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Uma análise para falsificar a realidade

O professor da USP, Pablo Ortellado, publicou no último 21 de novembro, na sua coluna na Folha de São Paulo, um artigo sobre a polarização política. O artigo é interessante, mas pega uma parte pelo todo.

Sim, há a polarização que ele tenta analisar, mas ela não é – pelo menos ainda, felizmente – uma polarização da disputa política em geral e sim a polarização dentro do campo autocrático. Quer dizer, é uma polarização entre militantes, que se dizem de esquerda e de direita.

O artigo não poderia deixar de ser tendencioso, na medida em que Ortellado é um militante de esquerda. Assim, ele aponta as incongruências do que chama de “antipetismo”, mas quase não menciona as barbaridades do petismo (e da esquerda em geral). Não é, como ele diz, que a esquerda defenda a justiça social enquanto que a o “antipetismo” defenda a ética na política (e o combate à corrupção) e a preservação de velhos costumes. É que a esquerda defende um projeto autocrático para o país e usou a corrupção para financiar tal projeto. A corrupção é um dos menores males da esquerda. Se o PT fosse 100% honesto, seria 1.000 vezes pior para a democracia. Mas democracia, significativamente, é uma palavra ausente da análise de Ortellado.

Parte das pessoas, grupos e movimentos que se opõem ao PT o faz, principalmente, não porque o PT seja corrupto (como o são os demais partidos) e sim porque o lulopetismo é um neopopulismo, estatista e autocrático (uma variante do bolivarianismo). Nem mesmo o MBL, grupo que Ortellado está tomando – sem o mencionar – como paradigma do “antipetismo”, faz isso, na medida em que critica o petismo, em grande parte, por ele apoiar a ditadura de Maduro na Venezuela e a ditadura castrista em Cuba.

Ortellado, portanto, confunde mais do que esclarece. Rebaixa a questão aos termos em que o moralismo popular, instrumentalizado pelo jacobinismo dos que fazem a antipolítica da pureza, pregando uma espécie de “limpeza ética” (que, por sinal, a cada dia se revela menos antipetista), a colocou.

Ao criar a categoria “antipetismo” para nela enquadrar os que não estão de acordo com o projeto autocratizante da esquerda petista (ou hegemonizada pelo PT), Pablo Ortellado faz apenas a mágica de sumir com a crítica democrática. Ora, os democratas não são antipetistas porque são anticomunistas (como os bolsonaristas e olavistas), conservadores nos costumes (meio ridículos, como o autor os pinta) ou moralistas e sim porque o PT é antidemocrático. Trata-se de uma análise para falsificar a realidade.

Eis o artigo, reproduzido na íntegra.

A polarização não está nos deixando pensar

Pablo Ortellado, Folha de S. Paulo, 21/11/2017

Três observações sobre a polarização política.

1) A polarização não é o processo no qual a opinião se concentra em dois pontos de vista que se negam, mas em pontos de vista que negam aquilo que acreditam que seja o ponto de vista do outro.

No Brasil de hoje, temos dois campos políticos principais: um campo que se define como “antipetista” e outro que se define como “esquerda”.

O campo antipetista se vê essencialmente como anticorrupção (o PT sendo o caso mais extremo da corrupção que tomou o Estado brasileiro) e o campo da esquerda se vê como o guardião da justiça social.

O antipetismo nega, assim, o que acha que é a esquerda: um campo que defende a corrupção. Já a esquerda nega aquilo que acha que o antipetismo é, a despeito do que diz: uma corrente que traveste de anticorrupção sua ojeriza à ascensão social dos mais pobres.

O antipetismo se vê como anticorrupção, mas é visto como socialmente insensível. A esquerda se vê como defensora da justiça social, mas é vista como corrupta. Cada um se define não pela negação do outro, mas pela negação daquilo que acha que o outro é.

2) A polarização não é apenas a concentração da opinião em pontos de vista opostos, mas o alinhamento dessas posições.

A polarização produz a adoção de posições interligadas, isto é, quando determinado campo político toma uma posição, o campo adversário automaticamente toma posição no sentido contrário, produzindo pares de oposições perfiladas.

Quando os antipetistas abraçaram a luta anticorrupção como pauta central, a esquerda, em reação, adotou a tese contrária de que a luta contra a corrupção era uma superficialidade tola, já que os vínculos entre o poder público e as empresas seriam inerentes à sociedade capitalista.

Do outro lado, tão logo a esquerda tomou o Bolsa Família como uma política social exemplar, os antipetistas passaram a vê-lo como um programa assistencialista que manteria os mais pobres em uma condição estrutural de dependência do Estado.

A mesma coisa aconteceu quando o antipetismo se colocou contra a arte elitista irresponsável que expunha crianças à obscenidade e à perversão e a esquerda, em oposição, se colocou a favor da plena liberdade de expressão artística.

Por sua vez, quando a esquerda se colocou contra humoristas que, a seu ver, desrespeitavam negros, gays e mulheres, o antipetismo considerou a crítica um excesso e uma patrulha características do politicamente correto.

3) Como se trata de um alinhamento automático, a polarização limita a reflexão e a tomada de posição política independente.

Isso acontece porque a afirmação da identidade política –ser de esquerda ou ser antipetista e tudo o que isso implica– é mais importante do que a avaliação independente de cada um dos temas em discussão.

O campo antipetista se vê como defensor da lisura e da ética na política e não consegue entender como as pessoas do outro campo podem simplesmente defender um partido corrupto – por isso supõe que todo mundo “do lado de lá” está levando alguma vantagem, um pão com mortadela, um Bolsa Família, um cargo comissionado ou um projeto da Lei Rouanet.

A esquerda se vê como a guardiã da justiça social e trata qualquer um que se oponha ao legado social dos governos petistas como inimigo de classe, pessoas socialmente insensíveis que obviamente estão ocultando sob o manto da luta anticorrupção a defesa crua dos seus privilégios e interesses –de classe, mas também o de pessoas brancas, heterossexuais e cisgênero.

Ser ético e combater a corrupção ou ser justo e combater a desigualdade são identidades que estão sendo politicamente mobilizadas por grupos de poder para promover projetos que nem sempre são éticos e nem sempre são socialmente justos.

À medida que a polarização avança, essas identidades estão sendo alargadas para cada vez incluir mais convicções políticas apaixonadas – agora, elas estão passando a incluir também a defesa da família, dos valores tradicionais e a punição dura aos criminosos, de um lado, e a defesa dos direitos de negros, mulheres e pessoas trans, de outro.

Quando é mais urgente afirmar apaixonadamente a nossa identidade do que exercer o julgamento crítico sobre as questões, de forma independente, nossos mais sinceros e honestos compromissos políticos podem facilmente ser colocados a serviço de projetos que, na prática, promovem o oposto daquilo que queremos.

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