um corpo explicativo coerente, sem dúvida, que gera uma narrativa verossímil e, em muitos casos (como na econometria, por exemplo), consegue produzir predições verificáveis. Mas em outros casos, não. Em outros casos é política disfarçada. E em outros, ainda, é uma mega-narrativa sobre o mundo humano-social (ou sobre a ação humana, como queria von Mises) que parte de pressupostos que, formalmente, em nada se diferenciam de crenças (ou princípios religiosos), como a crença de que o ser humano é inerentemente (ou por natureza) isso ou aquilo ou mesmo de que exista uma natureza humana (um homem primordial que, independentemente do padrão civilizatório ou do ambiente social onde vive, tende a se comportar assim ou assado). O desejo de explicar a totalidade do mundo humano-social pela economia é, rigorosamente falando, uma ideologia (no sentido estrito do termo).

Com efeito, tanto pelos motivos apontados acima, quanto pelo comportamento de seus seguidores (que reagem como fiéis irados quando se critica os fundamentos de suas crenças), o liberalismo econômico – não há como negar – se parece mais com uma religião do que com uma ciência. Cientistas, stricto sensu, ainda que disputem entre si para defender suas teorias, não se comportam como sequazes fundamentalistas (ainda que nem todos os adeptos do liberalismo econômico o façam).

Talvez esse comportamento de seita tenha como explicação a luta em que os liberais econômicos se envolveram contra os marxistas (estes também, não raro, fundamentalistas). É uma guerra entre narrativas totalizantes, que querem explicar tudo (ou pelo menos tudo que ocorre no mundo humano-social) a partir de suas teorias. Também o marxismo, o materialismo histórico, o materialismo dialético, queriam se ter por ciências e seus defensores lembram um pouco os espiritistas que surgiram em meados do século 19 na Europa.

Num próximo artigo vamos tratar do anacronismo de tentar gerar narrativas totalizantes ou mega-explicações gerais para o mundo (quer dizer, para um vasto universo de eventos tomado como o mundo todo e único).

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