A Grécia como berço do ideal democrático e liberal
Catarina Rochamonte, Instituto Liberal (14-17/11/2022)
PARTE I
Atenas é a última das grandes cidades gregas a aparecer na história, portanto, o Estado jurídico ático pressupõe um longo processo de evolução que esboçaremos sucintamente aqui, ressaltando os pontos mais relevantes para a tradição democrática, liberal e humanista que pretendemos expor e defender.
Justiça, lei e ordem
Embora A República de Platão e a Política de Aristóteles sejam comumente referidas como as primeiras grandes obras a teorizarem a política, é preciso considerar que a própria cidade grega clássica (a pólis, de onde provém o termo política) antecede esses escritos, que são, na verdade, reflexões tardias acerca da singular formação política grega, cujo processo se desenvolveu entre o fim da idade média grega até a época de Sócrates e dos sofistas.
Não se trata apenas de um desenvolvimento político, mas do desenvolvimento cultural e do refinamento espiritual grego, que tem no surgimento da polis e da política uma de suas etapas e de suas culminâncias. Esse processo de evolução confunde-se com a consolidação da justiça (díke) como o mais alto ideal a ser buscado, como a areté (virtude) por excelência.
Na obra Histoire des idée politiques dans l´Antiquité au Moyen Age, Philippe Nemo divide didaticamente esse processo da formação política grega em três etapas: a primeira seria a legitimação das noções de justiça (themis, dikè) e ordem social (eunomia) por meio do aparecimento e da valorização de tais noções nas obras de Homero e Hesíodo; a segunda seria a tomada de consciência de que a justiça só pode ser garantida por intermédio de uma lei (nomos) igual para todos (isonomia) que deve ser escrita, e a terceira etapa seria a conscientização de que a própria lei pode ser tirânica e que, por isso, deve poder ser criticada, passando a possibilidade dessa crítica pela distinção entre natureza (physis) e convenção (nomos) [1].
A nova moral grega começa a se delinear na obra de Homero: “embora Homero ainda sustente o ideal de destreza guerreira como a mais alta medida de valor da personalidade humana, na Odisseia já se percebe uma elevada estima pelas virtudes espirituais [2]”. Nessa obra, já existe, por exemplo, a noção de que os julgamentos proferidos podem ser corrompidos, donde a importância de um senso de justiça, virtude atribuída ao personagem Ulysses.
Embora houvesse, na Grécia arcaica, uma administração da justiça, não havia leis públicas fixas, muito menos escritas. Esse antigo estado de coisas está descrito da obra de Homero, como bem nos explica Werner Jaegar na sua obra Paideia: a formação do homem grego, no capítulo intitulado “O estado jurídico e seu ideal de cidadão”. Enquanto themis é a justiça decretada por um Deus ou por um rei, díke é um veredito que se opõe à hybris (aquilo que é desregrado ou perverso):
“É com outro termo que se designa, em geral, o direito: thémis. Zeus dava aos reis homéricos “cetro e thémis. Thémis era o compêndio da grandeza cavaleiresca dos primitivos reis e nobres senhores. Etimologicamente significa “lei.” Os cavaleiros dos tempos patriarcais julgavam de acordo com a lei proveniente de Zeus, cujas normas criavam livremente, segundo a tradição do direito consuetudinário e o seu próprio saber. O conceito de díke não é etimologicamente claro. Vem da linguagem processual e é tão velho quanto thémis.” [3]
No período da pólis, posterior aos tempos homéricos, esse significado técnico da díke será alargado, relacionando-se mais ao elemento normativo que se encontra no fundo daquelas antigas formas jurídicas:
“Significa que há deveres para cada um e que cada um pode exigir, e, por isso, significa o próprio princípio que garante essa exigência e no qual se poderá apoiar quem for prejudicado pela hýbris – palavra cujo significado original corresponde à ação contrária ao direito. Enquanto thémis refere-se principalmente à autoridade do direito, à sua legalidade, e à sua validade, díke significa o cumprimento da justiça. Assim se compreende que a palavra díke se tenha convertido necessariamente em grito de combate de uma época em que se batia pela consecução do direito uma classe que até então o recebera apenas como thémis, quer dizer, como lei autoritária. O apelo à díke tornou-se de dia para dia mais frequente, mais apaixonado e mais premente.” [4]
Jaeger destaca ainda que, na acepção mais ampla, a palavra díke trazia consigo, na sua origem, o sentido de igualdade, e que foi na exigência de igualdade, implícita no conceito de díke, que se consolidou a medida justa para a atribuição do direito, dando início a uma evolução política que, por extensão sucessiva da ideia de igualdade, levaria à instauração da democracia:
“Esse matiz de igualdade na palavra díke mantém-se no pensamento grego através de todos os tempos. Depende dele a própria doutrina filosófica do Estado dos séculos seguintes, a qual trata apenas de conseguir uma nova elaboração do conceito de igualdade, que, na versão mecanizada em que subsistia no Estado jurídico democrático, opunha-se abruptamente à doutrina aristocrática de Platão e Aristóteles sobre a desigualdade dos homens.” [5]
A democracia enquanto governo do povo ou das massas não deriva necessariamente da exigência da igualdade de direitos e de leis escritas, mas o Estado de direito sim. O que hoje chamamos de Estado democrático de direito ou democracia liberal tem início, no Ocidente, com uma consciência jurídica na qual os ideais de liberdade e igualdade mesclam-se de um modo quase indiscernível. Essa vontade de justiça que está na origem da nossa formação cultural e política desenvolve-se na vida comunitária da pólis e “converte-se numa nova força formadora do homem, análoga ao ideal cavaleiresco do valor guerreiro nos primeiros estágios da cultura aristocrática” [6]. Esse novo ideal humano da pólis antiga é aceito pela filosofia do século IV a.C., sendo a antiga cidade-estado, segundo Jaeger, o primeiro estágio na caminhada do ideal humanista e a raiz da ética filosófica de Platão e Aristóteles.
Se a obra de Homero tergiversa entre uma moral arcaica e uma moral pré-cívica, a obra de Hesíodo surpreende – do ponto de vista da contraposição à moral aristocrática da Grécia arcaica e guerreira – ao expor, em Os trabalhos e os dias, uma grande valoração do trabalho, da paz e da justiça.
A justiça e o trabalho se complementam: Zeus, que condenou o homem ao trabalho, concedeu-lhe também a justiça para que trabalhe em paz [7], sendo o próprio trabalho indutor da justiça. Hesíodo afirma, na referida obra, que existem duas formas de luta: uma negativa, destrutiva, praticada pelos aristocratas, e outra positiva, que direciona a mesma força vital para o trabalho, sendo o motor de uma competição sadia e de uma concorrência fecunda; o trabalho, a produção e a emulação que a impulsionam seriam uma espécie de remédio para as querelas civis e as guerras [8]. A mensagem que brilha, portanto, nos versos de Hesíodo é a de que o reino do direito deve suplantar o reino da força e que a sociedade não deve se apoiar sobre a violência e a hýbris. Por mais que prevaleça o direito do mais forte, o ideal de um Estado de Direito se delineia:
“Vimos que foi a ideia do direito que deu ao ansioso pensamento do homem um ponto firme de apoio, naqueles tempos de violentas alterações da ordem social econômica, motivadas pelas tentativas de uma maior participação possível nos bens do mundo. Hesíodo foi o primeiro a apelar para a divina proteção da Díke, na sua luta contra a cobiça do irmão. Celebra-a como protetora da comunidade contra a maldição da hýbris e designa-lhe um lugar ao lado do trono do altíssimo Zeus.” [9]
O período que vai do reaparecimento da escrita até o estabelecimento da democracia em Atenas, sob Clístenes, convencionalmente chamado de Arcaico (750 – 500 a.C.), marca a consolidação da pólis e daquilo que muitas vezes foi chamado “milagre grego.” Essa evolução de Atenas começa, de certa forma, com o arconte Drácon. Isso porque, embora tenha editado leis severas (“draconianas”), tais leis foram supostamente estabelecidas no intuito de reestabelecer a ordem e pôr fim a um conflito social, refreando a vingança após um massacre relacionado a um golpe de Estado de Cilón. Para Jaeger, porém, as proverbiais leis draconianas significaram “mais uma consolidação das relações recebidas que um rompimento com a tradição” [10]. De todo modo, importa notar que essas leis foram escritas, tendo sido decidido que elas seriam aplicadas a todos indistintamente, o que representa um primeiro passo em direção ao ideal de isonomia.
Sólon, por sua vez, vai além de Drácon ao empreender uma codificação escrita das leis e abala o status vigente ao defender que nem a origem social nem as relações hereditárias definem os direitos. Embora os direitos ainda estejam relacionados à riqueza, a mudança não deixa de ser um progresso considerável.
Sólon foi um dos chamados “sete sábios” pela tradição. Esses sábios contribuíram vivamente para a organização da pólis e para a difusão de um pensamento laico e racional. Esses legisladores e pensadores políticos foram contemporâneos dos primeiros filósofos gregos, os chamados filósofos da physis. O próprio Thales de Mileto, considerado o primeiro filósofo, foi também um desses sete sábios. Trata-se, portanto, de um momento singular de efervescência cultural e espiritual no qual se buscou apreender tanto as leis do universo quanto as leis sociais. A própria ideia de lei é a marca desse momento. O mundo não é caos, é cosmos, ou seja, ele é perpassado por uma racionalidade que o ordena, por uma lei que não é simplesmente a imposição de uma potência sagrada antropomórfica, mas é uma justiça racional:
“Sólon concebe claramente a ideia de uma legalidade intrínseca da vida social. Convém recordar que na Jônia Tales e Anaximandro, filósofos da natureza milesianos, ensaiavam por essa época as primeiras passadas na ousada senda do conhecimento de uma lei estável do devir eterno da natureza. Aqui como lá, trata-se do mesmo impulso para uma concepção intuitiva de uma ordem imanente no curso da natureza e da vida humana e, portanto, de um sentido e de uma norma interna da realidade.” [11]
Com as novas condições da vida social na polis, forma-se o cidadão como um novo tipo de homem, moldado a partir de uma moral mais refinada na qual o autodomínio, a moderação, a temperança, em uma palavra, a sophrosine passa a ser buscada como uma das principais virtudes. O ideal da justa medida se sobressai e, com ele, a evidência da necessidade da lei. A justiça (dikè) espelha uma lei comum superior que garante o acordo e harmonia entre as partes.
Sólon tem um papel fundamental na defesa desse novo ideal, aproximando dikè e sophrosyne e apresentando a obediência à lei como a atitude mais compatível com os seres racionais que somos. Já se pode falar aqui de uma ideia fundamental para o pensamento político ocidental, de um modo geral, e para o liberalismo, de modo particular: o aparecimento da lei como forma de estabelecer harmonia entre os homens não por imposição arbitrária, mas como forma legítima e consensualmente aceita de garantir a segurança e a prosperidade dos cidadãos. Aqui cabe a apresentação de uma interessante anedota destacada por Plutarco:
“Um amigo de Sólon […] vendo-o redigir as leis gargalhou e objetou que simples textos não podem nada contra as injustiças e a ambição dos cidadãos. ‘Esses textos são como teias de aranha: retêm os fracos e os pequenos que ficam presos nela, mas sob os pés dos ricos e poderosos elas se rompem’. Sólon respondeu a isso dizendo: os homens mantêm os contratos que nenhuma das duas partes têm interesse em violar e eu, de minha parte, adapto as leis aos cidadãos de modo a lhes fazer ver que é melhor praticar a justiça do que a ilegalidade”. [12]
Sólon pautou sua atuação político-legislativa pela crença na força transcendente da justiça. Embora as ideias relacionadas ao direito e à lei que ele propagava e defendia já prevalecessem na vida pública da Jônia, o entusiasmo poético com o qual ele as difundiu moldou para as gerações vindouras um novo tipo de homem, um novo ideal a ser buscado:
“Também Sólon fundamenta sua crença política na força de Díke, cuja imagem descreve com visível coloração hesiódica. […]Sólon não redescobriu as ideias de Hesíodo. Não precisava fazê-lo: limitou-se a desenvolvê-las. Também ele está convencido de que o direito tem um lugar insubstituível na ordem divina do mundo. Não se cansa de proclamar que é impossível passar por cima do direito, porque este acaba sempre por triunfar. Assim que a hýbris humana ultrapassa os seus limites, sobrevêm, cedo ou tarde, o castigo e a necessária compensação.” [13]
A ideia de lei traz consigo o ideal de igualdade, que se desenvolve progressivamente com Sólon, Clístenes e Péricles. Em Sólon a defesa da igualdade guarda o tom aristocrático: seu foco é igualdade diante da lei (isonomia) e não um igualitarismo radical (isomoiria). Ele sabe que a radical igualdade reclamada muitas vezes pelo povo só poderia ser obtida por meio de uma tirania, que transformaria os cidadãos em escravos. São as reformas políticas de Clístenes que democratizarão a igualdade para além da isonomia, ampliando a participação do demos nos processos decisórios da pólis, estabelecendo que todos os cidadãos poderiam participar igualmente das decisões e das nomeações políticas (seja por voto ou sorteio aleatório):
Com Clístenes, a pólis acaba se tornando um universo homogêneo, sem status hierárquicos, onde todos os cidadãos sucedem-se regularmente nos lugares de comando e obediência e pensam em si mesmos definitivamente como iguais em dignidade, juízes igualmente competentes de uma verdade racional e de uma lei que não expressa a vontade ou o privilégio de ninguém, mas são uma realidade objetiva que se impõe a todos [14].
Na época da Guerra do Peloponeso, Péricles retomará aspectos da democracia reformada por Clístenes e a luta contra o partido oligárquico, minoria que se apresentava como kaloi kagotoi (bela e boa) e que se contrapunha ao povo [15]. A fim de fortalecer o poder do demos, Péricles aprimora procedimentos políticos, criando, por exemplo, o misthós, retribuição pecuniária paga aos cidadãos atenienses mais pobres que exercessem funções públicas: é o esboço do nosso moderno aparelho de Estado [16].
Mesmo entre pensadores de pendor mais aristocrático, a noção de lei acaba ganhando aderência. Mas, junto à aceitação e defesa da lei, advém também alguns questionamentos: a lei tem caráter absoluto ou relativo? Ela está sempre em consonância com a justiça ou a justiça a transcende? O primeiro grande historiador grego, Heródoto, tendo desenvolvido suas pesquisas por muito tempo através de diversos países, verificou que os costumes e as leis que regem uma sociedade não têm a mesma fixidez e imutabilidade das leis naturais. Está posta, portanto, em Heródoto, a distinção entre physis e nomos que atingirá seu apogeu na segunda metade do século V com Protágoras e outros sofistas:
“Estava surgindo uma nova geração que começava a perceber que o nomos poderia ser uma tirania, uma série de costumes e convenções impostas aos homens que pode nem sempre querer conformar-se a ela. Após um “olhar circular” em todos os países conhecidos, pode-se preferir os costumes dos outros e ter dúvidas sobre a validade dos seus próprios costumes. O espírito crítico, mesmo revolucionário, é despertado por esta consciência decisiva, amplificada pelos sofistas.” [17]
Notas da Parte I
[1] NEMO, Philipe. Histoire des idée politiques dans l´Antiquité au Moyen Age. Paris : Quadrige/PUF, 1998. p.38
[2] ROCHAMONTE. C. Introdução à Filosofia política: democracia e liberalismo. São Paulo: Edições 70, 2022. p.21
[3] JAEGER, W. Paideia: a formação do homem grego. São Paulo: WMF Martins Fontes, 2013. p.134
[4] JAEGER, W. Paideia: a formação do homem grego.p.135
[5] Ibid. p.135
[6] Ibid. p.138
[7] NEMO, Philipe. Histoire des idée politiques dans l´Antiquité au Moyen Age. p.51
[8] Ibid. p. 50-51
[9] JAEGER, W. Paideia: a formação do homem grego.p.178
[10] Ibid. p.175
[11] JAEGER, W. Paideia: a formação do homem grego.p.180
[12] PLUTARCO. Vida de Sólon. Apud NEMO, Philipe. Histoire des idée politiques dans l´Antiquité au Moyen Age. P. 79
[13] JAEGER, W. Paideia: a formação do homem grego.p.178
[14] NEMO, Philipe. Histoire des idée politiques dans l´Antiquité au Moyen Age p.84
[15] Idem.p.92
[16] Segundo Aristóteles (Constituição de Atenas), o Estado ateniense sob Péricles acabou apoiando com fundos públicos mais de 20.000 funcionários.
[17] NEMO, Philipe. Histoire des idée politiques dans l´Antiquité au Moyen Age p.103
PARTE II
Os sofistas, a política e o humanismo de Protágoras
O problema do caráter natural ou convencional daquilo que é considerado justo ou injusto é abordado pela maioria dos sofistas, embora a resposta dada a essa questão não seja sempre a mesma. É quase lugar comum a afirmação de que os sofistas teriam contraposto a lei à natureza, mas apenas Hípias e Antifonte estabeleceram explicitamente essa contraposição [1].
Hípias desvaloriza a lei na medida em que esta se afasta da natureza. Para ele, a natureza une os homens, ao passo que a lei frequentemente os divide. Dessa distinção entre lei natural e lei posta pelos homens, ele tira conclusões importantes que apontam para um ideal cosmopolita e igualitário que será desenvolvido posteriormente no período helenista. Hípias mostra, por exemplo, que as leis discriminatórias que separam os cidadãos de uma cidade e outra ou que dividem os cidadãos dentro de uma mesma cidade não fazem sentido se tomarmos por base a natureza, que iguala todos. Fundamentando-se também na distinção entre natureza e lei, Antifonte radicaliza ainda mais tais concepções, afirmando que gregos e bárbaros são por natureza absolutamente iguais e rejeitando, por conseguinte, discriminações baseadas nas origens [2]:
“O “iluminismo” sofístico dissolveu aqui não só os velhos preconceitos de casta da aristocracia e o tradicional fechamento da pólis, mas também o mais radical preconceito comum a todos os gregos acerca da própria superioridade em relação aos outros povos: todo cidadão de qualquer cidade é igual ao da outra e todo homem de qualquer classe é igual ao da outra, porque por natureza todos os homens são iguais entre si.” [3]
Philippe Nemo destaca como característica geral entre os sofistas a consciência de que o nomos “deve ser libertado do jugo da tradição e da sacralidade; que ele pode ser alterado pelos homens, seja criando-o arbitrariamente, seja, ao contrário, modificando-o para aproximá-lo de um padrão ideal [4]”. Werner Jaeger, por sua vez, destaca como aspecto comum a todos os sofistas “o fato de serem mestres da areté política e aspirarem a alcançá-la mediante o fomento da formação espiritual, qualquer que fosse a sua opinião sobre a maneira de realizá-la [5]”. Enquanto uns, como Górgias, ensinavam apenas a retórica, outros, como Protágoras, iam além de uma educação meramente formal do entendimento e estimulavam o desenvolvimento da totalidade das forças espirituais: “a poesia e a música eram para ele as principais forças modeladoras da alma, ao lado da gramática, da retórica e da dialética. É na política e na ética que mergulham as raízes dessa terceira forma de educação sofística [6]”.
A educação universal almejada por Protágoras é uma educação política, uma vez que, nesses tempos clássicos, a ideia de uma paideia, de uma alta formação é inseparável da ideia de Estado e sociedade [7]. Essa educação para o Estado significa, para Protágoras, educação para a justiça [8].
Vimos que no séc. V Atenas entrava em sua era de ouro, sob a liderança de Péricles, atraindo de toda a Grécia os que se destacavam por serem conhecedores e bons intérpretes das leis. Dentre estes estava Protágoras que, em 444.a.C, já havia sido encarregado por Péricles de redigir a legislação de uma das colônias gregas.
Reconhecido e admirado não apenas por Péricles, mas também por ilustres filósofos da época, Protágoras se ocupa principalmente com aquilo que torna possível a sociedade política e a sua conservação, além de buscar ensinar o decoro e a justiça, virtudes necessárias para que a pólis possa existir da melhor maneira possível.
Protágoras entende a justiça como aquilo que é útil à pólis e o mais útil é a sua conservação, sem a qual não pode existir o cidadão. Não se trata, portanto, de pensar uma justiça absoluta e transcendente, mas uma justiça concernente ao âmbito de uma realidade fenomênica, que se apresenta e se constitui na pólis. Essa realidade com a qual Protágoras se ocupa é a realidade política, que também é a região da doxa, da opinião, donde a importância da lógica, do argumento bem encandeado, ferramentas que os sofistas manejavam muito bem. A virtude política, que torna possível e boa a vida em comunidade, está vinculada à sua utilidade para a própria pólis.
No âmbito da política ou da jurisprudência, a justiça seria alcançada não pelo conhecimento absoluto almejado pela filosofia, mas por uma convergência momentânea de pontos de vista contraditórios. A política, estando mais circunscrita ao âmbito da persuasão que ao da busca da verdade, encontra na retórica seu instrumento. Com a arte da retórica, os sofistas ensinavam a tornar forte o argumento mais fraco, municiando seus discípulos para um torneio de argumentos e contra-argumentos, ensinando-os a crítica e a persuasão.
Com a sua doutrina do homem-medida, Pânton chremáton metron estin ánthropos (“O homem é a medida de todas as coisas”), Protágoras introduz o humanismo no pensamento grego: não são mais o cosmos ou os deuses que estabelecem as leis e os limites, mas o próprio homem.
A interpretação dessa famosa sentença de Protágoras requer alguma cautela. Ao apresentá-la no diálogo Teeteto, Platão a reduz a um relativismo gnosiológico (“o que é para mim é para mim, o que é para ti é para ti.”) e o homem-medida acaba sendo apresentado como o indivíduo, embora não se possa depreender do próprio Protágoras que ele deva ser tomado em outro sentido que não o mais genérico. Segundo alguns especialistas, a particularização do conceito homem no referido diálogo teria sido exposta no interesse das hipóteses metafísicas e teológicas que Platão queria demonstrar.
Essa ressalva é importante porque tê-la em mente possibilita mitigar ou moderar o relativismo de Protágoras, ressaltando os seus aspectos positivos e a importância política e pedagógica dessa valorização do homem. Na política, importa a doxa, a opinião dos cidadãos na medida em que formam consensualmente decisões úteis para a comunidade. O que Protágoras se propõe a ensinar como sendo uma espécie de techné política é a capacidade de conhecer o que é bom – ou seja, o que é útil para a pólis – e de persuadir os cidadãos fazendo com que aquilo que é bom também pareça bom e justo para todos.
Protágoras desenvolve uma pedagogia em consonância com o seu relativismo. O seu ensino focaliza as virtudes necessárias ao bem comum. A realidade que ele busca conhecer e ensinar não é a realidade metafísica do ser, mas a realidade humana, criada pelo homem e transformada por ele. Essa transformação se faz pela educação, ou melhor, por uma paideia, uma formação integral que envolve mente e corpo. A transformação social que assegura a manutenção e o progresso da pólis passa pela formação dos indivíduos segundo o ideal do cidadão.
Essa formação deve ser universal. Os sofistas têm o mérito de iniciar a transição de uma educação privada, limitada à nobreza, para uma educação generalizada, aberta a todos os cidadãos. Com eles, a antiga paidéia aristocrática aproxima-se da moderna educação urbana. Embora o ideal de formação aristocrática baseada na areté guerreira e heroica seja substituído pela areté política, esse novo ideal de formação é extremamente abrangente, implicando um conjunto de exigências física e espirituais.
O posterior conflito pedagógico de Platão com Protágoras se dará em dois níveis. O primeiro é político: Platão tinha uma concepção aristocrática de ensino, enquanto Protágoras tinha uma concepção democrática [9]; o segundo é teórico-filosófico: a sabedoria que sustenta o projeto platônico é de base ontológica, enquanto a sabedoria que sustenta o projeto de Protágoras e dos sofistas em geral é empírica e pragmática. Para quem sente frio, conseguir um agasalho é mais importante do que inquirir sobre a essência do calor e do frio. Há problemas inerentes à vida comum que precisam ser abordados com um tipo de sabedoria prática.
A sofística faz parte de uma tradição tanto de valorização quanto de dessacralização do logos: “O logos dos sofistas não é um organon, um instrumento necessário para mostrar ou demonstrar o que é, mas um pharmakon, um remédio para o melhoramento da alma e da cidade [10]”. O sábio sofista é uma espécie de médico: assim como o médico se vale de um medicamento para melhorar o corpo de um homem doente, o sofista se vale das palavras para cuidar um mau estado da alma dos cidadãos. Por meio de discursos eloquentes, o sofista consegue trocar opiniões más e nocivas por opiniões benéficas e úteis, melhorando assim a própria pólis.
Note-se que não se trata de substituir a doxa por uma episteme, como pretenderá Platão. O que se almeja não é substituir a opinião pela verdade, mas uma opinião perniciosa por outra opinião mais sadia. Assim como a recuperação da saúde do corpo pode se dar por métodos radicais (incisões, ablações, cauterizações) ou métodos menos traumáticos (dietas, medicamentos), também a recuperação ou a manutenção da saúde do corpo social pode se dar por métodos violentos (repressões, insurreições, revoluções) ou por métodos lentos e graduais (por meio da persuasão discursiva). A educação sofística transforma a alma do aluno para melhor através do logos e essa transformação se mostra útil, vantajosa e benéfica para a pólis porque predispõe os ouvintes ao acordo necessário para a vida em comunidade.
A política é uma questão de logos. É a controvérsia que possibilita o triunfo da opinião mais vantajosa, que emerge como consenso momentâneo do choque de uma pluralidade de ideias e de opiniões dissonantes. O logos se confunde com a arte política e a polis se constitui na retórica. O que o homem-medida de Protágoras proclama é que a medida do homem está na palavra, e que a vida política encontra nela seu fundamento:
“Polis, logos, sofística: o caráter eminentemente político da sofística é, antes de tudo, uma questão de logos, termo em que o grego liga, como se sabe, na maneira de relacionar as coisas entre si, o fato de pensar e o de falar. Os sofistas certamente não teriam existido sem essa cidade por excelência que é a Atenas de Péricles e a multidão reunida em que são recrutados seus ricos alunos. Mas tampouco a cidade grega – que Aristóteles continuará a definir como composta de animais mais políticos do que outros simplesmente porque falam, a mesma que Jacob Burckhardt chamará de “o sistema mais tagarela de todos” – teria existido, no melhor ou no pior dos casos, sem esses estrangeiros ruidosos.” [11]
Notas da Parte II
[1] REALE, História da Filosofia V. I São Paulo: Paulus Editora; 2017. p.79
[2] REALE, p.79
[3] REALE, p.79-80
[4] NEMO, Philipe. Histoire des idée politiques dans l´Antiquité au Moyen Age, p.104
[5] JAEGER, W. Paideia: a formação do homem grego, p. 343
[6] JAEGER, W. Paideia: a formação do homem grego p.342
[7] Ibid. p.351
[8] Ibid.p.374
[9] “O paradoxo inerente ao ensino de Protágoras, bem como a seu mito, aparece então muito claramente: todos na cidade ensinam a virtude, como todos ensinam a falar grego, e todos conhecem tudo isso; no entanto, há alunos mais dotados do que outros e professores que, como Protágoras, cobram por isso. Todos, sem exceção, participam do político assim como falam: o mito de Protágoras é simplesmente o mito fundador da democracia. Mas alguns são diferencialmente “melhores”, sendo reconhecidos como tal e devendo ser escutados: é, enfim, um mito fundador da aristocracia. Donde se constata que democracia e aristocracia são ligadas pela pedagogia, pela paideia. Mas o fato de escolher ser um mestre pago ao invés de um filósofo-rei que subjuga talvez seja a maneira propriamente sofística – no final das contas, espantosamente moderna – de desunir ética e política, assegurando, simultaneamente, a democracia.” (CASSIN, Bárbara. O efeito sofístico: sofística, filosofia, retórica, literatura. São Paulo: Ed. 34, 2005 p.69)
[10] CASSIN, Bárbara. O efeito sofístico: sofística, filosofia, retórica, literatura. p.66
[11] CASSIN, Bárbara. CASSIN, Bárbara. O efeito sofístico: sofística, filosofia, retórica, literatura. p.66
PARTE III
Aristóteles: justiça, lei e prudência
A cidade (polis), segundo Aristóteles, é a forma da comunidade humana na qual o homem pode florescer e realizar todas as suas virtudes, mais especificamente a virtude mais excelente: a justiça. A polis não é uma formação artificial, mas uma construção natural, espontânea; viver em comunidade é um atributo essencial do homem. Mas o homem não é um animal gregário como outros animais que vivem em sociedade; ele é um animal político. A sua peculiaridade é o logos, a capacidade racional, discursiva, deliberativa que faz com que a comunidade humana se constitua não apenas como garantia da sobrevivência, mas também como um espaço de realização da justiça.
Em uma comunidade natural ou sociedade primitiva há diferenças e desigualdades. A diversidade é natural e é benéfica para a prosperidade, mas há algumas desigualdades que equivalem a injustiças e que podem e devem ser mitigadas pelo homem. Quer se trate da justiça distributiva (cada um recebe do bem comum uma parte igual) ou da justiça comutativa (as coisas trocadas devem ter o mesmo valor), a justiça é, para Aristóteles, uma forma de equidade. Essa forma superior de justiça só pode ser realizada no interior da polis, por intermédio da lei, que deverá submeter todos igualmente (isonomia).
Ao distinguir o uso teórico e o uso prático da razão, Aristóteles troca a contemplação platônica da ideia de bem pela pergunta acerca do bem possível de ser atingível pela ação humana. A justiça também é pensada nessa esfera prática, sendo ressaltada na definição dada por Aristóteles como uma de suas principais marcas o fato de concernir ao bem alheio.
Em um sentido amplo, Aristóteles identifica a justiça com a obediência ao nomos, isto é, o conjunto de normas sociais. Esse termo, porém, é empregado pelo filósofo com certa ambiguidade, significando não apenas as leis, mas também os costumes, as formas da vida de dada sociedade. Em relação a essa moralidade social, Aristóteles nem a despreza nem a aceita acriticamente, mas busca nela o que há de verdadeiro e bom, levando em consideração que o êxito de uma legislação depende, em boa medida, de sua conformidade aos usos e costumes da sociedade no interior da qual ela é elaborada.
Na acepção mais estrita, como vimos, nomos corresponde às normas de direito positivo. Em relação a elas, tem-se que são boas as leis que promovem o bem comum e orientam as ações no sentido da virtude, desencorajando o vício. Orientar, porém, não equivale a obrigar, pois, para Aristóteles, um dos requisitos do ato virtuoso é a escolha livre da virtude por ela mesma, independente de coação ou interesses.
Os produtos da arte legislativa são considerados justos, pois, por definição, as leis visam ao bem comum. Sabe-se, porém, que nem todos os legisladores dominam a arte de legislar com perfeição e que há constituições retas e corrompidas. Mesmo assim, é preferível que uma sociedade seja regida por leis imperfeitas do que largada ao caos da ausência de lei, o que configuraria o fim da comunidade política.
Vê-se que Aristóteles confere grande importância à lei como critério de justiça, embora mantenha a ressalva de que leis podem ser mal formuladas ou servir a fins injustos. Sendo expressa em termos gerais e abstratos, a lei tende a preservar um princípio racional que guarda alguma distância das paixões e dos interesses particulares suscitados em cada situação concreta. Embora o homem prudente permaneça como critério último de correção moral, é forçoso notar que são poucos os homens prudentes no sentido idealizado por Aristóteles. Daí a importância da lei, que obriga o legislador a refletir também em abstrato, já que nem todo homem é capaz de discernir com prudência o que é melhor em cada situação concreta.
A boa ordenação política de uma sociedade, porém, não se constrói apenas considerando o lado dos governantes. É preciso levar em conta também a comunidade destinatária das normas. Em qualquer sociedade haverá aqueles que, tendo cultivado bons hábitos, tenderão naturalmente a fazer o que é certo, submetendo-se às leis justas, e aqueles que, não os tendo cultivado, encaminhar-se-ão naturalmente para o vício, caso não haja sanção rigorosa que os coloque no reto caminho. As leis, são feitas, portanto, para serem obedecidas, seja por inclinação, seja por medo da punição.
Os dispositivos legais podem ser avaliados segundo o critério de adequação à concepção de justiça presente em uma dada constituição ou segundo a adequação a um critério básico de justiça ao qual a própria constituição deve estar submetida. Aristóteles sustenta, portanto, uma dimensão natural dos padrões de justiça, ancorada na noção de bem comum e naquilo que é bom para o homem conforme a sua natureza. Existe, pois, uma dicotomia natural-legal no interior da justiça política:
“Da justiça política, parte é natural, parte legal – é natural aquilo que tem em todo lugar a mesma força e não existe em razão de as pessoas pensarem isso ou aquilo; legal, aquilo que é originalmente indiferente, mas, uma vez que tenha sido estabelecido, não é indiferente.” [1]
Ao dar exemplos de normas gerais ou decretos considerados como justo legal, Aristóteles procura esclarecer que não há nada legalmente justo ou injusto antes que a norma tenho sido convencionada. A força normativa do justo legal é sancionada, portanto, pela autoridade, ao contrário do justo natural, cuja força normativa é revestida de caráter moral, independentemente de ser sancionada ou não por uma autoridade política. Não se trata de pôr em questão a necessidade da existência de algumas normas cujo fundamento reside na própria autoridade reconhecida como detentora de tal poder, mas de apontar também para a existência de um justo natural que, em alguns casos, deve ser apresentado como padrão.
O justo natural, porém, não é concebido como algo imutável ou absoluto. Para Aristóteles, embora tudo possa mudar, ainda assim há algo justo por natureza [2], o que equivale a dizer que o justo natural dependerá das circunstâncias e deverá ser avaliado caso a caso. Se, por um lado, não há no direito natural regras abstratas a serem deduzidas a priori, há, por outro lado, uma base ou critério fornecido pelo justo natural que é independente da relatividade da opinião ou da autoridade constituída.
Existem, em suma, o justo natural e o justo legal, devendo este ser estatuído com vistas àquele: o justo legal deve consistir em uma especificação do justo natural através da deliberação do legislador, o que nem sempre ocorre de maneira adequada.
Embora haja situações nas quais o justo e o injusto só podem ser determinados a partir da avaliação do caso concreto, há também algumas ações que, por natureza, são sempre injustas e outras que, no mais das vezes, são justas. As leis devem ser justas e orientar a conduta na direção daquilo que se concebe como justiça. Não basta, porém, apenas a concepção de leis justas; é preciso que se fixe na sociedade o hábito de obedecê-las. De acordo com o exposto, evidencia-se a importância da prudência (phrónesis) ou, mais especificamente ainda, do homem prudente para a avaliação daquilo que é justo em cada caso particular.
A ética é classificada por Aristóteles como uma ciência prática, motivo pelo qual não se deve buscar nela a mesma precisão que se busca nas ciências teóricas. As ciências práticas lidam com a ação humana, esfera essencialmente sujeita à mudança e à indeterminação; abordá-las com a racionalidade do físico ou do matemático equivaleria a distorcer a essência de seus fenômenos mais relevantes.
A ciência prática preocupa-se com o homem enquanto ser autoconsciente e enquanto fonte de ação. A finalidade da ciência prática não é exatamente um conhecimento, mas o aprimoramento da ação. Diferentemente da ciência teórica, que é demonstrativa e se dá por análise dos princípios ou causas, a ciência prática é deliberativa e pressupõe uma certa capacidade de lidar com a contingência, pesar razões rivais, além de moderar e dirigir emoções a fim de agir com acerto. A phrónesis (sabedoria prática ou prudência) é essa capacidade.
Aristóteles segue, no essencial, a ética socrático-platônica, no sentido de aderir à doutrina que aponta a racionalidade como sendo a parte mais excelente da alma e a via boa como aquela conduzida segundo os preceitos dessa parte mais excelente. Há, porém, uma diferença importante em relação a Platão no que concerne ao bem a ser buscado: não se trata, em Aristóteles, de ascender dialeticamente ou asceticamente até a ideia de Bem transcendente, até o Bem em si, mas se trata de inquirir acerca do bem imanente e realizável pelo homem.
A phrónesis não determina os fins a serem atingidos pelo homem (estes são postos pela virtude ética que encaminha o querer da forma correta), mas ela aponta os meios idôneos para que o indivíduo alcance o fim almejado pela reta razão. Isso mostra que a phrónesis não pode ser considerada uma mera razão instrumental utilizada para escolher os melhores meios independentemente do fim. Pelo contrário, ela é o saber que possibilita a eficácia da intenção moral. É por isso que Aristóteles afirma que não é possível ser virtuoso sem ter prudência nem ser prudente sem ser virtuoso. É que a phronesis não é uma virtude qualquer, localizada, situada; ela é a condição necessária (mas não suficiente) de todas as virtudes éticas, sendo também aquilo que, de certa forma, as unifica [3]. Na ética aristotélica, trata-se menos de destacar dentre as virtudes cardeais uma que seria a mais excelente do que apresentar a phronesis como a condição de efetivá-las.
O maior bem, aquilo que todo ser humano busca é a felicidade, mas, considerando a constituição racional/espiritual do homem, tem-se que a autêntica felicidade pressupõe uma atividade da alma conforme a sua virtude. Embora a parte mais excelente da alma seja a razão, nela se encontram apetites, desejos, emoções que, muitas vezes, se opõem às diretrizes racionais. A virtude ética, segundo Aristóteles, dependerá da capacidade de domínio desses aspectos irracionais da alma; não no sentido de suprimi-los, mas de moderá-los a fim de alcançar o justo meio, a justa medida, a mediania ou a medida adequada entre dois excessos. Assim, a coragem será o meio termo entre a temeridade e o medo; a liberalidade o meio termo entre a prodigalidade e a avareza e assim por diante.
A virtude, portanto, depende da boa disposição da alma para observar esse meio termo, evitando, assim, os extremos viciosos. Mas o meio-termo adequado não é um algoritmo válido para qualquer situação in abstrato, ele varia de acordo com as circunstâncias e precisa ser avaliado em cada caso concreto. Reconhecendo a indeterminação dos acontecimentos, o homem mobiliza sua ampla experiência de vida, faz uso do conhecimento adquirido nas mais diversas circunstâncias e delibera, em função daquilo que é moralmente relevante, acerca dos melhores meios para atingir determinados fins. Não se pode reduzir essa capacidade deliberativa a uma mera astúcia ou esperteza porque ela está intimamente ligada à virtude, à ação moralmente boa. Embora seja uma virtude intelectual, a phrónesis não pode existir sem a virtude moral.
A phrónesis não é uma virtude ética, mas sim, juntamente com a sophia (sapiência), uma virtude dianoética (do grego diánoia, intelecto); ou seja, é uma virtude do intelecto ou da razão. Diferentemente da sophia, porém, que diz respeito ao conhecimento das realidades imutáveis e necessárias, que concerne ao conhecimento dos princípios e das verdades supremas, a phrónesis tem a ver com o conhecimento dos aspectos mutáveis da vida do homem; é uma sabedoria prática ligada à capacidade de bem deliberar dentro de um contexto contingente e circunstancial.
A deliberação é um cálculo acerca das circunstâncias e está sempre às voltas com a indeterminação, evidenciando a liberdade inerente ao homem, instado sempre a agir com intencionalidade e responsabilidade no mundo, mesmo em um contexto sobre o qual não há domínio absoluto, devido a imprevisibilidade das coisas, mas sob o qual se tem influência e poder de ação.
O horizonte daquilo sobre o que se pode deliberar, portanto, é restrito. Delibera-se sobre aquilo que depende de nós e não sobre todas as coisas. Note-se também que deliberação por si mesma não se identifica com a phronesis, uma vez que a deliberação enquanto tal pode ser posta a serviço do mal e não do bem; pode direcionar o homem para o vício, não para a virtude, donde a necessidade de destacar um outro conceito que Aristóteles põe ao lado da prudência: a boa deliberação (eubolia).
A mera habilidade de encontrar o melhor meio para qualquer fim, seja ele bom ou mau é denominada por Aristóteles de sagacidade. A boa deliberação, ao contrário, é retidão de entendimento. O homem prudente, portanto, não pesará os prós e os contras de se agir virtuosamente, mas sim determinará o melhor curso de ação a ser seguido para atingir um fim bom. Fica claro, mais uma vez, que a phronesis não é apenas um raciocínio pragmático, mas a excelência do raciocínio prático, que é indissociável de um caráter virtuoso.
Notas da Parte III
[1] ARISTÓTELES, Ética a Nicômaco. V.7.1134b17-22
[2] “Isso [a mutabilidade do justo natural], porém, não é verdadeiro desse modo não qualificado, mas é verdadeiro em um certo sentido. Concede-se que, com os deuses, provavelmente não haja de modo algum mudança, enquanto que conosco há algo que é justo por natureza e, ainda assim, tudo seja capaz de mudar. Apesar disso, cabe a distinção entre o que é e o que não é por natureza”. (ARISTÓTELES, Ética a Nicômaco. V.7.1134b27-31)
[3] REALE 1. P.221