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Coleção de artigos importantes

Uma mídia que demoniza Israel e tenta normalizar terroristas

Madeleine Lacsko, O Antagonista (01/10/2024)

Hoje o Irã voltou a atacar Israel. Foram mísseis e atentados terroristas contra civis, no estilo do que o Hamas fez em 7 de outubro do ano passado. A escalada de violência no Oriente Médio tem sido acompanhada por uma narrativa distorcida, que se repete em parte significativa da mídia brasileira.

Em vez de um relato honesto sobre o terrorismo islâmico e os regimes que o financiam, o público é bombardeado por uma visão romantizada de grupos terroristas, ao mesmo tempo em que regimes homofóbicos e misóginos são praticamente ignorados. Isso contribui para a crescente desconfiança da população em relação à imprensa.

Estamos diante de uma mídia que, num dia, prega a inclusão e defende as minorias, patrulhando até a linguagem para não deixar ninguém de fora. Se você não quiser falar o todEs, te combatem como se fosse um assassino porque está ameaçando a existência dos não-binários.
No dia seguinte, essa mesma mídia trata terroristas como vítimas. Gente que promove massacres de civis, estupros coletivos e transforma mulheres em escravas sexuais. Quando terroristas como o Hamas e o Hezbollah transformam populações inteiras em reféns, o relato vira uma ode ao coitadismo desses “combatentes”, ignorando os crimes brutais que eles cometem. O caso recente do ataque a um hospital, inicialmente atribuído a Israel, mas depois revelado como sendo um erro do próprio Hamas, é um exemplo claro. A mídia não corrigiu o erro com a mesma ênfase com que noticiou a falsa acusação.

Grupos como o Hamas e o Hezbollah não são apenas movimentos de resistência local. Eles têm como objetivo implantar um regime teocrático e totalitário que oprime mulheres, homossexuais e qualquer um que não se submeta à sua visão de mundo. O exemplo do Irã é emblemático: um regime em que uma mulher pode ser espancada até a morte por não usar o véu da maneira correta. O Irã se mantém próximo a grupos terroristas, financiando-os e espalhando sua visão opressora de sociedade, enquanto parte da mídia prefere ignorar essa realidade.

Israel, por sua vez, é demonizado sempre que reage aos ataques terroristas que sofre. Pouco se fala sobre o esforço israelense para neutralizar essas ameaças com inteligência e precisão, como no caso recente em que o número um do Hezbollah foi eliminado. A mesma mídia que retrata Israel como opressor não mostra a evacuação de cidades inteiras, como Kiryat Shmona, transformadas em cidades fantasmas devido aos ataques constantes de mísseis lançados pelo Hezbollah.

Enquanto isso, no Brasil, o governo se aproxima cada vez mais desses regimes. O que significa esse alinhamento com ditaduras como Irã e Venezuela? Regimes que são responsáveis pela opressão de suas populações, pela morte de crianças e presos políticos, além de uma política de terror que visa exportar seu modelo autoritário para o mundo. E o Brasil? O país que já foi símbolo de um caminho democrático e de respeito aos direitos humanos agora flerta com regimes que representam o oposto disso.

O público brasileiro precisa se perguntar para onde estamos indo. Por que tantas vozes na mídia brasileira tentam minimizar os crimes desses grupos? Por que há tanto esforço em culpar Israel, uma democracia que tenta se defender, enquanto regimes opressores são tratados com condescendência? É possível defender terrorismo, homofobia e misoginia abertamente, mas pelo menos assumam isso, sem tentar disfarçar com retóricas de “anti-colonialismo” e defesa de inocentes.

O Irã, que oprime sua própria população, busca exportar sua revolução islâmica. Seu objetivo é claro: transformar o mundo no que ele já é. E aqui estamos, vendo parte da imprensa normalizar essa visão de mundo, com uma narrativa seletiva e distorcida que ignora os fatos quando eles não são convenientes para sua agenda.

Enquanto houver quem defenda abertamente regimes opressores e grupos terroristas, será difícil para a sociedade brasileira enxergar o real perigo dessas alianças.


A imprensa não é tutora da democracia

Joel Pinheiro da Fonseca, Folha de S. Paulo (24/09/2024)

O papel do jornalismo hoje não é mais o de megafone de algumas poucas vozes

A discordância é o que move o debate público. Quando é de alto nível, melhor ainda. Sendo assim, aproveito esta oportunidade para discutir o artigo de Leão Serva publicado na Folha (“Imprensa repete erro que levou Hitler ao poder ao chamar Marçal para debates”), do qual discordo profundamente.

Nele, Serva argumenta que não se deve dar espaço para candidatos como Pablo Marçal, Bolsonaro e Trump em debates políticos. Dar palco a candidatos que atacam a democracia e a imprensa é pavimentar o caminho da ditadura.

Usar uma retórica agressiva com relação à imprensa ou que prometa “atos disruptivos” da democracia deveria ser motivo para excluir um político do debate público? Ia sobrar bem pouca gente. Se vale para Marçal e Bolsonaro, deve valer para todos. Inclusive para Lula quando ameaçou, em 2015, colocar o “Exército do Stédile” (o MST) nas ruas para brigar pelo PT? Sem dúvida seria disruptivo.

Mas há um motivo mais profundo para se discordar do artigo. Serva atribui à imprensa um poder que ela não tem, não deveria ter e nem conseguiria ter: o de tuteladora da democracia brasileira.

Trinta anos atrás, bastava as emissoras e jornais não mencionarem uma pessoa para ela ser condenada à irrelevância. Hoje, não é mais assim. Nas redes, é possível crescer e construir um público sem nunca ter sido mencionado por um jornal sério.

Toda a direita populista que hoje provoca horror no jornalismo profissional foi gestada longe dele e só recebeu sua atenção porque tornou-se incontornável. No Brasil, temos o exemplo de Olavo de Carvalho: longe da imprensa em suas últimas duas décadas de vida, formou uma legião de seguidores. Bolsonaro, idem: conquistou sua popularidade nacional graças às redes sociais e chegou num tamanho tal que qualquer emissora que se negasse a lhe ouvir estaria traindo sua missão de informar.

Serva observa, com razão, que o debate nas redes se utiliza do conteúdo produzido pelo jornalismo e, portanto, depende dele. Só que disso não se segue que, sem o jornalismo, esse debate cessaria; ele só perderia ainda mais a tênue ligação que tem com a informação objetiva. Em vez de notícias devidamente apuradas, teriam mais espaço vídeos caseiros, blogueiros e peças de relações públicas.

O papel da imprensa profissional hoje não é mais o de megafone de algumas poucas vozes. Hoje todos têm o megafone na mão. É o de ajudar a elevar o nível de um debate que ela não mais controla. Se a imprensa exclui do debate um candidato com mais de 20% das intenções de voto, ele não perderá sua legitimidade perante o público. Muito pelo contrário: é a imprensa que minará sua própria credibilidade pela arrogância de se considerar dona do debate público e capaz de escolher pelos eleitores.

O jornalismo profissional segue imprescindível, mas enfrenta um desafio enorme: o de reconquistar a confiança do público. Em vez de se arrogar a tuteladora da democracia nacional na oferta de candidatos, pode olhar para o outro lado, o da demanda: por que uma parte expressiva da população quer esse tipo de candidato e ecoa seus discursos? Aí sim poderá quem sabe persuadir os cidadãos de que o que ela tem a oferecer — informações devidamente apuradas e um filtro de qualidade do debate — é mais do que um desejo de controle sobre o homem comum.


O uso extremado de Alexandre de Moraes

Carlos Andreazza, O Estado de São Paulo (23/09/2024)

A semana passada terminou com nova determinação de Alexandre de Moraes à Polícia Federal: para que identificasse e notificasse quem fizera uso extremado do X, no Brasil, após o bloqueio.

Lembremos: o ministro havia ordenado a suspensão da rede social em 30 de agosto. Seria multado em R$ 50 mil quem recorresse a VPN para entrar no outrora Twitter.

A aberração tinha alcance original irrestrito: seria multado qualquer um — não interessando a natureza/duração do uso — que ingressasse no X via subterfúgio. Sanção de cumprimento impossível, concebida para fins intimidatórios; por meio da qual se admitia entre nós — chancelada pelo Supremo — a possibilidade bizarra de punição a quem não seja parte do processo.

A determinação da semana passada, incluindo critério de filtragem, reformaria-refinaria a aberração — para tornar mais evidente seu objetivo. A intimidação agora adjetivada. Ascendente — conforme previsto no direito xandônico — o conceito de “uso extremado”.

Seria multado o indivíduo que acessasse — por meio de VPN — a rede social bloqueada para (olha o filtro da sofisticação) usá-la extremadamente. E, ainda assim, a ser notificado — antes de aplicada a multa. Intimidação.

O levantamento — completo ― de usuários que burlaram o bloqueio ao X é tecnicamente impossível. Não importa. Importante é ter — poder ter — uma lista na mão. Qualquer uma. Para uso do juiz. Quando e como ele quiser.

Espada — mais uma — sobre a cabeça do Estado Democrático de Direito. Uma das perversões que a cultura — são já cinco anos — de inquéritos sem objeto, infinitos e onipresentes, impôs paralelamente ao ordenamento jurídico brasileiro: se o ministro, nosso herói salvador, declara que a decisão é pela democracia e contra o discurso de ódio, tudo pode.

No Globo, informou a grande Malu Gaspar: “Segundo fontes que acompanham de perto o caso, os policiais federais terão autorização do ministro para entrar na rede social e fazer um pente-fino para rastrear os perfis. A princípio, esse monitoramento não fará distinção entre quem está postando conteúdo de ataque à democracia e quem não está. Se for residente no Brasil e estiver fazendo postagens, será incluído na lista (…).”

O aparato policial mobilizado para intimidar faz pente-fino — talvez pescaria. Certamente uma lista. Gaspar informa mais: “Quem vai decidir se aplica multa ou não é o ministro”.

Ninguém sabe definir e, pois, limitar o que seja “uso extremado”, o critério, não sob o Direito. Para muitos, este artigo será um ataque à democracia. Moraes decidirá — tem a delegação da Corte constitucional para criar — o que seja “uso extremado”. A multa é o de menos.


Anotações para a ONU

Miguel de Almeida, O Globo (23/09/2024)

Não é todo dia que o presidente de um país em chamas dá as caras

Em rito tradicional, Lula da Silva discursa amanhã no púlpito da ONU. São palavras aguardadas pela plateia. Não é todo dia que o presidente de um país em chamas dá as caras. Nem é sempre que um chefe de Estado, do tipo falante que cumprimenta caixa eletrônico, deve usar o “veja bem” para culpar o mundo por seu desassossego. A autocrítica não integra o figurino da esquerda, principalmente a latino-americana.

Quem estiver sentado naquelas cadeiras, por educação, jamais tocará nas palavras “corrupção na Petrobras” ou “falência da Sete Brasil”, até mesmo no nome Dilma Rousseff ou no conceito de “lucro” da Vale privatizada. Parece curioso, mas, no Brasil petista das últimas décadas, o que poderia ser saudado como acerto é visto como desarranjo, enquanto o que é condenado na Justiça por malversação de dinheiro público, incompetência e inapetência ideológica (fomos salvos pelo Dino) ganha roupagem de perseguição.

Como manda a diplomacia, os chefes de Estado não comentarão que no ano passado Lula da Silva esteve ali mesmo para aplicar-lhes uma reprimenda sobre as mudanças climáticas, as emissões de gases, enfim, que chegara ao mundo alguém capaz de ensinar a todos como matar no peito os problemas do planeta. Bastava ouvi-lo em seu contundente desprezo pelos pronomes.

“As cenas da seca nos rios amazônicos no ano passado, jamais vistas até então, já não sugeriam que a batata estava assando?”, poderia perguntar Emmanuel Macron. “E aqueles informes todos, de diferentes órgãos governamentais, com previsão de crise hídrica e calor exacerbado, o que aconteceu?”, estaria na ponta da língua do chanceler Olaf Scholz. “Os avisos do ministério de Marina Silva dormiram na sua mesa sem providências?”, sugeria o semblante fechado de Justin Trudeau, seguido de uma exclamação: “Oi, explorar petróleo na Foz do Amazonas?!”. Por dois anos seguidos, o lindo Pantanal das minhas histórias paternas arde num fogo inclemente, por quê?

A primeira-ministra da Itália, Giorgia Meloni, com seu jeito loquaz, dividirá com seus colegas a dúvida: “Por que continuar comprando produtos brasileiros oriundos de áreas suspeitas — como garimpo irregular, área desmatada etc.?”. “Adiar com que intento? Aí tem”, desconfiará um sisudo Keir Starmer. “Não seria uma medida que coibiria as queimadas criminosas, o uso da Amazônia pelas facções do crime organizado?”, ele completaria. Hum.

“Ah, o Maduro, o Maduro!”, balançaria a cabeça Joe Biden (sem estar acompanhado da mulher). Estivesse presente, Jill Biden perguntaria à homóloga brasileira como não achou no palácio os móveis (sofás, banquetas, namoradeiras etc.) que Michelle havia guardado noutra sala. Brigitte Macron sorriria discretamente com a saia justa da falta de prática petista, incapaz de localizar uma espreguiçadeira.

Desde que voltou à Presidência, numa vitória da frente ampla, que ele reconhece, mas não paga, ou paga quando quiser, Lula da Silva se colocou como líder mundial. Chamou a si questões como a guerra na Ucrânia, depois em Gaza, e ainda perfilou-se em campo ao lado de Putin numa alucinação ideológica, o alegado Sul Global. Não foi ouvido pela diplomacia dos principais atores globais, exceto por Volodymyr Zelensky, que cobra sua postura de estar ao lado de um país invasor.

Por sorte, as promessas ungidas ou mesmo estratégias em linguagem de arquibancada de Lula não estão submetidas ao fact checking. De seu púlpito na ONU, teria de ouvir correções — jura que Celso Amorim é um estrategista diplomático? Ele não parece aprender com tantos fracassos. Se está ao lado de López Obrador na questão Venezuela, o que achar do projeto apoiado por ele de eleger juízes nas diferentes instâncias judiciais no México?

A bordo de sua história de quem venceu três eleições presidenciais, Lula não falará de seus temores. Javier MileiNicolás Maduro e Janja dificilmente merecerão menções. São três próceres, em distintos graus, que diminuem sua pontuação. Milei, dia sim, dia não, o esculacha. Maduro, ah, Maduro, esse se vende como amigo, mas já o deixou na fogueira, com bola nas costas ou abraço de urso — como se explica que o candidato que o derrotou seja hoje um exilado político? Às atas, sem escrúpulos.

Sim, Janja — Janjes (sic)! — e seu frescor contemporâneo provocam abalos com sua pauta identitária causadora de engasgos. No governo, suas cotas não correspondem aos fatos. Ela o transformou num chefe de RH.


Putin está fazendo algo que quase ninguém está percebendo

Lília Yapparova, The New York Times (23/09/2024)

Tradução automática IA Google

Yapparova é uma repórter investigativa na Meduza, uma agência de notícias russa independente. Ela escreveu de Riga, Letônia.

Em novembro de 2022, meus editores me pediram para ter cuidado com o que eu comia e parar de pedir comida para viagem. Inicialmente, não pensei muito sobre isso. Mas logo percebi a importância do conselho deles quando, apenas um mês depois, minha colega Elena Kostyuchenko descobriu que havia sido envenenada na Alemanha, em uma provável tentativa de assassinato pelo estado russo.

Essas histórias se tornaram rotina. No ano passado, uma jornalista investigativa, Alesya Marokhovskaya , foi assediada na República Tcheca; em fevereiro, o corpo crivado de balas de um desertor russo, Maxim Kuzminov , foi encontrado na Espanha. Em ambos os casos, o Kremlin foi assumido como envolvido. Figuras da oposição russa sabem bem que, mesmo no exílio, continuam sendo alvos dos serviços de inteligência da Rússia.

Mas não são só eles que estão em perigo. Há também as centenas de milhares de russos que saíram de casa porque não queriam ter nada a ver com a guerra de Vladimir Putin — ou foram forçados a sair, acusados ​​de não abraçá-la o suficiente. Esses dissidentes de baixo perfil também são submetidos a vigilância e sequestros. No entanto, sua repressão acontece em silêncio — longe dos holofotes e frequentemente com o consentimento tácito, ou prevenção inadequada, dos países para os quais fugiram.

É algo assustador: o Kremlin está caçando pessoas comuns no mundo todo, e ninguém parece se importar.

Tenho reunido informações sobre a Rússia mirando em exilados desde o início da guerra na Ucrânia. Minhas fontes variam de pessoas que sobreviveram a sequestros e vigilância a líderes de diásporas russas ao redor do mundo — e os poucos ativistas de direitos humanos que os ajudam. Muitos falaram comigo sob condição de anonimato para discutir a repressão russa sem medo de represálias. O Kremlin, é claro, nega qualquer envolvimento — principalmente dizendo que não pode comentar sobre o que está acontecendo com pessoas em outros países. Mas as evidências estão se acumulando.

Há um treinador vocal preso no Cazaquistão a pedido de Moscou que enlouqueceu em uma prisão local. Um cuidador de idosos detido em Montenegro por ordens russas, realizado pela Interpol. Uma professora detida por guardas de fronteira armênios após contar a seus alunos sobre os crimes da Rússia em Bucha. Um dono de loja de brinquedos , um alpinista industrial , um punk rocker : essas são algumas das pessoas pegas na rede do Kremlin, em todo o mundo.

E é uma operação verdadeiramente global. Na Grã-Bretanha, exilados estão sendo seguidos e eventos de oposição em Londres estão cheios de agentes “que se destacam como um polegar machucado”, me disse Ksenia Maximova, uma ativista anti-Kremlin de lá. Oficiais de inteligência russos foram enviados para monitorar as diásporas na Alemanha, Polônia e Lituânia, de acordo com Evgeny Smirnov, um advogado especializado em casos de traição e espionagem. Outros emigrantes foram perseguidos e ameaçados em Roma, Paris, Praga e Istambul. A lista continua.

Alguns dos métodos são especialmente insidiosos. Lev Gyammer, um ativista exilado na Polônia, recebe mensagens de texto há dois anos, supostamente de sua mãe. “Levushka, filho, sinto tanto sua falta, quando você vai me visitar?” Outra diz: “Filho, estou esperando por você. Volte logo.” Ele as ignora: sua mãe, Olga, morreu há cinco anos. Outro expatriado russo — cujos pais idosos ainda estão vivos e muito doentes — escolheu acreditar quando a enfermeira de seus pais, de muitos anos, lhe contou, por telefone, sobre um incêndio em seu apartamento. Ele correu para casa da Finlândia e foi imediatamente levado para a prisão e torturado, de acordo com o Sr. Smirnov. Claro, nunca houve um incêndio.

Aqueles que não podem ser enganados de volta para a Rússia são submetidos à vigilância. Uma funcionária de uma organização que apoia pessoas LGBTQ estava passeando com seu cachorro pelo bairro em Tbilisi, Geórgia, quando percebeu que estava sendo seguida por um drone. Era uma noite no início de maio — dois anos desde que ela fugiu da Rússia com o resto de seus colegas. Ela correu de volta para se esconder em seu apartamento, mas ainda conseguia ouvir o zumbido. Ela seguiu o barulho até a sacada e ficou cara a cara com o dispositivo, pendurado ali ao alcance do braço.

Os países anfitriões são frequentemente cúmplices. Em alguns lugares, policiais locais até mesmo realizam vigilância em nome de seus colegas russos. No Cazaquistão , serviços especiais locais estão ajudando a Rússia a capturar fugitivos. No Quirguistão , a polícia está usando tecnologia de reconhecimento facial para procurar aqueles procurados pelo Kremlin, forçando as pessoas a deixar as cidades para as montanhas, de acordo com uma série de grupos de defesa . Quando não estão auxiliando ativamente a vigilância russa, as autoridades locais às vezes demoram a pará-la.

Este foi o caso de Sergei Podsytnik, um jornalista que investigava ligações militares entre a Rússia e o Irã. Em março deste ano, ainda eufórico com a notícia de que uma fábrica de drones que ele havia descoberto estava sendo sancionada , ele estava retornando para seu quarto em Duisburg, Alemanha. Antes de ir para o exílio, o Sr. Podsytnik fazia parte da rede de oposição de Alexei Navalny e adquiriu o hábito de se certificar de que não estava sendo seguido. Do lado de fora de sua porta, ele olhou casualmente por cima do ombro — e viu, espiando pela esquina, um estranho seguindo cada movimento seu.

O colega do Sr. Podsytnik também notou que ele estava sendo observado pelo mesmo homem, mas eles precisaram de dois apelos para garantir uma investigação das autoridades locais. A polícia em Duisburg simplesmente não conseguia compreender que era possível que a vigilância patrocinada pela Rússia estivesse acontecendo em sua cidade, ao que parecia. O caso foi logo encerrado sem encontrar o infrator, o que pode ter sido um erro. Duisburg é um dos lugares, de acordo com o Dossier Center , uma organização de pesquisa sediada em Londres, de onde agentes da unidade de inteligência militar russa realizaram sabotagem no exterior.

O Sr. Podsytnik está seguro agora, mas nem todos tiveram tanta sorte. Exilados que passaram por vigilância semelhante às vezes acabam desaparecendo sem deixar rastros — seja da porta de uma embaixada na Armênia ou de uma igreja rural na Geórgia — apenas para aparecer em centros de detenção russos. É impossível avaliar com que frequência isso está acontecendo. No entanto, podemos supor, dizem minhas fontes, que há muitos outros casos como o de Lev Skoryakin , que foi tirado de seu albergue no Quirguistão em outubro passado, empurrado para dentro de um carro e deportado de volta para a Rússia. Simplesmente não sabemos sobre eles.
Muitos russos no exterior são vulneráveis ​​e carecem de proteção. No verão de 2023, grupos da sociedade civil fizeram uma petição ao Parlamento Europeu para ajudar na legalização de pessoas que se recusaram a lutar no exército do Sr. Putin; não houve resposta significativa. O asilo político é rotineiramente negado não apenas a desertores, mas também a ativistas — às vezes “com argumentos monstruosos de que ‘a situação na Rússia é normal e você pode contar com um julgamento justo'”, me disse Margarita Kuchusheva, uma advogada de imigração em Chipre.

Exilados antiguerra são apoiados por um punhado de organizações de direitos humanos, perenemente à beira do fechamento por falta de fundos. A Rússia, por outro lado, esbanja uma grande quantidade de recursos com os exilados — enquanto os acusa de traição e terrorismo e, movida pela paranoia, os persegue por todo o mundo. Eles estão em risco imediato. Mas o maior perigo é que o mundo se esqueça completamente dessas pessoas — e por que elas deixaram seu país em primeiro lugar.


O amigo brasileiro

Demétrio Magnoli, Folha de São Paulo (21/09/2024)

A iniciativa de aceitar a imposição da Rússia teria que partir do governo ucraniano, nunca de outros países

“O Brasil quer estar com a China, com a Índia, com os EUA, com a Venezuela, com a Argentina… Com todo mundo, de forma soberana, respeitável. Porque nós não aceitamos ser menor do que ninguém”.

Parte do desejo de Lula, expresso na formatura dos diplomatas, será realizado na cúpula dos Brics, em outubro. Xi Jinping e Putin articulam uma nova expansão do bloco, com o ingresso da Venezuela — e, de quebra, da Nicarágua. Os Brics tornam-se caixa de ressonância da China, enquanto o Brasil conforma-se com uma posição “menor” no seu interior.

“Nós queremos paz, não queremos guerra”, proclamou Lula diante da mesma plateia, referindo-se à guerra na Ucrânia. Foi a senha para anunciar uma reunião patrocinada por Brasil e China, às margens da Assembleia-Geral da ONU, com o fim de divulgar um plano de paz sino-brasileiro às nações convidadas, do chamado Sul Global. Na forma delineada pela proposta, a paz interessa à Rússia, não à Ucrânia, e premia a guerra de agressão.

O plano não menciona, nem mesmo retoricamente, o conceito de soberania territorial ou as fronteiras ucranianas de 1991 reconhecidas pela Rússia no tratado de 1994. Como registrou Zelenski, seus pressupostos autorizariam a anexação dos territórios ucranianos ocupados pelas forças russas no momento de um cessar-fogo. Não foi por outro motivo que o Brasil, assim como a China, boicotou a conferência de paz realizada em junho, na Suíça, que operou com base nas normas do direito internacional.

Algum dia, a guerra terminará. Talvez, por falta de alternativa realista, a Ucrânia venha a ser obrigada a ceder territórios. Mas a iniciativa de aceitar a imposição imperial teria que partir do governo ucraniano, nunca de terceiros países. O plano sino-brasileiro representa, de fato, uma operação diplomática destinada a reforçar a posição russa.

Os objetivos de Putin não se limitam à anexação do Donbass e do Sul ucranianos. A invasão foi deflagrada para, além disso, converter o país vizinho em Estado vassalo, nos moldes da Belarus. O Kremlin pretende inserir a Ucrânia na jaula do “mundo russo” (Russkiy Mir).

O plano sino-brasileiro contempla tal ambição, por meio de uma senha discursiva facilmente decifrável, que rejeita a “divisão do mundo em grupos políticos ou econômicos isolados”. A paz que pregam China e Brasil proíbe a Ucrânia de, como qualquer Estado soberano, ingressar numa união político-econômica (União Europeia) e numa aliança militar (Otan). Obviamente, não haveria objeção a um futuro ingresso forçado na Organização do Tratado de Segurança Coletiva (CSTO), a aliança militar comandada por Moscou.

O Brasil tem motivos geopolíticos e econômicos para praticar uma neutralidade ativa, evitando alinhamento a um dos polos da rivalidade global EUA/China. Contudo, em nome do “anti-imperialismo”, o governo Lula escolhe o papel de amigo menor da China, oferecendo suas credenciais democráticas para conferir legitimidade à iniciativa diplomática de Xi Jinping.

A alegação “anti-imperialista” tem pernas curtas. Trump esclareceu que, de volta à Casa Branca, empurraria a Ucrânia a uma “paz chinesa” — e recebeu em troca um cumprimento de Putin. Nessa hipótese, o Brasil estaria “com todo mundo”, como deseja Lula, mas de modo pouco “respeitável”.


‘O Brasil está vivendo um golpe em câmera lenta com as ações do STF’, diz cientista político

Para Paulo Kramer, País passa por um ‘experimento pavloviano’, em que a tolerância da sociedade a ‘expedientes menos democráticos’ está sendo testada, para ver se há alguma reação, mas o ‘ponto de virada’ está próximo

José Fucs, O Estado de São Paulo (19/09/2024)

O cientista político Paulo Kramer faz parte de um grupo restrito de profissionais da área, dominada por uma visão marxista da realidade, que se autodefine como um “liberal”. Professor aposentado da Universidade de Brasília (UnB), consultor de riscos políticos e assessor parlamentar da liderança da minoria na Câmara dos Deputados, ele diz que o papel de “Poder Moderador” desempenhado hoje pelo STF (Supremo Tribunal Federal), com ações que vão além de seu papel constitucional, é “o problema número um” que a gente vive no País.

“Nós estamos vivendo o que eu chamo de golpe em câmera lenta. O Supremo hoje pode tudo, porque os outros Poderes acham que ele pode tudo. Ou acham que não podem fazer nada contra ele”, afirma. Segundo Kramer, porém, o “ponto de virada” está próximo e deve resgatar o equilíbrio entre os Poderes da República. “Gradativamente, a opinião pública foi se conscientizando de que o Poder Judiciário, principalmente o STF, está há muito tempo exorbitando do seu papel constitucional. Ele precisa voltar ao seu quadrado, para que os Poderes sejam efetivamente independentes, porém funcionem de forma harmônica.”

Nesta entrevista ao Estadão, Kramer fala também sobre o fim do “presidencialismo de coalização”, com a perda de poder do Executivo para o Legislativo na gestão do orçamento federal, a partir da aprovação das emendas parlamentares de execução obrigatória em 2015. Ele comenta, ainda, os projetos de impeachment do ministro Alexandre de Moraes e de anistia aos presos de 8 de janeiro que tramitam no Congresso e analisa as eleições municipais e o impacto do “fenômeno” Pablo Marçal, candidato do PNB à prefeitura de São Paulo, na direta e no bolsonarismo. “Provavelmente, a direita não marchará unida nas eleições de 2026″, diz. Confira a seguir os principais trechos da entrevista.

Como o sr. está vendo o cenário político hoje no País?

O que está ocorrendo no País hoje tem relação com o patrimonialismo que predomina na política brasileira, essa tendência que nós temos de confundir o público com o privado. Isto acaba condicionando a visão que os políticos e o povo têm, de forma geral, sobre o que significa exercer um cargo público. Aqui, as pessoas, quando alçadas a uma posição de poder qualquer, acabam se achando maiores e mais importantes do que os cargos. Elas exercem o poder de maneira imoderada e é provavelmente por isso que nós estamos sempre clamando pela intervenção de um Poder Moderador.

Oficialmente, nós tivemos um Poder Moderador na Constituição do Império, na Constituição de 1824. De lá para cá, na República, a figura do Poder Moderador deixou de existir na Constituição. Mas, na prática, desde o tenentismo (movimento político-militar que surgiu no fim da República Velha para tentar derrubar as oligarquias rurais que governavam o País), a gente está sempre à espera de um general, de um Sergio Moro, de um Deltan Dallagnol, para combater os efeitos nocivos desse exercício imoderado do poder. Isto é o contrário do que acontece em outros países, de tradição republicana mais sólida, onde o sujeito em geral tem consciência de que ele é menor do que o cargo, de que o cargo é mais importante do que ele, e de que, portanto, ele deve agir de forma decente no exercício de suas funções.

O que isso tem a ver com o atual quadro político do País?

No momento, essa busca pela ação de um Poder Moderador voltou a assombrar o Brasil e se tornou um componente crucial do nosso jogo político. Hoje, boa parte da esquerda vê no STF, particularmente na figura do ministro Alexandre de Moraes, esse poder “providencial”, acima da mecânica rotineira da convivência institucional entre os Poderes. O Supremo hoje pode tudo. Pode tudo porque os outros Poderes acham que ele pode tudo. Ou acham que não podem fazer nada contra ele. Para mim, este é o problema número um que a gente vive hoje no Brasil.

Enquanto a esquerda era hegemônica na nossa cultura política, seja na forma da social-democracia “perfumada” dos tucanos, seja no formato mais “botocudo” da tigrada lulopetista, isso não acontecia. Agora, com o crescimento de uma faixa de opinião de direita, conservadora, na sociedade brasileira – e pelo mundo afora – o STF vem assumindo este papel. Um lado reluta, quando não se recusa simplesmente a reconhecer, a legitimidade do outro. É por isso que cada eleição presidencial brasileira é encarada como uma crise e não como um desenvolvimento institucional periódico, previsível e normal numa sociedade democrática.

Em sua opinião, como isso está afetando o País?

Nós estamos vivendo um problema que eu chamo de golpe em câmara lenta. Este processo começou quando o ministro (Dias) Toffoli (então presidente do STF) se sentiu ameaçado pelas investigações da Lava Jato e designou seu colega, o ministro Alexandre de Moraes, para promover esse verdadeiro inquérito do fim do mundo, que não tem fim – o inquérito das fake news, que acaba incluindo tudo que ele considera prejudicial à sua visão de democracia. A partir daí, uma série de medidas foi tomada para beneficiar o lado do (hoje presidente Luiz Inácio) Lula (da Silva) e prejudicar o lado do (hoje ex-presidente Jair) Bolsonaro.

Houve a “descondenação” do Lula, que havia sido condenado em três instâncias, justamente com a intenção de permitir que ele disputasse a Presidência de novo. Depois, isso ficou mais patente ainda durante a eleição de 2022, quando o senhor Alexandre Moraes exerceu a presidência do TSE (Tribunal Superior Eleitoral). É só comparar as ações que ele determinou contra um dos lados e quase não determinou contra o outro que você vê que não houve equilíbrio nas decisões em relação aos dois principais concorrentes. Desde então, este processo vem tendo desdobramentos em série e é isto que eu chamo de um golpe em câmara lenta.

Como a gente chegou a este ponto?

A gente pode comparar isso com um experimento diabólico, pavloviano, de reflexo condicionado, em que a tolerância do povo, da opinião pública, em relação a esses expedientes menos democráticos, menos republicanos, vai sendo testada passo a passo, para ver se há alguma reação. Na medida em que boa parte da população se mostrava indiferente ao que estava ocorrendo, os executores dessas medidas se sentiram cada vez mais à vontade para ir avançando. Com isso, eu acho que quem saiu perdendo fomos todos nós, porque o propalado Estado de Direto ficou abalado.

Dentro disso que o sr. está falando, desse quadro do golpe em câmera lenta, dessa tentativa de ir testando a sociedade, em que estágio o sr. acredita que estamos hoje?

Olha, eu acredito que nós estamos nos aproximando de um ponto de virada. Ou vai ou racha. Gradativamente, a opinião pública foi se conscientizando de que o Poder Judiciário, principalmente o STF, aliado ao lulopetismo, está há muito tempo exorbitando do seu papel constitucional. Ele precisa voltar ao seu quadrado constitucional, para que os Poderes sejam efetivamente independentes, porém funcionem de forma harmônica. Senão, nós vamos ficar sempre naquele subdesenvolvimento político de achar que precisamos de uma força de fora, um Deus ex-machina que salve a situação, quando na verdade é a vontade organizada e legal dos cidadãos que fará com que as coisas aconteçam.

No sistema representativo, isto ocorre com a sociedade exercendo pressão para que seus representantes eleitos no Congresso façam alguma coisa para mudar a situação. É assim que funciona numa democracia. As pessoas enchem as ruas, protestam, se manifestam, não para ganhar no grito, mas para sensibilizar seus representantes eleitos, seus congressistas, deputados e senadores, para que façam aquilo que elas estão querendo.

Como o sr. você viu a manifestação na avenida Paulista, em São Paulo, no dia 7 de setembro? Até que ponto ela refletiu esta maior conscientização da sociedade, se havia menos gente nas ruas do que em manifestações anteriores?

O governo e a esquerda tentaram pintar a última manifestação na Paulista como um grande fracasso, já que em manifestações anteriores havia trezentas mil pessoas nas ruas e dessa vez havia algo em torno de cinquenta, sessenta mil. Agora, como tudo é relativo em política, quando você compara essas cinquenta e poucas mil pessoas que estavam na Paulista com o ato esvaziado que foi realizado no mesmo dia na Esplanada dos Ministérios, com a presença do Lula e de ministros do STF, você consegue ter uma ideia mais precisa da dimensão da manifestação que ocorreu em São Paulo.

Até pouco tempo atrás, havia uma percepção de que estas bandeiras relacionadas ao STF e ao impeachment do ministro Alexandre de Moraes estavam mais ligadas aos bolsonaristas e a grupos de direita e hoje parece que elas ganharam apoio das forças de centro e até de centro-esquerda. Qual a sua visão desta questão?

A minha visão se baseia naquele famoso ditado “pau que dá em Chico dá em Francisco”. Quer dizer, um poder ilimitado ou que se sente ilimitado é sempre perigoso para todos os players do jogo. É por isso que, no longo prazo, o que interessa é que o equilíbrio entre os Poderes seja reestabelecido, para que no futuro isso não ameace mais ninguém, nem a esquerda nem a direita.

Agora, como o sr. afirmou há pouco, o presidente Luiz Inácio Lula da Silva, o PT e boa parte da esquerda, que representam uma parcela significativa da sociedade, estão a favor desta atuação do STF e particularmente do ministro Alexandre de Moraes. O que está levando o Lula e a esquerda a apoiá-los?

A gente tem de levar em conta que o Lula não é mais aquele e que o famoso “presidencialismo de coalizão” também não é. O “presidencialismo de coalizão”, hoje, não funciona mais. Aquela história de o Poder Executivo usar as verbas do Orçamento para formar uma base parlamentar e aprovar suas medidas no Congresso mudou de forma considerável nos últimos anos. Desde 2015, quando o Eduardo Cunha, então presidente da Câmara dos Deputados, se aborreceu com a então presidente da República Dilma Rousseff, porque achou que ela não tinha se empenhado o suficiente para garantir que o PT não votaria contra ele no Conselho de Ética por “quebra de decoro parlamentar”, o jogo virou. A partir daí, com a aprovação das emendas de execução obrigatória, que ele apoiou, os parlamentares foram avançando sobre aquela já diminuta parcela discricionária do Orçamento, que permite ao Executivo gastar onde quiser. Hoje, nós temos as emendas individuais dos parlamentares, as emendas de bancada e uma série de emendas de execução obrigatória que realmente dão uma independência muito grande aos parlamentares, sejam de que partido forem.

Atualmente, o Parlamento não está mais obrigado a se submeter aos desejos do Executivo. O Congresso já não depende mais do presidente, como nos primeiros mandatos do Lula e nos tempos do Fernando Henrique Cardoso. Hoje, o governo está fraco, porque não tem mais o conta-gotas na mão para controlar as emendas orçamentárias dos parlamentares. Neste sentido, o Congresso pode criar mais dificuldades para o Executivo. Isto alterou a correlação de forças entre os Poderes. Então, além de o Lula 3 estar mais velho, visivelmente mais debilitado do ponto de vista do seu vigor físico, ainda sofre esta limitação. O governo Bolsonaro já pegou esta conjuntura de maior independência orçamentária dos parlamentares e meio que se conformou com o novo desenho. Mas parece que o governo Lula 3 está tentando rodar um software já vencido.

Recentemente, o STF determinou que houvesse um acerto entre o Legislativo e o Executivo e até estabeleceu um prazo para isto acontecer. No fim, chegou-se a uma fórmula, que, pelo que entendi, deve dar mais poder ao governo na gestão do Orçamento. É isto mesmo? Como o sr. analisa esta questão?

O que se combinou, o que ficou mais ou menos garantido a partir de agora, foi a chamada rastreabilidade da origem das emendas, que é uma coisa positiva, na minha opinião. Isto vai permitir que se saiba quem pediu aquela emenda, em todos os seus passos: empenho da verba, se ela efetivamente aplicada, executada. Agora, tem uma questão em aberto aí. O senador Davi Alcolumbre (União-AP), que é candidato à sucessão do Rodrigo Pacheco na presidência do Senado, já está dizendo que a solução é transformar as emendas de bancada em emendas individuais. Então, eu acredito que essas emendas parlamentares vieram para ficar.

De qualquer forma, esta ação do governo mostra que há uma tentativa de o Executivo recuperar o poder do passado em relação ao Orçamento. O sr. acredita que isto é possível?

É difícil quem conquistou uma parcela de poder abrir mão desse poder. O Congresso sentiu o gostinho dessas emendas de execução obrigatória e agora, obviamente, não quer devolver este poder para o Executivo.

É isto que explicaria, na sua visão, a dependência do governo em relação ao STF, para conseguir implementar suas políticas?

Exatamente. Ele precisa dessa muleta. Eu vou te dar um exemplo bem recente. Há poucos dias, outro ministro do STF, o Flávio Dino, autorizou o governo a abrir um crédito extraordinário para combater os incêndios florestais, fora do arcabouço fiscal, que, cá para nós, já está avacalhadíssimo, desacreditadíssimo, embora o governo Lula e sobretudo o ministro da Fazenda, Fernando Haddad, procurem manter uma aparência de normalidade nas contas públicas perante o mercado.

A rigor, tendo em vista a urgência de se combater esses incêndios que estão consumindo o Brasil, o Lula não precisaria da autorização do Flávio Dino para conseguir esse crédito junto ao Congresso. Mas, hoje, o governo se escuda atrás do STF mesmo quando não precisa. Agora, isso também tem uma explicação: para o Lula, para quem “gasto é vida”, o arcabouço fiscal impõe limites que ele e seus companheiros não suportam. Então, é como se o Lula dissesse “olha, não sou eu que estou pedindo para abrir o crédito. Estou pedindo porque o ministro Flávio Dino determinou” – por sinal, em mais uma decisão monocrática de um ministro do Supremo.

Considerando todo esse quadro que o sr. traçou o que a eleição do novo comando da Câmara e do Senado pode mudar na relação do governo com o Congresso?

Eu acredito que a próxima eleição para a presidência da Câmara do Senado vai colocar nestes dois postos estratégicos representantes do chamado Centrão, que é aquela geleia, uma hora está de um lado, outra hora está do outro. Usa, muitas vezes, o ímpeto das bancadas de direita para pressionar o Executivo em questões paroquiais, de interesse dos políticos do grupo. Eu acredito que não vai dar para escapar disso. É claro que a direita está tentando comprometer os futuros presidentes das duas Casas, sejam eles quem forem, com a sua pauta. Agora, a gente sabe, por experiências anteriores, que essas promessas podem ou não ser cumpridas, dependendo da conveniência desses políticos, desses ocupantes de altos cargos do Congresso.

Então, acho muito difícil, pelo menos até onde a vista alcança, que haja uma mudança significativa nas posições do Congresso. Isso não quer dizer que, no futuro, não será possível, mas no momento acho pouco provável muito difícil os futuros presidentes do Senado e da Câmara, sejam eles quem forem, concordarem com a diminuição do seu poder. Tem um postulado básico da ciência política segundo o qual quem tem poder não quer dividi-lo com ninguém. A não ser que seja forçado a isso por um poder maior. Agora, mesmo com as emendas de execução obrigatória, tem sempre um carguinho público que pode ser ocupado por alguém ligado a um deputado, a um senador, em troca de apoio no Congresso.

Como o sr. analisa as iniciativas do governo para interferir nas eleições do comando do Congresso, apesar dos desmentidos oficiais?

Eu acredito que o Executivo está se movimentando e vai se movimentar, sim, para ter o resultado mais favorável possível na composição das mesas do Senado e e e da Câmara. Agora, o que a gente percebe é que há alguns pontos que se tornaram cláusula pétrea para o Congresso e dos quais ele não vai abrir mão. Por exemplo, qualquer medida hoje que interfira negativamente nessa chamada pauta moral, na pauta dos costumes, na pauta da segurança pública, não tem muita chance de passar, porque quem se opõe a isso hoje está em franca minoria.

Na sua avaliação, qual a viabilidade de o pedido do impeachment do ministro Alexandre de Moraes que está sendo apresentado no Senado ser levado adiante?

Na verdade, a coisa não é tão simples quanto pode parecer, porque os regimentos internos, tanto do Senado quanto na Câmara dos Deputados dão uma latitude de decisão muito grande para os presidentes das duas Casas. Seria necessário futuramente modificar os dois regimentos, para que uma vez estabelecida uma maioria considerável, uma maioria robusta, pelo menos uma maioria absoluta de parlamentares favoráveis a um determinado curso de ação, que o presidente da Câmara ou do Senado tivesse de dar continuidade ao processo. Hoje, os presidentes têm poder demais, tanto na Câmara quanto no Senado, sendo que, no caso de processo de impeachment de ministro do Supremo Tribunal Federal, cabe ao Senado conduzir, por maioria de dois terços.

O sr. acredita, então, que isso não deve caminhar no Senado?

Eu acredito que as cinco assinaturas que estão faltando para atingir mais da metade dos senadores vão ser mais difíceis de obter do que as 36 já obtidas no pedido de impeachment. Em quantos pedidos de impeachment do Alexandre de Moraes o Rodrigo Pacheco já sentou literalmente em cima? De qualquer forma, os senadores que apoiam o impeachment pretendem constranger o Pacheco com esse pedido, aproveitando que as eleições municipais armam o palanque para as eleições gerais de 2026. Para um partido se posicionar bem nas eleições gerais, é muito importante que ele tenha conseguido um bom resultado nas eleições municipais.

Outro dia, eu me deparei com o início de uma articulação para que os candidatos municipais do PSD, que é o partido do Pacheco, comecem a pressionar seus senadores mais ou menos nos seguintes termos: “Nós vamos perder as eleições aqui no nosso município, porque vocês são contra a assinatura do pedido de impeachment do Alexandre de Moraes”. Agora, ainda que isso não vá adiante, eu espero que a mera ameaça de abertura do processo de impeachment tenha, digamos assim, “capacidade de dissuasão”, para que os senhores ministros do Supremo caiam na real e retornem ao seu quadrado constitucional.

Além do impeachment, tem também o projeto de anistia aos presos dos atos de 8 de janeiro para o Congresso avaliar. Embora a narrativa dominante seja de que houve uma tentativa de golpe, muitos juristas, políticos e analistas que não têm nada de bolsonaristas dizem que, para eles, o que houve foi uma depredação de prédios públicos, como outras que ocorreram no passado, envolvendo o MTST (Movimento dos Trabalhadores Sem-Teto) e o MST (Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra). Qual a probabilidade, na sua opinião, de essa anistia sair?

Mais uma vez, eu acredito que o avanço mais rápido ou mais lento desse movimento pela anistia vai depender dos vasos comunicantes entre a opinião pública e seus representantes eleitos, porque a anistia é uma lei votada pelo Congresso. A esquerda está se manifestando contra a anistia porque, em sua visão, os manifestantes cometeram crimes como depredação, vandalismo etc. Agora, alguns juristas afirmam que a anistia é para isso mesmo, é para perdoar crimes. A anistia tecnicamente falando, é um perdão, um esquecimento em relação aos crimes cometidos por qualquer das pessoas envolvidas naqueles atos.

Eu tenho conversado de vez em quando com o desembargador aposentado Sebastião Coelho, que patrocina várias causas daquelas famílias, daqueles presos do 8 de janeiro. O Sebastião diz o seguinte para os seus clientes: Se eu fosse vocês, não aceitaria nenhum acordo com o Ministério Público, pela simples razão de que a experiência histórica do Brasil nos mostra que, mais cedo ou mais tarde, as coisas mudam e você vai perder o direito de reclamar depois”. E o Sebastião Coelho não é o único a reconhecer a precariedade jurídica dessas ordens inconstitucionais. Agora, o que vai definir isso é o que antigamente os comunistas chamavam de “correlação de forças”. Vai depender de um Congresso que se sinta mais independente para tomar as medidas necessárias, entre elas, a abertura de um processo contra o ministro Alexandre de Moraes e a própria anistia.

Na semana passada, houve até uma tentativa na Comissão de Constituição e Justiça da Câmara de levar isso adiante, mas em princípio a decisão foi adiada para depois das eleições municipais por uma intervenção do governo e do Arthur Lira, presidente da Câmara. O sr. acredita que isso vai voltar mesmo à pauta?

Eu acho que vai depender sobretudo do resultado das eleições. Ei vi o Bolsonaro falando outro dia que o futuro do Brasil passa pelos municípios. Isso quer dizer que o PL e os bolsonaristas vão batalhar para fazer o maior número possível de prefeituras ou o maior número possível de prefeituras importantes, em cidades grandes, para provar sua força e garantir que, na eleição geral de 2026, mais bolsonaristas, mais representantes da direita entrem para o Congresso e possam efetivamente virar o jogo.

Muitos analistas consideram que ação do ministro Alexandre de Moraes contra o X (antigo Twitter) e o empresário Elon Musk foi emblemático das restrições impostas hoje à liberdade de expressão no Brasil, de uma volta da censura. O que o sr. pensa sobre isso? O sr. concorda com esta visão?

Eu concordo. Acredito que a reação do Elon Musk foi um game changer, como dizem os americanos, Foi um fator que ajudou a virar o jogo. Essa briga do Alexandre de Moraes com o Elon Musk teve o resultado positivo de desacreditar a narrativa de que a direita é antidemocrática, a direita é fascista, a direita é isso, a direita é aquilo. Pelo menos a briga do Elon Musk com o Xandão ajudou a esclarecer a opinião pública mundial para algo de muito grave que estava acontecendo e que está acontecendo com as liberdades democráticas no Brasil.

Para finalizar, gostaria de voltar às eleições municipais. De acordo com as pesquisas, a esquerda está se mostrando competitiva, se não me engano, em quatro capitais, na disputa pelas prefeituras. Como isso se insere no contexto que a gente tá vivendo? O sr. acredita isso reflete uma mudança de mentalidade na sociedade ou você acha que as eleições municipais são definidas por questões locais mesmo e que o resultado se deve muito aos nomes que estão envolvidos na disputa?

A minha avaliação é que nas cidades pequenas realmente o local tende a prevalecer. Agora, nas cidades maiores, nas metrópoles, é inevitável que essa disputa municipal seja nacionalizada. Basta ver o exemplo de São Paulo. Hoje, as pessoas e a mídia só falam de duas coisas: Pablo Marçal e incêndio. É o que está na pauta. É como se o Pablo Marçal já estivesse ensaiando uma candidatura presidencial, porque no Brasil inteiro se fala disso. Muitos candidatos em outras capitais já reclamam, falam assim: “Estão cobrindo pouco a gente e muito o Estado de São Paulo, a cidade de São Paulo”.

Qual a sua avaliação do fenômeno Marçal? O sr. acredita que a disputa entre ele e a família Bolsonaro e a crítica que muitos bolsonaristas fazem a ele colocou a liderança do ex-presidente na direita em xeque?

Diante do fenômeno do Pablo Marçal, o que eu acho que o Bolsonaro deveria fazer e não está fazendo é explicar por que a direita que ele representa depende de uma guinada ao centro para se viabilizar politicamente nas próximas eleições. Porque é justamente por isso que ele está apoiando o Ricardo Nunes, que não tem nada a ver com ele. O Nunes tem mais a ver com o presidente do PL, que é o Valdemar Costa Neto, do que com o presidente de honra, que é o Bolsonaro. De qualquer maneira, para a direita se viabilizar em 2026 precisa conquistar uma parcela importante do centro político. E justamente quando o Bolsonaro fez esse movimento surgiu o Pablo Marçal denunciando essa aliança.

Para o Marçal, é todo mundo comunista, aquele exagero, aquele exagero todo. Agora, se o Pablo Marçal ganhar esta eleição, ele sem dúvida alguma se fortalece muito caso queira, a Presidência da República em 2026, embora isso ainda não esteja claro para mim. Mas, caso ele queira disputar a Presidência, uma vitória em São Paulo vai dar uma força enorme para ele. E, mesmo que ele não ganhe, eu acredito que o estrago já está feito.

Em que sentido o sr. diz que o estrago está feito?

No sentido da direita se dividir e, portanto, se enfraquecer. Porque o Bolsonaro, que até este momento é o grande líder nacional da direita, está apoiando um candidato de centro em São Paulo. E, se esse candidato de centro perder, isso vai mostrar uma dúvida. E se o Pablo Marçal ganhar? Vai mostrar uma divisão significativa da direita. Quer dizer, provavelmente a direita não marchará unida para 2026. Isso deve contagiar bastante o quadro. A esquerda está batendo palma.

Eu não aqui vou julgar das intenções do Marçal, até porque eu não as conheço, mas ele sem dúvida alguma neste momento representa um setor mais intransigente da direita e que vai buscar sua justificação lá atrás nas raízes do próprio Bolsonaro. Só que o Bolsonaro e seus colaboradores mais próximos já perceberam que, para se viabilizar eleitoralmente, a direita precisa do centro. O Pablo Marçal recusa isso. Então, não sei. Vamos aguardar.

Ultima pergunta: deixando de lado um pouco esse fenômeno do Marçal, se é possível fazer isso, que deverá ser na sua percepção o herdeiro do Bolsonaro em 2026?

O bolsonarismo, quer o Bolsonaro tenha planejado isso ou não, permitiu o surgimento de um monte de outras lideranças de direita, ao contrário do que aconteceu com Lula, no PT. O próprio Pablo Marçal é uma delas. Agora, essa multiplicidade de lideranças talvez tenha que ser administrada, se a direita quiser realmente ter chances nas próximas eleições. Eu acredito que a eleição deste ano, a eleição municipal, ela vai fortalecer a direita. Agora, os líderes da direita precisam tirar as conclusões desse fortalecimento, fazer uma leitura correta dessa conjuntura, para que a direita não marche enfraquecida e dividida para as próximas eleições.


Servidão voluntária

Fernando Schüler, Veja (14/09/2024)

Ao relativizar o sentido das palavras, relativizamos os direitos

Eu andava pelo Chile quando o nosso X, o antigo Twitter, desapareceu. “Qué pasa en Brasil?”, me perguntam em um almoço com colegas acadêmicos. “Longa história”, respondi, “mas basicamente continuam salvando nossa democracia”. Algumas risadas, um certo espanto, e a conversa migrou para outros assuntos. De minha parte, sempre achei o Twitter (muito antes do Elon Musk) uma rede tóxica, mas ótima para informação. Nos últimos anos fui selecionando um punhado de intelectuais que gosto de seguir. Niall Ferguson, Jonathan Haidt, por aí. “Agora complicou”, fiquei matutando. É um pouco como as eleições americanas. Boa parte do debate acontece no X. O jeito é pedir ajuda. Alguém de algum país menos neurótico, na vizinhança, mandar uns prints do que estão falando. O almoço terminou e fui dar uma volta pelas ruas de Santiago, com aquela pergunta no ar: “Qué pasa en Brasil?”. A indagação era um pouco mais complicada: como fomos cair na conversa de que “os instrumentos da democracia não eram suficientes para defender a própria democracia”? A ideia curiosa de que toda censura praticada no país, do PCO, do Marcos Cintra, do Guilherme Fiuza, daquela revista conservadora “que só tinha matérias jornalísticas”, daquela turma que protestava na frente de um evento em Nova York, era sempre necessária para nos salvar de algo. Mesmo agora, com mais força ainda. Dois anos depois das últimas eleições.

É o mesmo com o X. Ler a longa decisão sobre o fechamento da rede é uma aula sobre o estranho país em que nos transformamos. Em algum momento, há uma ordem de banimento de um senador. Em um tuíte, ele fala do Tribunal de Nuremberg e diz que um delegado, que cumpre funções de Estado (valeria para qualquer servidor público?), não deveria obedecer a ordens ilegais. Os termos não são os mais elegantes. Mas está lá. É a opinião do senador. Em outro tuíte, ele alerta que poderá faltar segurança para a reunião do G20, visto que o pessoal anda ocupado com “operações políticas”. É sua visão. Está errado? Não faço ideia. Digo apenas que é basicamente para isso que a Constituinte, nos anos 1980, deu a nossos parlamentares imunidade para expressar “quaisquer opiniões, palavras e votos”. Para que eles pudessem botar a boca no trombone se tivessem algo relevante a dizer sobre o Tribunal de Nuremberg, o princípio da legalidade, ou se quisessem fazer alguma denúncia. Sem a “curadoria” de autoridades. Sem o fantasma da censura prévia. E por quê? Para que nossa democracia fosse feita por um Parlamento isento de medo. De esquerda, de direita, não importa. E cuja responsabilização fosse feita dentro de ritos bem definidos. Que chamamos “devido processo”. Segundo uma “forma”, e não apenas uma finalidade. O que no fundo define a alma de uma república.

A pergunta crucial é velha conhecida: o que diz a lei? Não é preciso ir longe para encontrar uma resposta. Há dez anos, o Congresso aprovou uma lei dizendo que ao juiz cabe determinar a retirada de conteúdos da internet. Observe-se: “conteúdos”, não contas inteiras. Está lá, no Artigo 19º do Marco Civil da Internet. Conteúdos “com identificação clara e específica”, sob pena de “nulidade”. Por que isso? Para evitar o abuso. Para evitar a censura prévia. Tudo isso foi longamente discutido e defendido como uma conquista da democracia. Vale o mesmo para a imunidade parlamentar. Não é um privilégio, mas um tipo de bem público em uma sociedade liberal. E aqui é preciso ser claro: quando as leis dizem “quaisquer opiniões” e autorizam a retirada de “conteúdos”, e não de pessoas, não se trata de brincadeira. O direito se expressa por meio de palavras. Quando relativizamos o sentido das palavras, o que estamos relativizando, de fato, é a força dos direitos. E é precisamente isso que não deveríamos fazer.

Há um lado teórico, na decisão do STF, sugerindo que o “princípio do dano”, formulado por J.S. Mill em seu Sobre a Liberdade, poderia justificar o tipo de censura praticado no Brasil de hoje. A lógica: dado que uma autoridade considera que um discurso possa causar danos aos demais, justifica-se o banimento. Entrariam aí mesmo categorias muito abertas, como discursos de “ódio” ou “antidemocráticos”. Tudo o.k., com um detalhe: o argumento de Mill anda na direção contrária. O que Mill quis dizer é justamente que não se deve censurar alguém apenas porque emitiu uma opinião “odiosa”, signifique isso o que significar. Mill fez uma conhecida distinção para explicar essas coisas: “Uma opinião”, disse ele, “de que os negociantes de milho deixam os pobres famintos não deve ser molestada quando é simplesmente circulada pela imprensa”. Por mais que alguém discorde dessa opinião, ou que ela possa, indiretamente, causar algum dano futuro, deve ser admitida. Sua punição só deve surgir quando aquilo for dito “a uma multidão enraivecida em frente à casa de um negociante de milho”. A imagem não é um mero detalhe. Palavras configuram delitos apenas quando envolverem um risco claro e imediato.

O curioso nisso tudo é o apoio da sociedade. Algo que me fez lembrar, numa noite qualquer, de um pequeno livro perdido no tempo. O Discurso sobre a Servidão Voluntária, escrito por um tipo jovem e inquieto, Étienne de La Boétie, amigo de Montaigne, na França da década de 1550. O livro parte de um insight do jovem La Boétie: nenhuma tirania sobrevive sem a aceitação popular. É uma premissa lógica. Se as pessoas se recusarem a obedecer, o poder se desfaz. A partir daí, ele se põe a pergunta: por que as pessoas aceitam? O Brasil, por óbvio, não vive uma tirania. Nosso problema é bem mais sutil. É a aceitação dessa estranha “militância da democracia”, cuja pedra de toque, por curioso que seja, é certo jogo com as regras do direito. E por aí vale a pena lembrar de La Boétie. Seu livro antecipa o paradoxo da ação coletiva: podemos todos desejar a liberdade, mas, nas urgências da vida, as coisas não funcionam bem assim. Vale a pena, para um jornalista, fazer uma crítica dura a uma medida de censura? Vale a pena para um jurista contestar a decisão de uma alta autoridade judiciária que julgará um caso seu logo ali à frente? E para um militante que quer mais é ferrar seu inimigo, faz mesmo sentido defender seu “direito à expressão”? Talvez seja isso. Mistura de medo, interesse, conveniência. O fato é que fui lá, na minha estante, limpei um pouco a poeira, e reli meu velho La Boétie.

O que talvez nos ajude é que estamos diante de uma experiência inédita em nossa democracia: não meia dúzia, mas um país inteiro bloqueado, feito um bando de crianças grandes, em uma rede importante para o debate público. E talvez surja daí algum caminho. O bloqueio do X mexeu com o dia a dia de muita gente, com o acesso à informação, com poder das pessoas para dizerem o que pensam. E é talvez por isso que vejo muita gente refletindo. Querendo entender aquela pergunta que me fiz, caminhando pelas ruas de Santiago. Para qual, confesso, ainda não encontro uma boa resposta.


Perguntar ofende?

Demétrio Magnoli, Folha de São Paulo (14/09/2024)

Para Silvio Almeida, direitos humanos não são direitos universais, mas privilégio de aliados ideológicos

1. Na hora do escândalo, Silvio Almeida usou a estrutura do ministério para contra-atacar — mas o denunciado por importunação sexual foi o indivíduo, não o ministro. No que essa captura da máquina estatal para fins pessoais distingue-se conceitualmente da operação de Bolsonaro de apropriação privada das joias sauditas?

2. Naquela hora, Almeida ativou sua voz informal — isto é, a ONG que fundou — para acusar as denunciantes de uma ofensiva racista contra o “povo preto”. Na democracia representativa, só o voto produz representação. Desde quando o “povo preto” concedeu ao ex-ministro a prerrogativa de representá-lo?

3. Segundo a ONG que serve de boneco de ventríloquo para Almeida, a suposta ofensiva racista abrangeria também vozes negras. Deve ser enquadrado em “racismo estrutural” qualquer um que contrarie as ideias ou os interesses de Almeida?

4. Mulheres sujeitas a assédio por superiores temem denunciar judicialmente o agressor. Contudo, não existia assimetria de poder entre Anielle Franco e Almeida. Por que a ministra preferiu o caminho tortuoso da denúncia anônima ao Me Too à via cristalina do recurso ao sistema judicial? Teria, no caso, a indignação moral cedido ao cálculo político?

5. “Taradão da Esplanada” — assim Bolsonaro rotulou Almeida. Na GloboNews, uma ativista da Coalizão Negra por Direitos revoltou-se contra a mera menção ao princípio da presunção de inocência. Será que o linchamento retórico é mais um traço comum à esquerda e à direita identitárias?

6. Na sua defesa pública, Almeida alegou que “não existem provas contra mim” e murmurou algo sobre sua esposa e filha nenê. A mescla de linguagem de advogado com o recurso emotivo é pouco convincente. Mesmo assim, no Estado de direito, culpa ou inocência são definidas pelo devido processo legal. Os jornalistas que condenaram de antemão o ex-ministro já esqueceram da Escola de Base? Esqueceram-se, ainda, dos nomes Woody Allen e Kevin Spacey, ambos absolvidos nos tribunais anos depois de destroçados pelo linchamento público?

7. A pluralidade de ideias é uma ideia estranha a Almeida. Antes de ser elevado a ministro, ele deflagrou uma campanha infame (porém vitoriosa) pelo veto à publicação de textos de Antonio Risério nesta Folha. O “crime” do “cancelado” teria sido apontar manifestações racistas oriundas de negros. Na opinião de Almeida, só ele mesmo tem o direito de sugerir, com ou sem razão, que negros também podem engajar-se em racismo?

8. No rastro da demissão, ouviu-se uma enxurrada de lamentos: “Dia triste, uma derrota para os direitos humanos!”. Almeida publicou um texto evasivo que, na prática, atribuía a condenação da guerra imperial russa na Ucrânia a “reflexões “maniqueístas” e responsabilizava o “expansionismo capitalista” pela agressão russa (folha.com/v2tb0mrg). Desde a fraude eleitoral na Venezuela, não deu um pio sobre as prisões e torturas de opositores. Para ele, direitos humanos não são direitos universais, mas privilégio de aliados ideológicos. Não é mais apropriado celebrar sua queda como uma vitória para os direitos humanos?

9. Quanto demorará até que Almeida e Anielle voltem a se abraçar (figurativamente, claro!) para rotular essa coleção de perguntas como um abominável ataque racista contra o “povo preto”?


A ideia de socialismo

Denis Lerrer Rosenfield, O Estado de S. Paulo (09/09/2024)

Há ideias bizantinas em curso sobre a ideia de socialismo, como se fosse uma proposta etérea, quase divina, que se confrontaria contra todas as formas existentes de organização social, política e econômica, sobressaindo o capitalismo como o inimigo número um. Capitalismo, entenda-se, a economia de mercado, a democracia, a livre concorrência, a liberdade de escolha que os cidadãos têm de decidirem sua própria vida e o Estado de Direito.

Cria-se uma situação assaz curiosa, a de comparar a ideia de uma sociedade perfeita, a cidade de Deus, a todas as sociedades existentes. Nessa lógica desprovida de razão, o embate seria sempre favorável ao socialismo. Não é feita a comparação entre o socialismo existente, em suas várias realizações históricas, exemplificado na experiência comunista, e as sociedades capitalistas, exemplares na democracia e na defesa das liberdades, além de propiciarem a mudança do padrão de vida dos mais necessitados.

Para evitar qualquer mal-entendido, sublinhe-se que a única forma de sociedade socialista existente historicamente de cunho democrático foi a social-democrata, que se afastou da violência revolucionária, da subversão da democracia, defendeu a economia de mercado, chegando a sustentar, na formulação de Eduard Bernstein e do velho Engels, as sociedades por ações, capitalistas, equiparando-as a formas socialistas de organização da economia.

Lá, onde o socialismo/comunismo se realizou, a experiência foi atroz. A ex-União Soviética foi um exemplo de emprego da violência não apenas para a conquista do poder, mas para a repressão sistemática de toda a sociedade. Soviéticos eram nada mais do que servos do Partido Comunista. Os resultados foram o apagamento das liberdades, os campos de educação forçada, os Gulags, com todo o seu morticínio, e a fome produzida, como o Holodomor na Ucrânia nos anos 1932-1933. A China de Mao seguiu o mesmo caminho, eliminando 60 milhões de pessoas, disseminando a fome e a repressão. No Camboja, os comunistas se superaram: eliminaram, com planejamento, 50% de sua população, e foram celebrados, entre outros, por intelectuais franceses. A lista é longa.

A Coreia do Norte é outro anacronismo histórico, como exemplo de ditadura totalitária.

Mais perto de nós, temos a ditadura comunista/castrista em Cuba, com repressão, fome, tortura e controle policial de sua população, objeto de encanto da intelectualidade de esquerda no Brasil. E, ao nosso lado, a experiência bolivariana. Eis a realização histórica da Ideia de socialismo/comunismo.

Com o desmoronamento da União Soviética e a queda do Muro de Berlim, a palavra comunista perdeu o seu charme, tendo sido substituída pela de socialismo. A ditadura de Maduro e, antes dela, a de Chávez denominam-se precisamente de “socialismo do século 21”. Haja ignorância ideológica para sustentar tais posições. Contudo, há um fenômeno interessante aqui. Alguns chegam hoje a dizer, ao arrepio dos fatos e do bom senso, que o Estado bolivariano deformou ou se afastou da ideia ou do conceito de socialismo; e os mais arrojados chegam a sustentar que não se trata de socialismo. São os nostálgicos da ideia utópica de socialismo.

Ora, trata-se, ademais, de um erro filosófico, pois a Ideia, nos dizeres de Hegel e Marx, é nada mais do que o seu processo de realização, expondo em seu desenvolvimento a sua essência. Isto é, a ideia de socialismo/comunismo é o seu processo histórico de efetuação. Ideia sem seu processo, histórico, é uma mera abstração, carente de significado. Sobra somente esta forma específica de fanatismo teológico/político.

Não deveria surpreender, por via de consequência, que o governo Lula contemporize todo o tempo com o ditador Maduro, tendo o presidente afirmado, no passado, que a Venezuela de Chávez exemplificava um “excesso de democracia”. Estamos vendo o seu resultado, com a violência escancarada. O PT nem esconde o seu apoio a Maduro e ao “socialismo”, sendo nisso coerente com sua opção autoritária, antidemocrática. Em suas opções liberticidas e antiocidentais, há também coerência na defesa da violência do Hamas e de sua concepção totalitária, pregando a extinção do Estado de Israel. A organização terrorista acaba de executar 6 reféns, com tiros a sangue-frio na parte de trás de suas cabeças. Alguém viu ou ouviu alguma condenação do PT ou da diplomacia lulista? Calam-se vergonhosamente, expondo sua verdadeira natureza.

Agora, na comemoração do 7 de Setembro, propuseram, e depois recuaram, a participação do MST no desfile, com as Forças Armadas sendo obrigadas a baterem continência a esta organização revolucionária, socialista/comunista. O MST é fiel partidário de Maduro (afinal, defendem o “socialismo”). Desrespeita sistematicamente a propriedade privada, com uso de violência na invasão de terras em todo o País. Lula e os petistas amam o seu boné. Batem eles continência à violência, ao autoritarismo, ao apagamento das liberdades e à destruição da democracia. São “socialistas”.


As voltas que o STF dá

Merval Pereira, O Globo (08/09/2024)

O ministro Alexandre de Moraes foi o grande homenageado no desfile oficial de 7 se setembro, e o grande vilão da manifestação da Avenida Paulista liderada por Bolsonaro

Muito antes de existir Bolsonaro como personagem política relevante, havia o mensalão e o petrolão, depois veio a Operação Lava-Jato, respaldada seguidamente pelo Supremo Tribunal Federal (STF) que, durante cerca de cinco anos, recusou sistematicamente os recursos da defesa do ex-presidente Lula, tornando-se alvo dos petistas. Batendo continência para o juiz num aeroporto, Bolsonaro não foi reconhecido pelo magistrado, e houve quem comemorasse o aparente desprezo de Sérgio Moro. O encarceramento de Lula deu-se porque a prisão em segunda instância foi aprovada pelo Supremo, e a esquerda colocava o STF como seu inimigo.

De repente, não mais que de repente, o Supremo mudou de posição. Acabou com a prisão em segunda instância, e descobriu que a Operação Lava-Jato em Curitiba não tinha jurisdição para julgar os casos. Decidiu também, com base em provas ilegais, que o juiz Sergio Moro era suspeito. Ontem, depois das muitas voltas que o mundo dá, especialmente no Supremo, o ministro Alexandre de Moraes foi o grande homenageado no desfile oficial de 7 se setembro, e o grande vilão da manifestação da Avenida Paulista liderada por Bolsonaro.

Tornou-se explicitamente o centro da polarização política do país, para a redução dramática do papel do Judiciário, que se tornou um apêndice do Executivo, fortalecendo a impressão de que há uma dobradinha entre os dois Poderes para enfrentar o ex-presidente Bolsonaro. Nada melhor para este, que continua se fazendo de vítima do sistema do qual faz parte há décadas. Dos ministros do STF, apenas Alexandre de Moraes e mais dois – Zanin e Gilmar Mendes – compareceram ao desfile oficial, numa mensagem de que a maioria se negou a assumir esse tipo de solidariedade que coloca em xeque a isenção da mais alta Corte do país. Luis Roberto Barroso estava lá no papel de presidente do STF.

Não importa, ou importa pouco, que Bolsonaro não tenha conseguido colocar na Avenida Paulista uma multidão semelhante a outras. Colocou gente suficiente para demonstrar sua liderança, e conseguiu fazer do STF um símbolo do que deve ser extirpado numa futura retomada de poder por seu grupo político. A presença do governador Tarcisio de Freitas, que defendeu o indefensável, a anistia dos acusados da tentativa de golpe de 8/1, torna sua candidatura mais ligada a Bolsonaro do que nunca, ainda mais depois que ele tentou, sem sucesso, conversar com Alexandre de Moraes sobre o banimento do aplicativo X de Elon Musk. Moraes teria cortado a conversa drasticamente: “Nem tente!”.

Temos então o governador do maior estado do país, e provável candidato à presidência da República em 2026, em rota de colisão com o ministro do Supremo mais poderoso do momento. Não é um futuro promissor. Ao que tudo indica, a oposição aumentará sua representação no Senado na próxima eleição, quando serão escolhidos dois novos ocupantes em cada Estado. É nesse cenário que se dará a disputa mais crucial para a política, pois o impeachment de Alexandre de Moraes, pedido na Paulista ontem aos berros, será o objetivo da oposição.

A moderação do governador Tarcisio de Freitas, uma das qualidades necessárias para levar o país a bom termo em 2026, pode ser envenenada pela ala mais radical do bolsonarismo, o que poderá dar um caráter mais agressivo à campanha eleitoral. A defesa da anistia para os acusados da tentativa de golpe já dá ao governador paulista a bandeira de uma campanha eleitoral que não teria nada de equilibrada. Se lhe dará votos entre os bolsonaristas, tirará entre os conservadores que não se misturam com golpistas.

Bolsonaro se contém dentro de limites estreitos na esperança de que ainda vingará no Congresso alguma anistia que o beneficie, o que considero improvável antes das eleições presidenciais. Depois, veremos se um eventual vencedor do grupo da direita terá interesse em anistiar Bolsonaro para tê-lo como candidato contra sua própria reeleição. Dilma, cria de Lula, não lhe abriu espaço, não parece provável que Tarcisio ou outro qualquer faça diferente.


Moraes ao lado de Lula é ajudar os verdadeiros golpistas

Fabiano Lana, O Estado de São Paulo (07/09/2024)

Ao aceitar o convite presidencial, no mesmo dia em que ato na Avenida Paulista pede seu impeachment, ministro do STF fortalece a imagem de que ele não consegue se comportar como um juiz a analisar e julgar objetivamente os fatos

Dezenas de milhares de pessoas irem para as ruas para celebrar ou repudiar um juiz de direito não é uma circunstância que mostre saúde democrática. Até porque, em tese, o Judiciário deveria estar equidistante e ser imparcial nas lutas políticas. Mas foi o que ocorreu hoje na Avenida Paulista, quando a multidão pediu o impeachment do ministro do Supremo Tribunal Federal, Alexandre Moraes. Nesse sentido, Moraes, com toda sua hipotética consciência de que política é sobretudo simbolismo, coloca mais fogo nas labaredas ao aparecer juntamente com o presidente Lula no desfile de 7 de Setembro.

Muitas evidências indicam que o ex-presidente Jair Bolsonaro pode ter tentado permanecer ilegalmente no poder por meio de um golpe de Estado. Não conseguiu o apoio das Forças Armadas e por isso precisou recuar. Além disso, dia 8 de janeiro de 2023, vândalos que esperavam a efetivação desse golpe depredaram parcialmente as sedes dos Três Poderes, o Parlamento, o STF, e o Palácio do Planalto.

Crimes foram cometidos e a punição deveria ser exemplar. Alexandre de Moraes recebeu as atribuições de comandar esse processo e precisava mais do que nunca se mostrar imparcial. Mas deixou a autocontenção de lado. Instaurou censura prévia no Brasil, perseguiu anônimos, calou políticos e jornalistas, numa escalada que levou à proibição do “X” no Brasil, inserindo o País numa lista que inclui China, Coreia do Norte, Irã, Turcomenistão, Rússia e Mianmar – não por acaso países autocráticos ou ditatoriais.

Composta por MC Reaça, um rapper que morreu em 2019 em meio a um escândalo familiar, o hip hop “Suprema Vergonha Nacional” tocava em caixas de som dos trios elétricos da Paulista com a letra que continha o seguinte verso: “O Supremo Tribunal, maior corte do Brasil, virou vergonha nacional da pátria que nos pariu”, entre os que gritavam “ditadura do Judiciário”. Um sintoma de que parte da população brasileira parece estar a um passo da desobediência civil. Qual seria a solução? Prender cerca de metade de população brasileira?

Na argumentação dos defensores do Supremo, todas as ações tomadas por Alexandre de Moraes são para salvar a democracia – mesmo que o pior já tenha passado há tanto tempo. Mas parecem fechar os olhos para os abusos cometidos e, pior, dão alimento para golpistas se passarem por perseguidos. Politicamente, inclusive, ser considerado injustiçado é um trunfo. Lula que o diga. O tom religioso de tantas falas na avenida Paulista, com citações a Jesus Cristo, corrobora a tese.

Por pequenos gestos como estar em cerimônia ao lado de Lula no mesmo dia em que, a pouco mais 1 mil km de distância, em São Paulo, uma turba pede seu impeachment, Alexandre de Moraes – mesmo que haja justificativas institucionais – não parece se comportar com um juiz a analisar e julgar objetivamente os fatos. Ao indicar que haveria uma aliança entre o Palácio do Planalto e o Judiciário, hoje, na prática, ajuda os verdadeiros golpistas a contarem sua história – clamando, para ironia da história, por liberdade.


Danos colaterais

Carlos Alberto Sardenberg, O Globo (07/09/2024)

Decisão deixou 22 milhões de brasileiros sem acesso a uma plataforma em que tinham liberdade para falar o que quisessem

De um colega:

— E agora, sem Twitter, como a gente vai derrubar o técnico? Como criticar as séries? Como falar mal do trânsito e dos políticos?

Piada à parte, a suspensão do X deixou 22 milhões de brasileiros sem acesso a uma plataforma em que tinham liberdade para falar o que quisessem. Verdade que se fala muita bobagem, cretinice, coisas de péssimo gosto. Verdade também que há baixaria da pior espécie. Mas também foi no X que tomei conhecimento de bons artigos, belos argumentos, sacadas divertidas, polêmicas inteligentes. Verdade também que o X aceita manifestações antidemocráticas e foi amplamente usado na tentativa do golpe bolsonarista.

Colocando tudo na balança — pelo menos na minha visão —, tem mais porcaria que coisa boa. Mas e daí? Acontece nas conversas por aí, também em outras plataformas. Dos 22 milhões de usuários do X, quantos seriam criminosos ou “supostos criminosos”? Dito de outra maneira: “quase” 22 milhões de brasileiros inocentes que foram apanhados nessa história. Como chegamos a esse ponto?

No plano imediato, todos sabem a resposta. Alexandre de Moraes suspendeu o X porque o dono, Elon Musk, se recusa a nomear um representante legal no Brasil. Não pode, ponto. Mas tem muita história antes disso que envolve algo essencial. Tempos atrás, publiquei um livrinho intitulado “Neoliberal, não. Liberal”, pela Editora Globo. São ensaios variados, a partir de colunas no jornal. É como me considero: liberal. E, para um liberal, o valor essencial é a liberdade de expressão.

Corolário: não pode haver censura prévia.

Não precisam me dizer que liberdade supõe responsabilidade ao praticá-la. Todo mundo é responsável pelo que diz e pelo que faz. Claro que ninguém pode gritar fogo numa sala de cinema lotada. Mas também não se pode proibir que falem dentro do cinema. Liberdade e democracia supõem riscos, que devem ser controlados.

Como? Em princípio, é simples, para um liberal, claro. Se o cidadão comete um crime no discurso ou nos atos, tem de ser punido por isso — para isso existe a Justiça independente. Para apurar, investigar, processar e sentenciar. Isto mesmo: primeiro a liberdade, depois a punição, se o crime for devidamente provado. E a Justiça tem de ser pública, transparente e a tempo. O que inibe o criminoso é a certeza de que será apanhado e punido. Os menores índices de criminalidade ocorrem justamente nos países onde a polícia e a Justiça mais resolvem os crimes.

Portanto o inquérito presidido por Alexandre de Moraes ofende o liberalismo. Não é aceitável que um único juiz investigue e decida, em sigilo, sem dar ciência sequer a seus pares, que certos cidadãos não podem falar nas redes. Sim, ele obteve apoio unânime, na Primeira Turma do STF, à decisão de suspender o X. E foi só. Não colocou na mesa de seus pares outras duas decisões inaceitáveis para um liberal: bloquear as contas da Starlink e ameaçar com multa absurda o brasileiro que tentar acessar o X via VPN.

O principal acionista da Starlink é o mesmo Musk, mas se trata de empresa diferente, para público brasileiro diferente, com outros acionistas que não têm nada a ver com o X. E ameaçar com multa quem tentar acessar o X é coisa de regime arbitrário. O que vai fazer o STF: criar um sistema para vigiar o acesso de todos os brasileiros às redes sociais? Não, o processo de banimento das redes tem de ser aberto, transparente, dando aos alvos, de qualquer lado, o direito de se defender nos foros apropriados. O que não é possível quando tudo ocorre em sigilo.

Musk não é liberal, nem democrata. Como diz a revista The Economist, ele “processa judicialmente aqueles com quem não concorda, proíbe palavras de que não gosta em sua plataforma e é cordial com Vladimir Putin, cujo instrumento preferido de moderação de conteúdo é o Novichok”, um veneno fatal. Cabe processo? Que se processe. Mas ninguém é obrigado a abrir conta no X ou em qualquer outra plataforma.

Sei que há muitas outras questões envolvendo as redes e as big techs. Mas os diversos problemas são usados para justificar a censura prévia, e secreta, daqui a pouco batendo na imprensa.


Uma Rosa para Moraes

Demétrio Magnoli, Folha de São Paulo (07/09/2024)

STF que hoje exercita censura prévia contra uns amanhã poderá exercê-la contra outros

“Liberdade somente para os partidários do governo, somente para os membros de um partido, por mais numerosos que sejam, não é liberdade. Liberdade é sempre a liberdade de quem pensa de modo diferente. Não por fanatismo pela ‘justiça’, mas porque tudo quanto há de vivificante, salutar, purificador na liberdade política depende desse caráter essencial e deixa de ser eficaz quando a ‘liberdade’ torna-se privilégio.”

A passagem, escrita há 106 anos pela comunista Rosa Luxemburgo, era uma crítica aos bolcheviques triunfantes na Rússia. Hoje, deve ser lida por Alexandre de Moraes e seus colegas do STF que violam a Constituição para impor censura prévia.

O conflito com o X originou-se de uma coleção de ordens de derrubada de perfis que, em sua maioria, permanecem sob segredo de Justiça. Para derrubá-los, Moraes presumiu crimes futuros a partir de supostos crimes passados. É uma aberração jurídica típica de regimes de força.

Vieram a público alguns dos perfis atingidos. As postagens abrangem tanto crimes de palavra quanto meras opiniões idiotas. Mas, nas suas justificativas, o ministro incrimina a “desinformação” e “discursos antidemocráticos”. São expressões vagas que conduziriam à proibição de vasta parcela do discurso político, inclusive declarações do atual presidente sobre a Venezuela. Com amparo do STF, Moraes arroga-se a função de Censor-Geral da República.

O Censor-Geral proibiu, ainda, uma entrevista de Filipe Martins à Folha. O ex-assessor de Bolsonaro, uma nulidade intelectual formada na escolinha do professor Olavo, sofreu prisão preventiva ilegal durante seis meses, até Moraes reconhecer que inexistia prova de sua suposta viagem ao exterior. O veto à entrevista baseou-se na presunção imotivada de que ela serviria para comunicação com outros investigados.

É profecia de crime futuro por parte de um acusado –e com a conivência do jornalista entrevistador. O ministro cassa direitos de um indivíduo não condenado e, no mesmo passo, restringe a liberdade de imprensa.

O STF operou, anos atrás, como torcida uniformizada de Sergio Moro. À época, para defender-se dos (raros) críticos, acusava-os de complacência com a corrupção. Hoje, nas suas coreografadas unanimidades, o tribunal opera como cortejo de Moraes, acusando os (raros) críticos de conluio com o golpismo bolsonarista. Trata-se de retórica de regimes autoritários que justificam excepcionalidades pela especulação sobre as motivações ocultas de quem diverge, não de juízes de capa preta.

As arbitrariedades de Moraes são celebradas pelo bolsonarismo. Seus atos reabilitam o discurso cínico de extremistas fantasiados como campeões da liberdade. Tiro no pé.

Recordo de um tempo no qual os progressistas promoviam justos escândalos diante de ataques à liberdade de expressão. Isso ficou no passado: a derrubada de perfis e a proibição da entrevista provocaram um misto de surdos resmungos e franca aprovação. Nos dias que correm, intoxicados pelas guerrinhas estéreis das redes, os progressistas praticam o esporte de clamar pela limitação da liberdade “de quem pensa de modo diferente”.

Precedentes têm peso. O STF que hoje exercita a censura prévia contra uns, amanhã poderá exercê-la contra outros. Antídoto: ler a lição sobre democracia ensinada por uma comunista.


Volta à normalidade

Merval Pereira, O Globo (05/09/2024)

As reações voluntaristas de Moraes para tentar dobrar seu adversário Musk resultaram em decisões jurídicas questionáveis, que deixaram 22 milhões de brasileiros fora do ar

O convite do presidente Lula para que o ministro do Supremo Tribunal Federal (STF) Alexandre de Moraes assista ao desfile de 7 de setembro no palanque oficial, em resposta à manifestação bolsonarista contra o magistrado marcada para o mesmo dia na Avenida Paulista, é um erro político. Permite aos adversários ver nele a confirmação de que as ações de Moraes correspondem a um jogo em comum acordo com o Planalto.

O que deveria ser uma disputa jurídica ganhou contornos políticos, para gosto de Elon Musk. As reações voluntaristas de Moraes para tentar dobrar seu adversário Musk resultaram em decisões jurídicas questionáveis, que deixaram 22 milhões de brasileiros fora do ar. Pouca gente ficará a favor de Musk, ou de Moraes, por questões de patriotismo. Trata-se aqui de impedir que uma das redes sociais mais usadas pelo brasileiro em seu dia a dia esteja a nosso alcance, por visões políticas que nada têm a ver com a maioria dos usuários.

Como as decisões de Moraes são sigilosas, só ele sabe em que se baseou para exigir o banimento de perfis da rede. Nem mesmo seus próprios colegas de toga têm ideia. Tornou-se um juiz acima dos demais pares, lugar a que foi erguido por uma decisão monocrática do presidente do STF à época do início do inquérito sobre fake news. A partir daí só fez aumentar seu poder, com acobertamento dos colegas.

Como todo ser humano sem limitações legais, acertou mais do que errou, talvez, mas cometeu erros que põem hoje o Supremo em suspeição perante a sociedade e a opinião internacional. Visto sem as neuroses criadas pelas questões internas, muitas das decisões de Moraes são abusivas. Deduzir que a Starlink e o X fazem parte de um “grupo econômico de fato”, daí bloquear as contas de uma para pagar as multas da outra, é uma decisão jurídica no mínimo questionável.

Decretar multa de R$ 50 mil para um brasileiro que use VPN para acessar o X noutro país, além de impraticável, é medida autoritária que incomoda qualquer cidadão que preze sua liberdade. Transforma qualquer cidadão num criminoso clandestino fugindo de um ditador onipresente. Equiparar o Brasil a países ditatoriais que baniram o X, como Coreia do Norte ou Irã, pode ser injusto porque a razão dessas ditaduras foi banir um canal de informação que permitia ao povo se inteirar dos acontecimentos do mundo. Aqui, a questão é outra, embora tenha desaguado no mesmo mar autoritário.

O X saiu do ar porque não indicou representante legal para atuar no Brasil, o que é contra a lei. A consequência, porém, foi a mesma, tão indiscriminada quanto nos países ditatoriais. Os brasileiros ficaram proibidos de acessar o X porque um grupo de militantes políticos o usava para criticar as autoridades do Supremo e de outros Poderes. Muitas vezes até pregando medidas antidemocráticas.

A discussão travou-se então entre os limites dessa atuação, mas de maneira desigual. Moraes determinava quem deveria ser punido, e não havia recurso fora de sua esfera para que a decisão fosse contestada. O banimento de perfis, como já escrevi, é censura prévia. Os ataques, por mais grosseiros, passaram a ser tratados como ameaças concretas à democracia, assim como vaias ou discussões em áreas públicas.

Com os acontecimentos de 8 de janeiro de 2023, os antigos tuítes passaram a ser vistos como parte da mesma tentativa de golpe, e as punições passaram a ser indiscriminadas. Não tenho dúvida de que o que aconteceu no 8 de Janeiro foi uma tentativa de golpe. Mas, uma vez superada pela ação da maioria democrática, com o auxílio fundamental do Supremo, precisamos voltar à normalidade e rever os critérios que criminalizam as idiotices espalhadas nas redes. Não precisamos de salvadores da pátria para nos proteger de ilegalidades com ilegalidades.

Coleção de editoriais dos grandes jornais

A “internacional fascista” e o eixo autocrático