Bolsonaristas vivem me dizendo nas mídias sociais: “Faz o L”. Como se tivesse que me arrepender por ter votado em Lula. Votei sim, no 2º turno. Não me arrependo. Votaria em qualquer um para impedir a reeleição do irresponsável, criminoso e autocrata Bolsonaro. Não significa que vou apoiar Lula.
Eles, é claro, não entendem isso. Uma parte menor do bolsonarismo é olavismo (aquela dos delírios da conspiração comunista global). A maior parte, porém, por incrível que pareça, é hipocrisia moralista-punitivista herdada do lavajatismo. Ambas são analfabetas democráticas.
Quando digo que votaria em qualquer um para impedir a reeleição de Bolsonaro, estou falando em qualquer um mesmo. Votaria em Cunha, votaria em Cabral, votaria em Geddel, votaria em Lira, votaria em Severino.
Por quê? Porque era um imperativo democrático retirar Bolsonaro do governo.
Por quê? Porque Bolsonaro é um autocrata que queria (e continua querendo) transformar nossa democracia eleitoral em uma autocracia eleitoral na linha da Hungria de Orbán, da Turquia de Erdogan ou da Índia de Modi.
Ah! Mas Lula também não quer isso? Não se tem nenhuma evidência de que queira, pelo menos no curto prazo. O que Lula quer é manter nossa democracia eleitoral, ocupá-la e eleger e reeleger pessoas do PT ou satelizadas pelo partido indefinidamente.
Mas isso não pode descambar para uma autocracia eleitoral, como ocorreu na Venezuela e na Nicarágua? Poder, pode, mas é mais difícil num país como o Brasil. E, de qualquer modo, não é um risco iminente.
O problema com Lula é outro: não é o de virarmos uma ditadura e sim o de ficarmos paralisados no “estágio” de democracia eleitoral e não conseguirmos alcançar a condição de democracia liberal, como acontece hoje com outras democracias eleitorais parasitadas pelo populismo de esquerda, como a Bolívia, o Peru, a Argentina, o México e a Colômbia.
Na América Latina, é bom lembrar, só temos quatro democracias liberais: Barbados, Costa Rica, Uruguai e Chile. E nada indica que o Brasil se aproximará desses regimes durante o domínio do lulopetismo.
Voltando à provocação dos bolsonaristas. Não votei em Lula no segundo turno pelas suas virtudes. E assim como não apoiaria os governos de Cunha, Cabral, Geddel, Lira ou Severino, também não apoiarei o governo Lula.
Mas, como? – perguntam os cretinos moralistas-punitivistas, imorais que acham que estão sujos e querem então se limpar nos outros. Respondo: a autocratização é um problema infinitamente maior para a democracia do que a corrupção.
Se fôssemos adotar o critério da honestidade como valor universal no lugar da democracia como valor universal, viveríamos numa autocracia. O ditador Salazar era honesto. Os generais autocratas espartanos, inimigos da democracia, eram honestíssimos, verdadeiros varões de Plutarco.
Castelo Branco, o primeiro ditador do golpe de 1964, era honesto. E boa parte dos golpistas de direita ou de esquerda, ao longo da história, sempre dão seus golpes dizendo que é para livrar seus países da corrupção. Foi assim com Chávez. Foi assim com os milicos brasileiros.
Se formos investigar governantes que praticam grandes ou pequenos atos de corrupção no dia a dia (como direcionar uma licitação, por exemplo), a metade ou mais dos nossos 5.565 prefeitos não escaparia.
Elegemos periodicamente cerca de 65 mil titulares para cargos executivos e legislativos. Quantos dos nossos 56.810 mil vereadores passaria num, digamos, “teste de integridade”? E dos nossos mais de mil deputados estaduais, 27 governadores, 513 deputados federais, 81 senadores e 1 presidente?
Não importa. Ou melhor, importa menos do que a manutenção da democracia. Não se tem notícia de nenhuma democracia que tenha virado uma ditadura em razão do aumento do número de corruptos por metro quadrado.
Óbvio que a corrupção retira qualidade da democracia, mas não a converte, por si só, em autocracia. Nem mesmo quando a corrupção é usada como método de governar, para se delongar no governo ou para financiar um Estado paralelo que tenha por objetivo implantar uma estratégia de conquista de hegemonia sobre a sociedade para nunca mais sair do governo. Isso aconteceu no período em que o PT governou o país, mas o Brasil continuou sendo uma democracia eleitoral, ainda que não tenha conseguido alcançar a condição de democracia liberal. Esse, entretanto, é outro problema, que os democratas liberais terão de enfrentar no novo período que está começando com a posse do novo governo.
Se quisermos um mundo político totalmente limpo, livre de toda corrupção, teremos que abolir a política. E aí viveremos um mundo autocrático, onde a corrupção se concentrará e se esconderá no poder central e não poderá nem ser criticada e coibida, porque nem será vista. Quem viu a corrupção dos irmãos Castro em Cuba ou da dinastia Kim na Coréia do Norte? Quem dá alguma notícia da corrupção de Aleksandr Lukashenko na Bielorússia?
A democracia não é pura, reta e perfeita. Ela é suja, torta e imperfeita. Mas é o único tipo de regime que permite que a sociedade possa fiscalizar o governo (inclusive para denunciar a corrupção), trocar o governo eleitoralmente ou impedir constitucionalmente a continuidade do governo.