Examinemos, para começar, o nosso insuficiente arcabouço legal para coibir a manipulação das mídias sociais.
A chamada “Lei das Fake News”, aprovada em 30/06/2020 no Senado, tem coisas boas, por certo, mas não vai no coração do problema.
O ânimo de uma lei desse tipo não pode ser vigiar e punir, ainda que tenha que haver alguma vigilância democrática e pronta punição dos que cometem crimes.
Ademais, o problema não é exatamente a notícia falsa e sim a manipulação das mídias sociais que pode ser feita, inclusive, com notícias verdadeiras.
O problema maior para a democracia é o uso instrumental, industriado e financiado, das mídias sociais por parte dos populismos, notadamente pelo populismo-autoritário.
Isso começou com o 5 Estrelas de Grillo, Casaleggio e, depois, Salvini, passou por desenvolvimentos ainda mais malignos para ser usado na campanha do Brexit e foi largamente empregado nas campanhas de Trump e Bolsonaro.
Essa manipulação está falsificando o processo de formação da opinião pública e, no limite, desabilitando o debate democrático. Confira sobre isso o artigo: A abolição da opinião pública pelos populismos.
O fato é que as mídias sociais e os programas de mensagens (entre nós, notadamente, o WhatsApp) estão sendo usados contra a democracia, muitas vezes em escala industrial.
A primeira providência de uma lei para coibir esse ataque à democracia é identificar e punir quem financia esses ataques. Aqui a melhor diretiva é: siga o dinheiro.
As demais providências têm a ver com as funcionalidades dessas mídias que as deixam vulneráveis à manipulação organizada. Uma lista preliminar de medidas que podem ser adotadas teria de incluir:
√ acabar com contagens de likes e compartilhamentos (atenção: não com os likes, nem com os compartilhamentos),
√ retirar mais prontamente de circulação mensagens de ódio e fake news,
√ banir bots e pessoas-bot (recalcitrantes sistemáticos da desinformação),
√ descredenciar aplicativos de emissão de mensagens em massa,
√ impedir o fluxo descendente em árvore no WhatsApp, Telegram e assemelhados (reduzindo o número de pessoas em cada grupo, limitando o número de grupos abertos por um mesmo perfil e impedindo a replicação massiva de mensagens semelhantes para vários grupos),
√ acabar com a possibilidade de falsificação de Trending Topics no Twitter (ou, simplesmente, eliminar essa funcionalidade),
√ condicionar o número de seguidores à interação com eles durante determinado intervalo de tempo.
A lei aprovada no Senado dá conta de coibir apenas uma parte dessas violações ao processo democrático. Tem de ser reelaborada.
Enquanto esse processo de reelaboração está em curso na Câmara dos Deputados, não se pode ficar inerte.
Nem se pode dar ouvidos aos que, em nome da liberdade, reclamam da suspensão de contas nas mídias sociais dos que usam sistematicamente a liberdade para acabar com a liberdade:
a) divulgando fake news,
b) usando bots e financiando fábricas de bots,
c) promovendo discursos de ódio e injuriando, caluniando e difamando pessoas,
d) propondo o fechamento das instituições democráticas e ameaçando a vida ou destruindo a reputação de seus titulares,
e) manipulando essas mídias para falsificar a opinião pública.
Esses “libertários” ou “legalistas” queriam que eles (os manipuladores) fossem primeiro processados e julgados para então suspender essas contas, caso condenados.
Enquanto o processo rola – o que pode demorar anos até à condenação – eles continuariam usando a liberdade para acabar com a liberdade:
a) divulgando fake news,
b) usando bots e financiando fábricas de bots,
c) promovendo discursos de ódio e injuriando, caluniando e difamando pessoas,
d) propondo o fechamento das instituições democráticas e ameaçando a vida ou destruindo a reputação de seus titulares,
e) manipulando essas mídias para falsificar a opinião pública, inclusive durante processos eleitorais (e teremos um no Brasil daqui a 3 meses).
Não faz sentido, concordam?
É democrático suspender contas de contumazes manipuladores das mídias sociais. É uma defesa da democracia contra os que querem se aproveitar dela (das liberdades que ela proporciona) para violá-la (quer dizer, para abolir as liberdades). Sobretudo se eles fazem isso de modo organizado para desfechar ataques coordenados (swarming attacks, contra os quais a democracia não tem proteção eficaz) – o que é o caso. Sim, trata-se de uma organização criminosa.
Eis a lista dos malfeitores bolsonaristas que tiveram suas contas nas mídias sociais suspensas pela justiça em 24/07/2020:
Allan dos Santos
Bernardo Küster
Edgard Corona
Edson Salomão
Eduardo Fabris Portella
Enzo Momenti
Luciano Hang
Marcelo Stachin
Marcos Bellizia
Otavio Fakhoury
Paulo Bezerra
Rafael Moreno
Reynaldo Bianchi Junior
Roberto Jefferson
Rodrigo Ribeiro
Sara Giromini
Winston Lima
Eles não foram banidos, suas contas não foram deletadas, apenas suspensas (para visualização no Brasil). Foi uma medida cautelar.
Nenhum deles defende a democracia. Mas esse não é o problema. A democracia admite a existência de pessoas que discordam – dentro das leis – da própria democracia. Não pode admitir, porém, o comportamento de pessoas que – de modo organizado – usam a liberdade democrática para acabar com a democracia.
Que todos os listados acima – e mais uma centena e meia de jihadistas virtuais assemelhados – continuem sendo processados na forma da lei.