in , ,

Quando a democracia não é mais o único caminho para a prosperidade

Foa e Mounk publicaram ontem (01/03/2019) um artigo no The Wall Street Journal reforçando as sombrias previsões com as quais trabalham os que sabem que foi um erro do chamado liberalismo-econômico (ou da ideologia neoliberal, se preferirmos) vender a democracia como uma espécie de caminho (único) para a prosperidade econômica. Os que acreditaram que a democracia tinha obrigação de “dar casa, comida e roupa lavada” de graça (ou a preços irrisórios) para todos, estão agora diante da evidência de que as coisas não são bem assim. A democracia – como liberalismo político (e não apenas econômico) – não pode ser justificada (nem vendida) como se fosse um caminho para o bem-estar, para melhorar as condições materiais de vida das populações (isso pode até acontecer e aconteceu de fato), mas como um caminho para melhorar as condições de convivência social, garantindo a liberdade necessária para pessoas e comunidades desenvolverem suas próprias potencialidades. Ocorre que, como já vimos num texto de Roberto Foa, de novembro do ano passado, publicado no Journal of Democracy, intitulado Modernização e autoritarismo, países autocráticos estão se aproveitando dos mecanismos e processos econômicos liberais, próprios do capitalismo, sem adotarem, entretanto,  instituições e procedimentos políticos liberais, ou seja, sem percorrerem a transição para a democracia. Abaixo o artigo traduzido e o original.

Quando a democracia não é mais o único caminho para a prosperidade

Os países classificados como “não livres” estão cada vez mais aptos a oferecer aos seus cidadãos altos rendimentos. Os ideais democráticos perderão seu apelo?

Roberto Stefan Foa e Yascha Mounk, The Wall Street Journal, 01 de março de 2019

Tradução livre de Renato Jannuzzi Cecchettini

Como o século 20 chegou ao fim, a democracia estava em marcha. A União Soviética havia desaparecido, o nazismo era um pesadelo distante e todos os continentes mostravam sinais de caminhar para eleições livres e para o estado de direito. Toda a humanidade estava finalmente reconhecendo os princípios transcendentes da liberdade e igualdade democráticas – ou assim muitos observadores concluíram.

Olhando para trás, as razões para o apelo da democracia naqueles dias inebriantes parecem mais complicadas. Uma grande parte disso tinha a ver não com nobres ideais, mas com sucesso econômico. Os países mais ricos do mundo eram democracias e o resto do mundo também queria ser rico. Hoje, a riqueza global está mudando para partes mais autoritárias do mundo – e não está claro como a democracia, sem todas as vantagens materiais do seu lado, se sairá na competição.

Desde a década de 1890, países como os EUA, a Grã-Bretanha e um pequeno grupo de outras democracias dominaram a economia global. Em 1995, 96% de todas as pessoas que viviam em um país com renda per capita acima de US $ 20.000 (em termos atuais) eram cidadãos de uma democracia liberal. Com a exceção de alguns poucos oligarcas empoleirados em cima de sociedades estagnadas e repressivas, somente os democratas conseguiram desfrutar da verdadeira riqueza.

A realidade de hoje é muito diferente. Nossa análise das projeções do Fundo Monetário Internacional mostra que, em algum momento nos próximos cinco anos, o PIB total dos países classificados como “não livres” pela Freedom House ultrapassará o das democracias ocidentais. As economias combinadas de países democráticos como os EUA, Alemanha, França e Japão serão menores do que as de autocracias como China, Rússia, Turquia e Arábia Saudita.

Se o Ocidente quiser navegar com sucesso nesse novo mundo, precisará entender como as escalas caíram tão rapidamente, do domínio democrático ao ressurgimento autoritário. Uma parte da explicação é a reversão democrática em grandes economias, graças aos esforços de homens fortes como o russo Vladimir Putin e o turco Recep Tayyip Erdogan. Se democracias como o Brasil, a Índia e a África do Sul experimentarem uma erosão semelhante nos próximos anos, o poder relativo dos governantes autocráticos continuará crescendo.

Mas um fator ainda mais importante foi o surgimento do capitalismo autoritário. Antes do século XXI, regimes autocráticos que alcançavam um nível relativamente alto de renda per capita tendiam a parar de crescer, como a União Soviética, ou a tornarem-se democráticos, como regimes militares na Ásia, na América Latina e no sul da Europa. Países como Cingapura, que continuaram crescendo sem se tornar uma verdadeira democracia, foram explicados como pequenas exceções que provaram a regra.

Essa limitação ainda se aplica a regimes autocráticos como a Coréia do Norte e a Venezuela, que se apegaram ao estrito controle estatal da economia. Mas um número crescente de países aprendeu a combinar o governo autocrático com instituições favoráveis ao mercado, e eles continuaram crescendo economicamente bem além do ponto em que as transições democráticas costumavam ocorrer.

No famoso “Kitchen Debate” em Moscou, em 1959, o primeiro-ministro soviético Nikita Khrushchev e o vice-presidente dos EUA, Richard Nixon, debateram os sistemas econômicos de seus países.

Hoje, 376 milhões de pessoas vivem em países profundamente não-liberados – incluindo Rússia, Cazaquistão e Estados do Golfo – que têm renda per capita acima de US $ 20.000 em termos de paridade de poder de compra. Na região costeira da China, a renda média já subiu acima desse nível, e as principais cidades ultrapassaram os US $ 35.000. Quando a China, como um todo, ultrapassa os US $ 20 mil em renda per capita, o que as estimativas do FMI vão acontecer no próximo ano, 1,8 bilhão de pessoas em todo o mundo viverão em regimes autoritários de renda superior.

Esse desenvolvimento tem implicações enormes para o futuro da democracia. A última vez que o mundo democrático enfrentou um sério desafio à sua primazia econômica e tecnológica foi após o lançamento do Sputnik pela União Soviética, o primeiro satélite artificial do mundo, em 1957. Impulsionado pela reconstrução do pós-guerra e pela adição de sete novos estados vassalos na Europa Oriental, o bloco soviético viu seu PIB aumentar de um quinto do nível dos EUA em 1945 para mais da metade desse nível em 1958. Poucos anos depois, Paul Samuelson, o economista ganhador do Prêmio Nobel, previu em seu livro introdutório amplamente utilizado que o PIB da União Soviética superaria o dos EUA em 1984.

“As esperanças de que os EUA saiam da situação atual não são mais do que fantasias”.

Isso nunca aconteceu, claro. Em 1969, uma bandeira americana tremulava na lua e o crescimento econômico nos EUA mais uma vez ultrapassava o do bloco soviético. Os padrões de vida no comunismo nunca chegaram aos do Ocidente. Edições subsequentes do livro de Samuelson continuaram a empurrar o ponto em que ele projetou a economia soviética ultrapassaria a dos EUA em um futuro cada vez mais distante.

Hoje, porém, há menos motivos para confiança no eventual triunfo econômico da democracia. Em 1957, os EUA e seus aliados democráticos na Europa e no Japão representavam quase dois terços da economia global – três vezes mais que o bloco oriental, mais a China. O Sputnik pode ter deixado os americanos nervosos, mas o Ocidente ainda era economicamente dominante. A verdadeira questão era se ela tinha a determinação política de traduzir seu poder material em hegemonia geopolítica.

Em 2019, em contraste, nenhuma determinação política reverterá o fato de que as democracias ocidentais representam pouco mais de um terço da economia mundial. Dada a mudança radical na população e produtividade mundial que temos testemunhado nas décadas recentes, seria ingênuo esperar que a América do Norte e a Europa Ocidental voltassem a reinar a qualquer momento em breve. As esperanças de que os EUA saiam da situação atual não são mais do que fantasias.

Se a democracia ou a autocracia governa o mundo no século XXI, é provável que dependa de uma série de países centrais que poderiam terminar como parte de qualquer campo. Se países como a Índia, a Nigéria e a Indonésia conseguirem construir democracias estáveis e ricas, os princípios de liberdade e igualdade terão a chance de manter e ampliar sua influência nas próximas décadas. Mas se esses “swing states” cruciais se tornarem autocráticos enquanto se tornarem ricos, os democratas terão mais dificuldade em apresentar seus argumentos.

Como mostra a história do século XX, a liberdade é mais saborosa quando parece ser a porta de entrada para a prosperidade.

When democracy is no longer the only path to prosperity

Countries rated ‘not free’ are increasingly able to offer their citizens high incomes. Will democratic ideals lose their appeal?

Roberto Stefan Foa & Yascha Mounk, The Wall Street Journal, March 01, 2019

As the 20th century drew to a close, democracy was on the march. The Soviet Union was gone, Nazism was a distant nightmare and every continent showed signs of moving toward free elections and the rule of law. All of humanity was finally coming to recognize the transcendent principles of democratic liberty and equality—or so many observers concluded.

Looking back, the reasons for democracy’s appeal in those heady days appear more complicated. A big part of it had to do not with noble ideals but with economic success. The world’s richest countries were democracies, and the rest of the world wanted to be rich too. Today, global wealth is shifting to more authoritarian parts of the world—and it isn’t clear how well democracy, without every material advantage on its side, will fare in the competition.

Since the 1890s, countries like the U.S., Great Britain and a small band of other democracies have dominated the global economy. As recently as 1995, 96% of all people who lived in a country with a per capita income over $20,000 (in today’s terms) were citizens of a liberal democracy. With the exception of a few oligarchs perched atop stagnant and repressive societies, only democrats got to enjoy real affluence.

Today’s reality is very different. Our analysis of International Monetary Fund projections shows that sometime in the next five years, the total GDP of countries rated “not free” by Freedom House will surpass that of Western democracies. The combined economies of democratic countries like the U.S., Germany, France and Japan will be smaller than those of autocracies like China, Russia, Turkey and Saudi Arabia.

If the West is to navigate this new world successfully, it will need to understand how the scales tipped so rapidly from democratic dominance to authoritarian resurgence. One part of the explanation is democratic reversals in large economies, thanks to the efforts of strongmen such as Russia’s Vladimir Putin and Turkey’s Recep Tayyip Erdogan. If democracies like Brazil, India and South Africa experience similar erosion in the years ahead, the relative power of autocratic rulers will keep growing.

But an even more important factor has been the rise of authoritarian capitalism. Before the 21st century, autocratic regimes that reached a relatively high level of per capita income tended either to stop growing, like the Soviet Union, or to become democratic, like military regimes in Asia, Latin America and southern Europe. Countries such as Singapore, which kept growing without becoming a true democracy, were explained away as small exceptions that proved the rule.

This limitation still applies to autocratic regimes like North Korea and Venezuela, which have clung to strict state control of the economy. But a growing number of countries have learned to combine autocratic rule with market-friendly institutions, and they have continued growing economically well beyond the point at which democratic transitions used to occur.

At the famous “Kitchen Debate” in Moscow in 1959, Soviet Premier Nikita Khrushchev and U.S. Vice President Richard Nixon debated their countries’ economic systems.

Today, 376 million people live in deeply unfree countries—including Russia, Kazakhstan and the Gulf states—that have per capita incomes above $20,000 in terms of purchasing-power parity. In China’s coastal region, average incomes have already risen above this level, and the major cities have surpassed $35,000. When China as a whole crosses above $20,000 in per capita income, which the IMF estimates will happen next year, 1.8 billion people around the world will live in upper-income authoritarian regimes.

This development carries enormous implications for the future of democracy. The last time the democratic world faced a serious challenge to its economic and technological primacy was after the Soviet Union’s launch of Sputnik, the world’s first artificial satellite, in 1957. Buoyed by postwar reconstruction and the addition of seven new vassal states in Eastern Europe, the Soviet bloc had seen its GDP increase from one-fifth of the U.S. level in 1945 to over half that level by 1958. A few years later, Paul Samuelson, the Nobel Prize-winning economist, predicted in his widely used introductory textbook that the GDP of the Soviet Union would surpass that of the U.S. by 1984.

“Hopes for the U.S. to grow its way out of the current predicament are no more than fantasies”.

It never happened, of course. By 1969, an American flag was fluttering on the moon and economic growth in the U.S. once again outpaced that of the Soviet bloc. Living standards under communism never reached those of the West. Subsequent editions of Samuelson’s textbook kept pushing the point at which he projected the Soviet economy would overtake that of the U.S. into the ever more distant future.

Today, however, there is less reason for confidence in the eventual economic triumph of democracy. In 1957, the U.S. and its democratic allies in Europe and Japan accounted for almost two-thirds of the global economy—three times more than the Eastern bloc plus China. Sputnik may have made Americans nervous, but the West was still economically dominant. The real question was whether it had the political resolve to translate its material power into geopolitical hegemony.

In 2019, by contrast, no amount of political resolve will reverse the fact that Western democracies account for little more than a third of the world economy. Given the radical shift in world-wide population and productivity that we have witnessed in the recent decades, it would be naive to expect North America and Western Europe to reign supreme again anytime soon. Hopes for the U.S. to grow its way out of the current predicament are no more than fantasies.

Whether democracy or autocracy rules the world in the 21st century is thus likely to depend on a number of pivotal countries that could end up as part of either camp. If countries such as India, Nigeria and Indonesia manage to build stable and affluent democracies, the principles of liberty and equality have a chance to maintain and extend their influence in the coming decades. But if these crucial “swing states” turn autocratic while becoming rich, democrats will have a harder time making their case.

As the history of the 20th century shows, freedom tastes much sweeter when it seems to be the gateway to prosperity.

Emancipação da pobreza em uma sociedade em rede: minha contribuição

Harari e suas lições para o século 21: observações críticas à Parte I