O discurso de Lula na cerimônia de diplomação (de ontem, 12 de dezembro de 2022) segue o roteiro de um embuste que está sendo urdido. De que tudo que é democrático esteve (e está) do lado de Lula. E de que tudo que não apoia Lula ou não está subordinado ou satelizado pelo PT, não é democrático e não expressa “a voz do povo”.
Esse tipo de redução da pluralidade democrática a uma guerra bipolar entre “o povo” (os que seguem o líder, ele, Lula) e “as elites” (o poder econômico, que seguem o outro líder, Bolsonaro) define o comportamento político que chamamos de populismo.
Abaixo a íntegra do discurso de Lula com observações em azul.
DISCURSO DE LULA NA CERIMÔNIA DE DIPLOMAÇÃO
Brasília, 12/12/2022
Em primeiro lugar, quero agradecer ao povo brasileiro, pela honra de presidir pela terceira vez o Brasil.
Na minha primeira diplomação, em 2002, lembrei da ousadia do povo brasileiro em conceder – para alguém tantas vezes questionado por não ter diploma universitário – o diploma de presidente da República.
Reafirmo hoje que farei todos os esforços para, juntamente com meu vice Geraldo Alckmin, cumprir o compromisso que assumi não apenas durante a campanha, mas ao longo de toda uma vida: fazer do Brasil um país mais desenvolvido e mais justo, com a garantia de dignidade e qualidade de vida para todos os brasileiros, sobretudo os mais necessitados.
Quero dizer que muito mais que a cerimônia de diplomação de um presidente eleito, esta é a celebração da democracia.
Poucas vezes na história recente deste país a democracia esteve tão ameaçada.
Poucas vezes na nossa história a vontade popular foi tão colocada à prova, e teve que vencer tantos obstáculos para enfim ser ouvida.
Ora, não há uma (única) vontade popular. A vontade popular ficou dividida. Praticamente a metade do eleitorado escolheu um candidato e a outra metade outro candidato. Lula venceu de acordo com as regras (venceu por menos de 2% dos votos, mas teria vencido por 0,0001%), mas isso não significa que sua escolha expresse “a vontade popular”.
A democracia não nasce por geração espontânea. Ela precisa ser semeada, cultivada, cuidada com muito carinho por cada um, a cada dia, para que a colheita seja generosa para todos.
Mas além de semeada, cultivada e cuidada com muito carinho, a democracia precisa ser todos os dias defendida daqueles que tentam, a qualquer custo, sujeitá-la a seus interesses financeiros e ambições de poder.
De quais “interesses financeiros” Lula está falando? Se for dos marginais farialimers, que apoiavam Bolsonaro, é um engano. O grande capital financeiro optou por Lula no segundo turno. Se for de uma ou duas dúzias de empresários folclóricos (como o “Véio da Havan”), é uma enganação. A maioria da grande indústria e até a parte mais capitalista do agronegócio também optaram por Lula no segundo turno.
Felizmente, não faltou quem a defendesse neste momento tão grave da nossa história.
Além da sabedoria do povo brasileiro, que escolheu o amor em vez do ódio, a verdade em vez da mentira e a democracia em vez do arbítrio, quero destacar a coragem do Supremo Tribunal Federal e do Tribunal Superior Eleitoral, que enfrentaram toda sorte de ofensas, ameaças e agressões para fazer valer a soberania do voto popular.
Cumprimento cada ministro e cada ministra do STF e do TSE pela firmeza na defesa da democracia e da lisura do processo eleitoral nesses tempos tão difíceis.
A história há de reconhecer sua coerência e fidelidade à Constituição.
Essa não foi uma eleição entre candidatos de partidos políticos com programas distintos. Foi a disputa entre duas visões de mundo e de governo.
De um lado, o projeto de reconstrução do país, com ampla participação popular. De outro lado, um projeto de destruição do país ancorado no poder econômico e numa indústria de mentiras e calúnias jamais vista ao longo de nossa história.
Aqui há uma clara falsificação. Não foi uma disputa entre duas visões de mundo e de governo. Havia vários candidatos com visões distintas. O Brasil não se divide em Lula e o PT, de um lado e Bolsonaro e os bolsonaristas, de outro: isso foi uma consequência do mecanismo de segundo turno.
E se havia “ampla participação popular” em prol do seu projeto, da sua visão e da sua candidatura (de Lula), por que então não houve ampla margem de votos a seu favor (e sim apenas 1,8%)? E por que Bolsonaro venceu em todas as regiões do Brasil, com exceção de uma (o Nordeste)?
Novamente, Lula volta com a conversa de que lutou contra o poder econômico. Mas a verdade é que o bolsonarismo não estava “ancorado no poder econômico”. Como já foi dito, alguns poucos empresários e operadores do mercado financeiro apoiaram Bolsonaro, mas o grande poder econômico, inclusive a maior parte dos banqueiros, apoiou Lula no segundo turno.
Não foram poucas as tentativas de sufocar a voz do povo.
Esta é uma frase tipicamente populista, que promove a identificação dos que o apoiaram (seja porque preferiam ele, seja porque queriam apenas remover Bolsonaro) com “a voz do povo”. Ora, quase a metade da população que votou em Bolsonaro não expressava também “a voz do povo”? Povo, nessa formulação lulista, é apenas quem o apoia. Os outros não são povo, são a voz das elites (do poder econômico). Isso é a própria definição de populismo.
Os inimigos da democracia lançaram dúvidas sobre as urnas eletrônicas, cuja confiabilidade é reconhecida em todo o mundo.
Ameaçaram as instituições. Criaram obstáculos de última hora para que eleitores fossem impedidos de chegar a seus locais de votação. Tentaram comprar o voto dos eleitores, com falsas promessas e dinheiro farto, desviado do orçamento público.
Intimidaram os mais vulneráveis com ameaças de suspensão de benefícios, e os trabalhadores com o risco de demissão sumária, caso contrariassem os interesses de seus empregadores.
Quando se esperava um debate político democrático, a Nação foi envenenada com mentiras produzidas no submundo das redes sociais.
Tudo isso aconteceu de fato, mas não explica o resultado apertado (quase um empate em termos estatísticos).
Eles semearam a mentira e o ódio, e o país colheu uma violência política que só se viu nas páginas mais tristes da nossa história.
E no entanto, a democracia venceu.
A democracia venceu porque as eleições ocorreram sem a quebra da normalidade democrática e o vencedor foi proclamado e diplomado de acordo com a Constituição, não porque o eleito foi Lula. A confusão aqui é deliberada.
O resultado destas eleições não foi apenas a vitória de um candidato ou de um partido. Tive o privilégio de ser apoiado por uma frente de 12 partidos no primeiro turno, aos quais se somaram mais dois na segunda etapa.
Uma verdadeira frente ampla contra o autoritarismo, que hoje, na transição de governo, se amplia para outras legendas, e fortalece o protagonismo de trabalhadores, empresários, artistas, intelectuais, cientistas e lideranças dos mais diversos e combativos movimentos populares deste país.
Tenho consciência de que essa frente se formou em torno de um firme compromisso: a defesa da democracia, que é a origem da minha luta e o destino do Brasil.
É falso. Não há frente ampla. Não há coordenação política conjunta plural e nem programa mínimo comum. O que houve foi uma frente eleitoral – correta do ponto de vista da democracia – para impedir a reeleição de Bolsonaro.
Aqui Lula promove uma fusão entre a defesa da democracia e a sua luta (pessoal), acrescentando o elemento mítico perigoso de que isso seria “o destino do Brasil”.
Nestas semanas em que o Gabinete de Transição vem escrutinando a realidade atual do país, tomamos conhecimento do deliberado processo de desmonte das políticas públicas e dos instrumentos de desenvolvimento, levado a cabo por um governo de destruição nacional.
Soma-se a este legado perverso, que recai principalmente sobre a população mais necessitada, o ataque sistemático às instituições democráticas.
Mas as ameaças à democracia que enfrentamos e ainda haveremos de enfrentar não são características exclusivas de nosso país.
A democracia enfrenta um imenso desafio ao redor do planeta, talvez maior do que no período da Segunda Guerra Mundial.
Na América Latina, na Europa e nos Estados Unidos, os inimigos da democracia se organizam e se movimentam. Usam e abusam dos mecanismos de manipulações e mentiras, disponibilizados por plataformas digitais que atuam de maneira gananciosa e absolutamente irresponsável.
A máquina de ataques à democracia não tem pátria nem fronteiras.
O combate, portanto, precisa se dar nas trincheiras da governança global, por meio de tecnologias avançadas e de uma legislação internacional mais dura e eficiente.
Que fique bem claro: jamais renunciaremos à defesa intransigente da liberdade de expressão, mas defenderemos até o fim o livre acesso à informação de qualidade, sem mentiras e manipulações que levam ao ódio e à violência política.
Nossa missão é fortalecer a democracia – entre nós, no Brasil, e em nossas relações multilaterais.
A importância do Brasil neste cenário global é inegável, e foi por esta razão que os olhos do mundo se voltaram para o nosso processo eleitoral.
Precisamos de instituições fortes e representativas. Precisamos de harmonia entre os Poderes, com um eficiente sistema de pesos e contrapesos que iniba aventuras autoritárias.
Precisamos de coragem.
É necessário tirar uma lição deste período recente em nosso país e dos abusos cometidos no processo eleitoral. Para nunca mais esquecermos. Para que nunca mais aconteça.
Democracia, por definição, é o governo do povo, por meio da eleição de seus representantes. Mas precisamos ir além dos dicionários. O povo quer mais do que simplesmente eleger seus representantes, o povo quer participação ativa nas decisões de governo.
É preciso entender que democracia é muito mais do que o direito de se manifestar livremente contra a fome, o desemprego, a falta de saúde, educação, segurança, moradia. Democracia é ter alimentação de qualidade, é ter emprego, saúde, educação, segurança, moradia.
Todas essas coisas – emprego, saúde, educação, segurança, moradia – são desejáveis, mas elas não definem a democracia. Autocracias como Brunei e Singapura também garantem isso para sua população. A ditadura chinesa vem avançando nas conquistas por melhores condições de vida para sua população.
Quanto maior a participação popular, maior o entendimento da necessidade de defender a democracia daqueles que se valem dela como atalho para chegar ao poder e instaurar o autoritarismo.
A democracia só tem sentido, e será defendida pelo povo, na medida em que promover, de fato, a igualdade de direitos e oportunidades para todos e todas, independentemente de classe social, cor, crença religiosa ou orientação sexual.
É com o compromisso de construir um verdadeiro Estado democrático, garantir a normalidade institucional e lutar contra todas as formas de injustiça, que recebo pela terceira vez este diploma de presidente eleito do Brasil – em nome da liberdade, da dignidade e da felicidade do povo brasileiro.
Muito obrigado.