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Tentando destruir a defeituosa democracia americana

Publicado também na revista Inteligência Democrática

Trump, sem razão, dando razão aos anti-imperialistas sem razão

Trump está tentando destruir as instituições e os mecanismos de freios e contrapesos do establishment democrático dos EUA, erigidos há décadas. Em que medida ele vai conseguir fazer isso não se sabe. O que se sabe é que ele é um adversário figadal da democracia, assim como toda a sua turma MAGA. Eles sempre quiseram uma república governável autoritariamente – uma oligarquia, nunca uma democracia.

As raízes dessa preferência, a rigor, estão fincadas no medo dos chamados pais fundadores de que as turbas sublevadas e não disciplinadas poderiam tomar, pela demagogia, o “cetro da razão” (para usar as palavras de Madison). Eles – Jefferson inclusive, mas sobretudo Madison e Hamilton – viviam apavorados com uma imaginária “tirania da maioria” (que nunca aconteceu na história em uma democracia liberal). Acabaram constituindo (objetivamente) mais uma república dos que julgavam ser os melhores (aristoi), ou seja, objetivamente, uma oligarquia – posto que eram poucos (oligoi). Como reconheceu recentemente Steve Levitsky, em entrevista à BBC (19/01/2025), sobre o seu próprio país: “nunca fomos o modelo de democracia que fingíamos ser”.

É verdade. Os EUA passaram a ser um regime eleitoral (pré-democrático) em 1796 (precocemente, logo após Inglaterra, Irlanda e França), mas – segundo o V-Dem – só viraram uma democracia eleitoral em 1921 (tardiamente) e uma democracia liberal em 1969 (mais tardiamente ainda) – ocupando hoje o vigésimo lugar no ranking mundial de democracia liberal. Segundo a The Economist Intelligence Unit os EUA não são mais, há muito tempo, uma democracia plena e sim uma democracia defeituosa – ocupando o vigésimo-nono lugar no ranking.

Ainda segundo o V-Dem, a Suíça passou a ser uma democracia liberal em 1849, a Austrália em 1858, a França em 1874, a Bélgica em 1897, a Dinamarca em 1902, a Noruega em 1906, a Nova Zelândia em 1913, a Holanda em 1918, a Inglaterra em 1919. Os EUA, retardatários, somente em 1969.

Mesmo assim, os EUA construiram instituições democráticas sólidas e sistemas razoavelmente eficazes de freios e contrapesos, que agora estão sendo abertamente atacados – o que é inédito – por Trump, pelo MAGA e pelos “tecno-feudalistas” representados por Musk.

Mas, com isso, Trump dá um argumento oportunista para os militantes que lutam contra o imperialismo norte-americano na vibe da primeira guerra fria. A esquerda marxista-populista, exilada em algum lugar do passado, criticava o imperialismo ianque muito antes de Trump, inclusive nos períodos em que essa não era mais a orientação predominante da política externa americana, sob governos democratas ou até republicanos – mas ainda não alucinados pelo nacional-populismo de extrema-direita.

Sim, o anti-imperialismo de almanaque permaneceu, inclusive quando os EUA não viviam mais nos períodos das doutrinas expansionistas e do destino manifesto de James Monroe e Theodore Roosevelt. Ou no macartismo que floresceu sob Truman e Eisenhower. Ou na guerra fria das épocas de Kennedy, Johnson, Nixon e Ford.

Com efeito, quando os democratas Carter, Clinton, Obama e Biden governaram, esses militantes denunciavam o imperialismo norte-americano. Quando os republicanos Reagan e Bush (pai) governaram, eles faziam a mesma coisa. Então não é porque o boçal Donald Trump – realmente um nacional-populista autoritário de extrema-direita – governa (pela segunda vez) que os EUA são, foram e sempre serão, o grande satã imperialista.

O problema é que os que criticam os EUA por serem imperialistas não criticam o regime político americano pelo fato de ele não ser democraticamente pleno ou plenamente liberal. Se fosse um regime autocrático, mesmo imperialista, como o russo, para eles, tudo bem. Se fosse uma ditadura como China ou Cuba, para eles, tudo bem. Então fica claro que a crítica ao imperialismo norte-americano é uma crítica não democrática. Se fosse, as democracias liberais ou plenas mais avançadas do planeta – como Noruega, Suécia, Dinamarca, Irlanda, Holanda, Alemanha, Austria e França, para citar apenas alguns exemplos – não estariam sendo acusadas, por esses mesmos anti-imperialistas, de neocolonialistas. Os anti-imperialistas anacrônicos não têm razão, a não ser, agora, aquela fornecida por um Trump sem razão.

Os problemas da democracia americana são mais antigos e têm a ver não somente com (a forma como se estruturou) o Estado, mas com o comportamento de boa parte da sociedade. Como já escrevi em outro lugar, “os EUA tanto acumularam, quanto dilapidaram, capital social, numa velocidade espantosa. As bases sociais da democracia tocquevilliana foram solapadas pela centralização em Washington, pela recorrência aos tribunais para resolver dilemas banais da vida coletiva, pelo complexo científico-industrial-militar e, é claro, pelas guerras. Trump e o MAGA são uma consequência da dilapidação”.

Minha admiração pelos EUA não tem a ver com os governos republicanos e democratas que se sucederam ao longo da história – muitos dos quais deploráveis (como Monroe e Theodore, já citados e, em especial, o celerado Andrew Jackson). Nem mesmo, principalmente, com os chamados pais fundadores (insuficientemente convertidos à democracia e também já mencionados acima). Tem a ver com o ‘network da Filadélfia’ que redigiu a várias mãos – em rede – a Declaração de Independência (1776). Tem a ver com o “governo civil” percebido por Tocqueville na efervescência da sociedade americana da Nova Inglaterra na década de 30 do século 19. Tem a ver com as investigações de Jane Jacobs no final dos anos 50 do século 20 que levaram ao surgimento do conceito de capital social (no sentido que hoje lhe atribuímos, ou seja, o de rede de pessoas). Tem a ver com um conjunto extraordinário de pensadores democráticos, como Dewey, Dahl, Rawls, Fukuyama, Putnam, Diamond – para citar alguns dos mais importantes (para mim).

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