Lula alinha o Brasil ao Irã
Editorial, O Estado de S. Paulo (05/10/2024)
Presidente precisa responder como sua afinidade com os aiatolás favorece os princípios constitucionais da diplomacia, como a prevalência dos direitos humanos e o repúdio ao terrorismo
Assim como escolheu tacitamente alinhar o Brasil à Rússia na agressão que o regime de Vladimir Putin cometeu contra a Ucrânia, apoiando inclusive uma proposta para o fim da guerra que equivale à capitulação da Ucrânia, o presidente Lula da Silva decidiu explicitamente alinhar o Brasil ao Irã no conflito com Israel.
Os sinais são inequívocos. Quando Israel decidiu atacar bases do Hezbollah no Líbano após um ano sendo agredido diariamente, o Itamaraty condenou a operação “nos mais fortes termos”. Quando o Irã, sem ser atacado diretamente, lançou sobre Israel uma chuva de 200 mísseis para vingar o Hezbollah, o governo se limitou, quase num sussurro, a manifestar “preocupação”. Há meses o Brasil retirou seu embaixador de Israel, o que equivale, se não de jure, de facto, a um rompimento diplomático. Mas o Planalto prestigiou o Irã enviando o vice-presidente Geraldo Alckmin à posse do novo presidente iraniano, onde formou fila com terroristas do Hezbollah, do Hamas, da Jihad Islâmica e da milícia Houthi.
A relação entre israelenses e palestinos tem uma história complexa e dolorosa que pode ser traçada até os tempos bíblicos. Não há inocentes nessa história. Mas a visão simplista e simplória de Lula reduz tudo a uma dicotomia maniqueísta entre “opressores” e “oprimidos”. Lula é incapaz de condenar o Hamas como um grupo terrorista, mas equipara o governo de Israel ao nazismo. Recentemente, Lula lamentou que a ONU não tenha autoridade “de fazer com que Israel se sente numa mesa para conversar ao invés de só saber matar”. Mas, só para ficar na história recente, desde os Acordos de Oslo de 1993, Israel cumpriu suas obrigações, concedeu territórios ocupados em Gaza e no Líbano, e o resultado foi mais terrorismo e ataques aos seus cidadãos.
Enquanto os palestinos não tiverem um lar e autonomia para governá-lo, Israel não estará seguro e sua democracia não será plena. Ainda assim, Israel é a rigor a única democracia no Oriente Médio, e o único Estado genuinamente laico, que reconhece direitos iguais às mulheres e abriga cerca de um quinto da população de árabes, com plenos direitos políticos.
Em contraste, o Irã é um regime totalitário teocrático e imperialista que desrespeita sistematicamente os direitos humanos de seus cidadãos. Israel não tem como política de Estado destruir outro país. Já o Irã prega oficialmente não só a destruição de Israel, mas, a rigor, a submissão de todas as nações à sua revolução jihadista xiita, e não hesita em empregar para esse fim milícias terroristas que oprimem povos e provocam conflitos no Oriente Médio e já mataram milhares de civis ao redor do mundo.
Isso não significa que o Brasil deva se alinhar automática e incondicionalmente a Israel contra o Irã, mas tampouco que deva ser neutro. Países não têm amigos, têm interesses, e os interesses da política externa brasileira são os consagrados na Constituição: a prevalência dos direitos humanos, da autodeterminação dos povos, da solução pacífica dos conflitos e do repúdio ao terrorismo.
Aplicados ao Oriente Médio, esses princípios implicam a repressão de organizações terroristas; o favorecimento da diplomacia nos conflitos entre nações, ao invés de confrontos armados diretos; e uma solução para o povo palestino que passe por uma concertação dos países árabes com Israel para a pacificação e governança dos territórios palestinos, até a criação de um Estado. Quanto ao Irã, cabe apoiar formas de dissuadir sua agressividade externa, o que inclui condenar qualquer tentativa de criar um arsenal nuclear, e, na medida do possível, favorecer reformadores que buscam restaurar os direitos humanos e as liberdades políticas dos iranianos.
Obviamente, é mais fácil dizer do que fazer. Mas, se o caminho é tortuoso e os instrumentos do Brasil são escassos, ao menos os fins deveriam ser claros. Porém a única coisa clara sobre a diplomacia do governo Lula é sua oposição a Israel e seu alinhamento com o Irã. Os brasileiros, suas lideranças civis e seus representantes eleitos têm uma singela questão a fazer a Lula: qual o interesse do Brasil na sua fraterna amizade com os aiatolás?
Mistificação intelectual
Editorial, O Estado de S. Paulo (02/10/2024)
Manifesto de artistas e intelectuais pede ‘voto útil’ em Boulos para impedir vitória de um certo ‘bloco antidemocrático’. Nem a democracia está em risco nem Boulos é a única alternativa
A campanha de Guilherme Boulos (PSOL) para a Prefeitura de São Paulo parece ter entrado em modo desespero, ao estilo “ninguém solta a mão de ninguém”, diante da possibilidade de o candidato esquerdista nem sequer chegar ao segundo turno.
Só isso explica a publicação de um criativo manifesto, assinado por uma seleta de artistas e intelectuais, que na prática implora aos eleitores da candidata Tabata Amaral (PSB) que desistam de votar nela em favor do chamado “voto útil” em Boulos, cujo objetivo seria conter o “risco de dois candidatos bolsonaristas passarem ao segundo turno: Ricardo Nunes e Pablo Marçal”. Para essa turma, uma eventual derrota do ex-líder dos sem-teto representaria um risco para a democracia.
Todas as pesquisas de intenção de voto apontam empate triplo, dentro da margem de erro, entre Nunes, Boulos e Marçal. De acordo com os dados disponíveis hoje, qualquer combinação de segundo turno envolvendo esses três candidatos é factível, inclusive a hecatombe que assombra os signatários do manifesto, aquela que exclui Boulos da disputa final pelo governo da capital paulista. Porém, nas simulações de segundo turno, Boulos perderia fragorosamente para Nunes e venceria Marçal por margem pequena de votos, nem de longe suficiente para lhe dar segurança na vitória. A única candidata que venceria todos eles no segundo turno, de acordo com as pesquisas, é, ora vejam, Tabata Amaral.
Portanto, se a intelectualidade que assinou o manifesto pusesse o intelecto para trabalhar, defenderia o “voto útil” em Tabata, e não em Boulos, caso o objetivo fosse evitar a vitória de um dos terríveis bolsonaristas em São Paulo. Mas Tabata carrega consigo um vício de origem aos olhos desses ditos “progressistas”: ela se perfila ao centro do espectro político, resistindo às estocadas do PT para desistir da campanha e recusando-se, ao menos até agora, a se comprometer em apoiar Boulos num eventual segundo turno.
O tal “manifesto”, ademais, se presta somente a confirmar algo que já ficou claro há bastante tempo: a esquerda não consegue oferecer nada ao País a não ser uma alegada “defesa da democracia” – e em termos inequívocos: para esses pensadores, os candidatos da direita integram um “bloco antidemocrático” que pretende usar uma eventual vitória em São Paulo para “dar uma demonstração de força” e “destruir os direitos mais básicos da república brasileira”. Afirmam ainda que “um resultado como esse representaria a consagração, pelo voto popular, da violência política, da defesa da tortura, do negacionismo científico, da destruição de direitos, do descaso com os mais pobres, do desprezo com a cultura, com as minorias e com a democracia além do vasto programa de destruição do meio ambiente”.
Poucas vezes se viu tamanha mistificação numa campanha eleitoral. Ao contrário do que dizem os signatários do “manifesto”, a democracia não corre o menor risco na cidade de São Paulo. Quem corre sério risco é Lula, que colocou todas as suas fichas na campanha de Boulos e, em caso de revés, sairá bastante desmoralizado.
Se é de democracia genuína que se trata, então o tal “manifesto” é exemplo de genuíno autoritarismo. Ali, os adversários do candidato ungido por esses luminares são tratados como demônios, e não como oponentes legítimos numa disputa política como qualquer outra. Os signatários terminam o texto convocando “todas as pessoas comprometidas com a empatia, a democracia, a humanidade e o futuro” a votar, “já neste domingo, em Guilherme Boulos”. Ou seja, ficou definido que quem não votar no sr. Boulos é desalmado, sem empatia, sem apreço pela democracia e desprovido de humanidade.
Como intelectuais, os manifestantes decerto sabem (ou deveriam saber) que é típico do pensamento totalitário reivindicar o monopólio da virtude e considerar adversários políticos como inimigos existenciais. Foi assim que ditadores como Hugo Chávez, Nicolás Maduro, Daniel Ortega e o mestre de todos, o Comandante Fidel, construíram seus regimes tiranos – tão admirados, aliás, por Lula, Boulos e vários dos aflitos signatários do manifesto.
Papelão do Brasil na ONU
Editorial, O Estado de S. Paulo (01/10/2024)
Arrastado pelos ressentimentos antiocidentais de seu presidente, o Brasil abandona sua independência diplomática e seus valores democráticos para se alinhar ao eixo liderado por China, Rússia e Irã
Sob o governo Lula, o Brasil abandonou quaisquer vestígios de independência na polarização geopolítica entre o eixo autocrático sino-russo-iraniano e as democracias ocidentais. A Assembleia Geral da ONU explicitou esse alinhamento. Sua imagem mais reveladora foi o boicote da delegação brasileira ao discurso do premiê israelense, Benjamin Netanyahu. Enquanto isso, diplomatas brasileiros persuadiam países do “Sul Global” a apoiarem a proposta da China para a guerra na Ucrânia, que na prática equivale à rendição de Kiev aos agressores russos.
No discurso que a comitiva brasileira não ouviu, Netanyahu pode ser criticado por mais uma vez se esquivar de uma estratégia política para o futuro das relações entre Israel e Palestina. Dito isso, Israel vem sendo reprovado por “escalar” os conflitos no Oriente Médio, mas a escalada começou há um ano, com o ataque do Hamas a Israel. Ato contínuo, outros grupos patrocinados pelo Irã iniciaram agressões, listadas por Netanyahu: mais de 8 mil foguetes lançados pelo Hezbollah, centenas de ataques com drones dos houthis do Iêmen, dezenas de ataques das milícias xiitas da Síria e Iraque, além das centenas de drones e mísseis lançados pelo próprio Irã. Ainda há mais de 100 reféns israelenses cativos do Hamas e mais de 60 mil israelenses evacuados em razão das agressões do Hezbollah.
Israel pode ter cometido excessos e crimes, mas sua guerra é de defesa. Teerã e seus associados terroristas são uma ameaça não só para Israel, mas para as nações sunitas e as democracias do mundo. Ao retaliar suas agressões, Israel pode ter empregado meios eventualmente injustos, mas sua guerra, no geral, é justa. A guerra de agressão da Rússia, por outro lado, é injusta.
Mas o Brasil não protestou contra o discurso do presidente iraniano. Pelo contrário, na posse daquele presidente, o vice brasileiro, Geraldo Alckmin, foi brindado com um posto de “honra” ao lado de líderes terroristas do Hamas, do Hezbollah, da Jihad Islâmica e dos houthis. Tampouco o chanceler russo foi alvo de qualquer protesto na ONU, mesmo quando voltou a ameaçar o mundo com um conflito nuclear.
No afã de se justificar, o próprio presidente Lula da Silva lançou mão de falsidades factuais, afirmando que Netanyahu e Vladimir Putin foram condenados pelo Tribunal Penal Internacional (TPI). Mentira: a Corte emitiu ordem de prisão contra Putin pelo sequestro de crianças ucranianas, entre outros crimes; Netanyahu foi indiciado por acusações ainda não julgadas.
A falsa equivalência salta aos olhos ante o tratamento seletivo de Lula. Desde que Lula foi reprovado pelo governo israelense por comparar as operações em Gaza ao Holocausto, o Brasil deslocou seu embaixador em Israel e adia sine die a indicação de outro, o que equivale a um rompimento diplomático de facto. Já com Moscou mantém intensas conversações e trabalha para ampliar a importação de insumos russos. Lula chegou a dizer que ignoraria o TPI e que Putin poderia visitar o Brasil impunemente. Advertido de que isso violaria a Constituição, recuou, mas encaminhou uma carta à ONU buscando imunidade para Putin.
Os mesmos pesos e medidas valem na América do Sul. Pretextando ofensas pessoais, Lula se recusa a conversar com o presidente da Argentina – principal parceira comercial e geopolítica do Brasil na região. Mas quando se trata do peão sino-russo, a Venezuela, mesmo com os calotes, descumprimentos de pactos patrocinados pelo Brasil, ameaças de invasão a um vizinho, o roubo das eleições, a criminalização da oposição e até as chacotas de Nicolás Maduro com o próprio Lula, o presidente continua a sustentar a perspectiva farsesca de mediar negociações entre governo e oposição. A Venezuela não foi citada uma só vez por Lula na ONU.
O Brasil não precisaria se alinhar aos objetivos geoestratégicos de Pequim para continuar exportando commodities para a China. Mas o rancor antiocidental de Lula não só solapa valores comuns e desmoraliza a diplomacia brasileira, como põe em risco a importação de tecnologias críticas, a começar pelas que sustentam o arsenal militar nacional. Não há pragmatismo que justifique esse alinhamento. É pura ideologia, e da pior qualidade.
Um estranho conceito de civilização
Editorial, O Estado de S. Paulo (01/10/2024)
Barroso nos informa que a missão do Supremo é ‘recivilizar’ o País. De que ‘civilização’ se trata quando ministros favorecem corruptos confessos e emasculam lei que moraliza estatais?
A defesa da supremacia da Constituição parece ser incumbência menor para o egrégio Supremo Tribunal Federal (STF). O destino da Corte seria “recivilizar” o Brasil – nada menos. Assim entende o seu ministro presidente, Luís Roberto Barroso, que em entrevista ao jornal Valor afirmou que a “total recivilização do País” é o “legado institucional” que ele pretende deixar ao transmitir o cargo a seu provável sucessor, o ministro Edson Fachin.
Em primeiro lugar, é incontornável observar que só precisa ser “recivilizada”, por óbvio, uma horda de bárbaros, o que nem de longe retrata a Nação brasileira. Só esse pequeno lapso, digamos assim, basta para expor o grau de alheamento da realidade e de afetação intelectual, quando não autoritária, que tem comprometido a legitimidade de não poucas decisões dos ministros do STF nos últimos anos.
Dito isso, não é de hoje que Barroso tem essa compreensão grandiloquente do que seria a missão precípua da Corte. Em 2017, o ministro afirmou durante uma aula magna que, “a serviço da causa da humanidade”, seria papel do STF “empurrar a história”, que, em sua visão, ora “anda rápido”, ora “anda devagar”. Um ano depois, com o mesmo espírito messiânico, o sr. Barroso ainda escreveria o célebre artigo no qual defendeu o “papel iluminista” do Supremo.
Vistas em retrospecto, ambas as manifestações do hoje presidente do STF soam como premonições da miríade de abusos e extrapolações de prerrogativas que seriam cometidos por ministros da Corte nos últimos anos a pretexto da tal “recivilização” do País. É o caso de perguntar: se é missão do STF civilizar a sociedade, qual será, afinal, o padrão civilizatório que vai iluminar o caminho da Nação desde Brasília até o seu inexorável encontro com a bem-aventurança?
É de civilização que estamos tratando quando o ministro Dias Toffoli faz pouco-caso do bom Direito e da inteligência alheia ao apagar os fatos, sozinho, em sua autoatribuída missão de reescrever a história da Lava Jato? E pior, usando como base desse misto de revisionismo e penitência perante Lula um conjunto de provas absolutamente ilegais, obtidas por meio da ação insidiosa de um hacker. Será esse o diapasão iluminista do STF, sinalizar à sociedade que corromper e ser corrompido, ao preço de poucos anos de dissabores e ostracismo, compensa neste País?
Foi isso o que Toffoli indicou, mais uma vez, quando exonerou o notório empreiteiro Léo Pinheiro de todas as condenações por crimes que ele confessou em acordo de colaboração firmado com o grupo de trabalho da Lava Jato no âmbito da Procuradoria-Geral da República (PGR). No afã de se apaziguar com Lula, Toffoli não teve o cuidado de observar que Léo Pinheiro jamais poderia ser “vítima” de “conluio” entre o então juiz Sergio Moro e a força-tarefa de Curitiba porque seu acordo de colaboração foi firmado, em 2019, sob os auspícios de Raquel Dodge, então à frente da PGR, sendo homologado meses depois pelo ministro Edson Fachin.
Mas sigamos. É de civilização que estávamos tratando quando Ricardo Lewandowski, então ministro do STF, obliterou o trabalho do Congresso que resultou na Lei das Estatais, e isso para atender aos interesses de um governo do qual ele logo faria parte? Civilizar o País, por acaso, é fazer letra morta da lei que moralizou a gestão de empresas como a Petrobras após a razia promovida pelos governos lulopetistas, seja por má gestão, seja pelo enriquecimento ilícito dos criminosos apanhados pela Lava Jato?
É de civilização que estamos tratando quando ministros do STF viajam mundo afora às expensas de indivíduos e empresas que têm seus interesses diretos em jogo na Corte? Com notável arrogância, Barroso desdenhou da necessidade de um código de conduta para ele e seus pares, pois já há a Lei Orgânica da Magistratura – uma lei que muitas vezes os próprios ministros não cumprem – e o controle da TV Justiça, como se os casos de conflito de interesses se estabelecessem diante das câmeras.
Diz-se com razão que o STF carece de autocontenção. Antes a Corte carecesse só disso.
Brasil perde influência ao se alinhar ao autoritarismo
Editorial, Valor Econômico (30/09/2024)
O presidente deixa Nova York mostrando-se parcial demais para quem pretende ser mediador de conflitos globais, fraco demais até entre seus vizinhos na América do Sul para defender a democracia que prega e muito vulnerável para responder às ameaças climáticas
Em seus mandatos anteriores, o presidente Lula costumava encantar plateias internacionais, e foi assim até logo depois de suceder a Jair Bolsonaro. Não mais, como ficou claro após discurso e ações posteriores à abertura da 79ª Assembleia Geral da Organização das Nações Unidas (ONU). Sua fala reafirmou pontos importantes da diplomacia brasileira, como a necessidade de erradicar a fome e a pobreza mundiais e de garantir para os países emergentes uma representação alinhada a seu novo peso econômico e político nos organismos internacionais, como no Conselho de Segurança da instituição. Ao substituir Bolsonaro, Lula ganhou prestígio por comparação ao passado, especialmente na questão do combate às mudanças climáticas. Mas está dilapidando o patrimônio conquistado no passado. Prestes a completar uma década em passagens pelo poder, a atuação de Lula passou a ser vista por boa parte da comunidade internacional como divisiva, anacrônica e parcial, alinhada a um bloco de nações que não segue regras democráticas.
A principal credencial do país no exterior é a ambiental, mas Lula chegou a Nova York ainda com o país em chamas, 60% do território nacional coberto por fumaça e um mea culpa de que o governo não estava preparado para enfrentar emergências climáticas como as que ocorreram, mesmo decorrido um ano e meio do mandato.
O presidente não só teve seu prestígio chamuscado pelo fogo em questão central na agenda internacional, como também foi questionado por sua ambiguidade ao apresentar-se como vanguarda do combate ao aquecimento global e ambicionar ser um dos maiores produtores de petróleo do mundo. Emirados Árabes, Azerbaijão e Brasil, países- sede de COPs – passada, presente e futura -, foram criticados pela Oil Change International, organização não lucrativa, porque os três anfitriões das conferências do clima vão aumentar sua produção de petróleo até 2035 em 37%, 4% e 38%, respectivamente (FT, sexta).
Mesmo abordando questões vitais da política externa, Lula escamoteou pontos em que o Brasil não está à altura do que exige de outros países ou em que simplesmente não pratica o que defende. A ditadura venezuelana foi exemplo do ensurdecedor silêncio de Lula sobre as últimas eleições. Ele defendeu a democracia doméstica contra “investidas extremistas, messiânicas e totalitárias, que espalham o ódio, a intolerância e o ressentimento”, mas nada disse sobre seu vizinho, que costumava prestigiar e sobre o qual rejeita até hoje classificar de ditadura, mesmo depois de fraude eleitoral óbvia – o Brasil cobra a divulgação das atas eleitorais até hoje. Procurou, sem sucesso, desviar-se da incômoda situação de um pretensioso mediador de grandes conflitos internacionais que sequer consegue exercer influência sobre seu vizinho.
Nas reuniões posteriores, o presidente brasileiro respondeu a ataques a suas posições em conflitos nos quais se intromete sem ter poder para influenciar. No caso do Oriente Médio, condenou o terrorismo do Hamas, mas preferiu acusar Israel de ter desejo de vingança em Gaza, numa reação que já deixou 40 mil palestinos mortos, criticando também os ataques israelenses que acertaram território libanês, destinados a enfraquecer o poder bélico do Hezbollah, outro grupo terrorista patrocinado pelo Irã, agora companheiro do Brasil no Brics ampliado, por exigência da China.
Lula chocou-se com Volodymyr Zelensky, presidente da Ucrânia, a quem atribui falta de esperteza por não realizar manobras diplomáticas em relação à Rússia. Zelensky, corretamente, apontou que Lula favorecia Vladimir Putin com sua proposta de entendimento de seis pontos alinhavado por Brasil e China. O documento foi feito após amplas consultas com a China, com participação do assessor especial Celso Amorim, e ampla troca de ideias com Putin – e nenhum intercâmbio com o governo da Ucrânia, vítima da segunda invasão russa em uma década.
Após Lula deixar Nova York, coube a Amorim colocar a cereja em bolo embatumado, a reunião com países para apresentar o embrulho de paz para a Ucrânia. O documento, em resumo, estabelece as condições para um amplo cessar-fogo, mas em nenhum momento menciona que houve um país que foi invadido e outro que é invasor, a Rússia. A rejeição de Zelensky à proposta, segundo Amorim, “não a afeta em nada”, uma declaração espantosa, que apenas repete a genuflexão que Brasil faz ao autoritarismo de China e Rússia, seus parceiros no Brics, e o desrespeito à vontade da principal vítima, que já teve a Crimeia incorporada por decreto de Putin à Rússia.
O presidente Lula sai da Assembleia da ONU mostrando-se parcial demais para quem pretende ser mediador de conflitos globais, fraco demais até entre seus vizinhos na América do Sul para defender a democracia que prega e muito vulnerável para responder às ameaças climáticas. Não se alinhar aos EUA não implica aliar-se a ditaduras que atendem a devaneios ideológicos da diplomacia lulista. Essa parceria ainda trará muitos problemas, e o Brasil só tem a ganhar retornando à independência que já teve no passado.
Ataque a Hezbollah era necessário para conter ameaça
Editorial, O Globo (30/09/2024)
Horas depois do monstruoso ataque terrorista do grupo palestino Hamas em 7 de outubro do ano passado, quando nem se sabia ao certo quantas centenas de pessoas haviam sido massacradas, sequestradas ou abusadas sexualmente, o grupo xiita libanês Hezbollah — responsável por dezenas de atentados terroristas em vários continentes, inclusive na América Latina – começou a bombardear o norte de Israel de suas bases no sul do Líbano. Foram lançados desde então mais de 10 mil foguetes, forçando o êxodo de 67.500 habitantes da região. Foi esse o motivo para Israel atacar o Líbano nas últimas semanas, começando com a explosão sincronizada de perto de 3 milhares de pagers usados para comunicação entre integrantes do Hezbollah e culminando com a morte de seu líder, Hassan Nasrallah, atingido por um ataque em Beirute enquanto participava de uma reunião no subsolo de um prédio residencial na sexta-feira.
A ofensiva israelense deixou milhares de feridos e centenas de mortos, entre eles as principais lideranças do Hezbollah, representantes do governo iraniano e, lamentavelmente, civis inocentes, inclusive dois brasileiros. Ao contrário de Israel, que dispõe de um sofisticado sistema de defesa antiaéreo capaz de interceptar mísseis e foguetes ainda no ar — testado em seu limite por um ataque iraniano meses atrás —, o Hezbollah opera, a exemplo de seu congênere Hamas, infiltrado na população civil libanesa, usada como escudo humano para dissuadir ataques. Só que o Hezbollah é mais sofisticado e poderoso que o Hamas. Seu arsenal, estimado entre 150 mil e 200 mil foguetes, lhe confere dez vezes o poder de fogo do grupo palestino. O Hezbollah também é dependente militar e financeiramente de Teerã, mas os vínculos são mais fortes. Como o Irã, professa a vertente mais extremista do fundamentalismo xiita, almeja a destruição de Israel e está em conflito aberto com os valores (e países) ocidentais há décadas. O Hezbollah usufrui um status especial no Líbano, que lhe permite, ao mesmo tempo, manter representação política e uma milícia própria, além de comandar bancos, fornecimento de energia e um sistema econômico paralelo.
Atacar alvos do Hezbollah em solo libanês foi uma medida necessária diante dos riscos que corria, mas Israel sabe que a ação pode aprofundar uma guerra de custo elevadíssimo para sua própria população. A reação do Irã até o momento é incerta. Perto de completar um ano dos ataques do Hamas, a vitória israelense completa, com aniquilação total de Hamas e Hezbollah, continua uma promessa distante — realisticamente já seria uma grande vitória deixar em ruínas o poder de fogo de seus adversários. Um ataque iraniano a Israel poderia transformar o conflito localizado numa guerra de alcance global — e isso não interessa a ninguém.
Em sua manifestação de apoio a Israel depois da morte de Nasrallah, o presidente americano, Joe Biden, conclamou as partes envolvidas a investir nos esforços diplomáticos para chegar a acordos de cessar-fogo, tanto em Gaza quanto no Líbano. É difícil alcançar uma solução que satisfaça a todos os requisitos para a segurança das populações civis. Mas Biden tem razão em dizer que, uma vez contida a ameaça iminente dos grupos extremistas, é preferível o cessar-fogo à guerra que perdure. Nas suas próprias palavras: “É hora de esses acordos serem fechados, de as ameaças a Israel serem removidas e de a região do Oriente Médio como um todo alcançar maior estabilidade”.
O umbigo de Lula
Editorial, O Estado de S. Paulo (27/09/2024)
O Brasil poderia erguer pontes entre o Ocidente e o Oriente, entre ricos e pobres. Mas essas possibilidades foram pulverizadas pelo narcisismo, o cinismo e o sectarismo de Lula
Quando olha para seu umbigo, o presidente Lula da Silva imagina ver o mundo. A passagem do demiurgo pela Assembleia Geral da ONU foi um retrato penoso de sua decadência e da desmoralização para a qual ela está arrastando a política externa brasileira. No plano ideológico, tudo é reduzido a uma grande conspiração dos “ricos” contra os “pobres”. No plano pragmático, tudo se passa como se os conflitos globais pudessem ser solucionados em conversas de botequim.
É preciso dizer que, naquilo que tem de genuíno, o sonho de Lula, ainda que limitado por seu enquadramento progressista, seria pertinente e até, em certa medida, factível. Basicamente, é a ideia do Brasil protagonizando alguma liderança numa coalizão do chamado “Sul Global” para obter concessões dos países desenvolvidos.
Do ponto de vista estrutural, o Brasil é uma potência pacífica na região latino-americana, um grande exportador de alimentos, guardião de minerais e biomas críticos, e ainda conta com um quadro diplomático competente. Do ponto de vista conjuntural, Lula tem (ou ao menos teve) carisma, e sua vitória sobre Jair Bolsonaro foi vista com bons olhos pelas lideranças democráticas, a começar pelo americano Joe Biden. A conjunção do G-20, em 2024, e da COP-30, em 2025, ofereceria condições para o Brasil se projetar, erguer pontes e promover negociações.
Mas para que isso funcionasse o presidente precisaria combinar de maneira crível credenciais democráticas, capacidade de articulação e humildade. Movida, porém, pela megalomania de Lula, inspirada pela ideologia perniciosa de Celso Amorim, a diplomacia presidencial se choca com a realidade da maneira mais grotesca, e dos destroços de um sonho resta apenas uma massa incôngrua de delírios.
Em questões em que o Brasil tem escassa capacidade de influência, como a governança global ou a geopolítica na Europa ou no Oriente Médio, Lula foi grandiloquente, mas oscilou entre quimeras irrealistas e o mais bruto cinismo. Onde o Brasil poderia dar exemplos de responsabilidade e liderança, como no meio ambiente ou na geopolítica latino-americana, foi omisso – e também cínico.
Que espetáculo deprimente foi ver jovens lideranças como os presidentes da Ucrânia ou do Chile passando descomposturas em Lula. Ao sugerir que, se Volodmir Zelenski fosse “esperto”, aceitaria a proposta de paz de Brasil e China, Lula se prestou a garoto de recados de um “chefe mafioso” (como disse na ONU o chanceler britânico, David Lammy, sobre Vladimir Putin). Zelenski eviscerou o plano sino-brasileiro como aquilo que é – uma proposta de capitulação da Ucrânia –, questionou o “verdadeiro interesse” do Brasil e insinuou que o de Lula é uma ambição narcisista de ser premiado com um Nobel da Paz. Bingo.
Em uma cúpula “pela democracia” e “contra o extremismo” promovida pelo Brasil, esvaziada e só com lideranças de esquerda, o chileno Gabriel Boric desmoralizou sem meias palavras a pusilanimidade de Lula em relação à Venezuela e outras ditaduras.
As lideranças democráticas talvez até tenham visto com condescendência as platitudes de Lula sobre a “reforma da ONU” e suas promessas de liderá-la, mas se frustraram com sua evasão sobre a questão mais premente na América Latina, o recrudescimento da ditadura de Maduro, e com o vácuo de ofertas do Brasil em relação ao meio ambiente que não literalmente “apagar incêndios”. E certamente estão desconfiadas de seu alinhamento com China e Rússia.
Eis a dura verdade: para China, Rússia, Irã e outras autocracias, Lula não passa de um “idiota útil”; para o Ocidente, ele é, na melhor das hipóteses, um fanfarrão inútil, e, na pior, um ressentido cínico. Não há pontes firmes a construir nem negociações sérias a encampar com tão leviana e irrelevante figura. Talvez a mais eloquente imagem do tour de Lula por Nova York tenha sido o momento em que a organização de uma cúpula ironicamente chamada “do Futuro” se viu obrigada a cortar o seu microfone por estouro de tempo, e o envelhecido líder progressista foi deixado gesticulando aos quatro ventos, falando sozinho, aos ouvidos de ninguém.
Um santo do pau oco na ONU
Editorial, O Estado de S. Paulo (25/09/2024)
Brasil poderia ter legitimidade para influenciar rumos da ordem internacional. Mas sem coerência não há credibilidade. Lula passa lição de moral na ONU sem fazer a lição de casa no Brasil
Pela nona vez, o presidente Lula da Silva subiu à tribuna da Assembleia Geral da ONU para recitar seu papel de cobrador. A lista de queixas tem de tudo: um tratado contra pandemias; menos gastos militares; paz no Oriente Médio, Europa e África; aceleração da descarbonização; menos fome, desigualdade, desemprego e violência; juros amistosos para países pobres; equidade de gênero; e reformas na ONU que garantam mais representatividade às nações em desenvolvimento. Tudo muito razoável e condizente com uma cúpula que se presta mais a ser uma vitrine de aspirações que um fórum de resoluções. Mas, como insistia Henry Kissinger, a capacidade de influência geopolítica de um país depende de uma combinação equilibrada de dois ingredientes: poder e legitimidade. O problema é que Lula não tem nem uma coisa nem outra.
Poder, o Brasil nunca teve. Mas construiu uma reputação diplomática, com princípios constitucionais sólidos materializados pelos quadros técnicos e pragmáticos do Itamaraty. Foi essa credibilidade, por sinal, que conferiu ao País a prerrogativa de inaugurar todos os anos a Assembleia Geral. Munido dela, o Brasil poderia exercer ao menos o poder de persuadir outras nações e mediar seus conflitos. Mas não há credibilidade sem coerência.
Lula se queixou de que “o uso da força, sem amparo no Direito Internacional, está se tornando regra”. Ao mesmo tempo, contudo, engendra com a China um “plano de paz” que premia a Rússia, que violou o direito internacional ao invadir a Ucrânia, um país soberano, e ali comete atrocidades sistemáticas contra civis, como denunciado em corajosa carta aberta subscrita por dezenas de diplomatas latino-americanos, entre os quais os brasileiros Rubens Ricupero e Celso Lafer.
A Rússia, aliás, nem sequer foi nomeada no discurso de Lula, como em geral não são nomeados, nas notas do Itamaraty sob o comando espúrio de Celso Amorim, o Hamas ou o Hezbollah. Quando o Hezbollah, por exemplo, bombardeou um campo de futebol matando várias crianças, o governo lamentou simplesmente “um ataque”, sem autoria. Quando Israel revida, multiplicam-se as recriminações e adjetivos.
Em um discurso anterior, Lula se queixou de que a ONU perdeu “vitalidade”, que seus órgãos carecem de “autoridade” e “meios de implementação”, que sua legitimidade “encolhe a cada vez que aplica duplos padrões ou se omite diante de atrocidades”. Poderia estar falando de si mesmo.
O que a sua diplomacia “ativa e altiva” diz sobre as atrocidades na Venezuela? Lula denuncia a omissão internacional no Haiti, mas recusou diversos pedidos de apoio a uma força de paz. Queixou-se das sanções que penalizam os cidadãos de Cuba, mas não disse meia palavra sobre a ditadura que os penaliza muito mais, há décadas. Queixou-se da negligência com o clima, enquanto subsidia combustíveis fósseis e as florestas brasileiras queimam. Propagandeou o Brasil como “celeiro de oportunidades” e exigiu recursos, mas não cria condições para recebê-los, como o mercado de carbono ou agências regulatórias independentes. Queixou-se da falta de oportunidades às mulheres, mas não foi capaz de indicar nenhuma para a Suprema Corte. Queixou-se da “década perdida” dos países latino-americanos, como se os governos do PT não tivessem nada a ver com isso. De passagem por Nova York, por sinal, Lula aproveitou para pedir às agências de risco que restaurem a nota de crédito do Brasil – enquanto maquina subterfúgios para driblar seu próprio arcabouço fiscal.
Eis a diplomacia “ativa e altiva” de Lula, uma diplomacia ativista, calcada em ressentimentos, incoerências, indignações seletivas e aspirações vazias, e subalterna a potentados autocráticos. Se ao menos fizesse sua lição de casa – nas questões fiscais e ambientais ou nos conflitos latino-americanos –, Lula poderia dar lição de moral. Mas, como disse o jornal esquerdista francês Libération, frustrado com suas ambivalências em relação à agressão à Ucrânia, Lula é um “falso amigo”. Os brasileiros mais solertes já sabem há tempos que ele é um falso estadista.
Um partido ‘popular’ sem os votos do povo
Editorial, O Estado de S. Paulo (24/09/2024)
Tudo indica que PT amargará seu pior desempenho nas eleições municipais desde a redemocratização. O partido não mudou, mas o Brasil sim, e quem experimenta sua gestão a rejeita
Há 20 anos, o Partido dos Trabalhadores (PT) vivia o seu zênite eleitoral. No segundo ano do primeiro mandato de Lula da Silva, o PT levou nada menos que nove capitais. No total, foram 411 prefeituras. Já em 2020, o partido amargou o seu nadir. Foram zero capitais e 183 prefeituras, 71 a menos do que em 2016. Foi o pior desempenho desde a redemocratização. Mas tudo indica que o pior está por vir.
Hoje o partido só tem chances de eleger candidatos em quatro capitais, mas a tendência é de derrota em todas. O cenário em São Paulo, berço do PT, é sintomático. Em 2012, o PT elegeu prefeitos em quase um terço dos 39 municípios da Grande São Paulo. Hoje não lidera em nenhum. Mesmo em seu tradicional bastião eleitoral, os sete municípios do Grande ABC, o PT é competitivo só em dois, e mesmo aí seus candidatos estão tecnicamente empatados com os adversários e lideram os índices de rejeição.
O que mudou? Certamente não o PT. É a mesma ideologia estatizante, a mesma hostilidade à iniciativa privada, o mesmo corporativismo com setores do funcionalismo público, o mesmo discurso da “luta de classes”, a mesma retórica maniqueísta do “nós contra eles”, a mesma geopolítica terceiro-mundista.
O que mudou foi o Brasil, esse é o problema – do PT, claro, não do Brasil. E mudou, em grande parte, pelos desmandos do PT. Nos últimos 20 anos, o partido governou o País por 14. Apesar de Lula propagandear a ilusão de que sabe como fazer a economia crescer, nesse período – mesmo durante o superciclo das commodities – o País cresceu abaixo da média dos países emergentes. Quando os dogmas desenvolvimentistas petistas foram aplicados em toda a sua pureza pela criatura de Lula, Dilma Rousseff, o resultado foi uma recessão que devorou cerca de 10% do PIB em dois anos, dizimando os supostos avanços da “classe trabalhadora”.
Foi o PT que protagonizou os grandes escândalos de corrupção da Nova República, o mensalão e o petrolão, que tanto fizeram para desmoralizar a política e alavancar candidatos ditos “antissistema” como Jair Bolsonaro. Lula só venceu em 2022 com uma margem apertada pela aversão dos moderados a mais quatro anos de razia bolsonarista. Ainda assim, perdeu entre as classes médias e nas Regiões Sudeste, Sul e Centro-Oeste.
Mas Lula é, há tempos, muito maior que o PT. O verdadeiro tamanho do petismo se mede muito mais pelos minguados 130 deputados eleitos pela sua coalizão. Mais eloquente é a imagem das ruas vazias nas manifestações lideradas pelo PT em março, e ainda mais nos tradicionais festejos do Dia do Trabalho, quando o demiurgo em pessoa discursou para meia dúzia de gatos-pingados (os sindicalistas de sempre) no estacionamento do estádio do Corinthians.
As eleições municipais são particularmente reveladoras, porque nelas o que está em jogo não é tanto a ideologia, mas a gestão pura e simples. Quem experimenta o modo petista de governar quer ver o partido pelas costas. Fernando Haddad, o último prefeito petista da capital paulista e cotado a sucessor de Lula, por exemplo, perdeu a disputa à reeleição em 2016 no primeiro turno. Em 2020, Jilmar Tatto terminou a corrida em sexto lugar. Tamanho é o vácuo de lideranças novas e críveis que, contrariando seus instintos mais viscerais, o PT renunciou a ter um candidato em São Paulo e apoia o psolista Guilherme Boulos. Mas nem Lula nem a dinheirama do fundo eleitoral estão conseguindo alavancar Boulos, que mal consegue chegar a 30% de intenção de voto e periga nem ir para o segundo turno.
Não é só o PT. Entre as legendas de esquerda que conquistaram sete capitais há quatro anos, só um candidato, João Campos (PSB), no Recife, tem chances reais de vitória. A esquerda, é verdade, experimenta em todo o mundo uma crise de identidade. Mas, no Brasil, paga mais caro pelas décadas de subserviência ao projeto hegemônico do PT.
“O PT é um partido de trabalhador que não trabalha, estudantes que não estudam e intelectuais que não pensam”, disse certa vez Roberto Campos. Seria o caso de acrescentar uma quarta contradição: é um partido que se diz “popular” sem os votos do povo.
A implicância de Lula contra a iniciativa privada
Editorial, O Estado de S. Paulo (22/09/2024)
Petista chama de ‘imbecis’ os que defendem a privatização da Petrobras e demonstra inconformismo com a venda de estatais. Para presidente, falta ‘bondade’ às empresas privadas
O presidente Lula da Silva recentemente “inaugurou” o Comperj – o complexo petroquímico no Rio de Janeiro que teve sua pedra fundamental lançada pelo próprio Lula em outra encarnação, no seu segundo mandato, e que levará no total 21 anos para finalmente entrar em operação plena, em 2029, tudo o mais constante. Como é do seu feitio, o demiurgo transformou o que deveria ser uma vergonha em um “ato de reparação”, segundo suas palavras.
O Comperj é um dos símbolos mais vistosos da trevosa era lulopetista que arruinou o País com sua gastança e sua corrupção. O complexo, que deveria custar US$ 6,2 bilhões, consumiu quase 5 vezes mais e ainda não funciona como planejado. Por outro lado, a obra foi uma das protagonistas do petrolão, o esquema de corrupção na Petrobras que abasteceu os cofres petistas e dos partidos comparsas.
Pois é dessa “reparação” que Lula fala: para o chefão petista, a Lava Jato, que flagrou o petrolão, foi uma operação destinada a “desmoralizar a Petrobras” para forçar sua venda. Atribuindo essa conspiração a “eles”, pronome que Lula usa para designar genericamente aqueles que, em sua definição, seriam os inimigos do Brasil e dos brasileiros pobres, o presidente chamou de “bando de imbecil” (sic) os que defendem a privatização da Petrobras.
E assim chegamos ao cerne do discurso de Lula, que deveria ser tomado como exemplar do que o petista deseja para seu terceiro e talvez último mandato: mais do que em qualquer outro momento desde que começou a exercer o poder, Lula parece determinado a ressuscitar o raivoso líder sindical dos anos 80, que ele nunca deixou de ser, mas que as necessidades políticas o haviam obrigado a domesticar.
Aquele personagem investia toda a sua energia na ideia de que os empresários são inimigos da “classe trabalhadora”. Aquele Lula não escondia sua repulsa à iniciativa privada, em qualquer de suas expressões. Aquele Lula mandou o PT votar contra a Constituição de 1988 porque, segundo o partido, o texto “eleva a propriedade privada a direito fundamental da pessoa humana”.
Desde o nascimento do personagem “Lulinha Paz & Amor”, que os marqueteiros petistas inventaram em 2002 para finalmente ganhar uma eleição presidencial, Lula vem tentando se passar por moderado e pragmático. Na mais recente disputa, em 2022, conseguiu os votos de eleitores de centro ao se identificar como o líder da “luta pela democracia”, malgrado seja incapaz de condenar as ditaduras de companheiros como Maduro e Ortega.
Agora, talvez por ter se dado conta de sua finitude, Lula parece ter se cansado de fingir ser o que nunca foi. Seu discurso no Comperj poderia ter sido feito em Vila Euclides. Numa saraivada de ataques, desqualificou os empresários do País, que em sua definição seriam simplesmente incapazes de melhorar a vida dos brasileiros. A julgar por suas palavras, todo o setor produtivo deveria ser do Estado, que seria um administrador mais sensível às reais necessidades do povo.
A horas tantas, perguntou: “A Vale está melhor agora que foi privatizada ou ela era melhor quando ela era uma empresa do Estado brasileiro?”. Se o critério fosse o valor de mercado, a Vale passou de R$ 39,5 bilhões em 1997, ano da privatização, para R$ 250 bilhões hoje. Mas o critério de Lula não é esse: para o petista, falta “bondade” à Vale privatizada.
Ele acha um horror que o CEO da Vale ganhe R$ 55 milhões por ano, e não R$ 55 mil, como se isso fosse uma ofensa aos pobres, e não a remuneração arbitrada pelo mercado para recompensar a expertise necessária para administrar uma empresa do porte da Vale. Pouco importa que a empresa recolha milhões em impostos e gere milhares de empregos. Para Lula, empresa privada boa é aquela que abre mão do lucro em favor de projetos do Estado e cujos executivos sejam abnegados trabalhadores que renunciam a altos salários em troca do orgulho de fazer parte desses projetos.
Há muito mais no tal discurso, mas só essa seleta basta para constatar que Lula decidiu fazer campanha aberta contra a iniciativa privada que não se dobra a seus delírios.
Uma Suprema Corte kafkiana
Editorial, O Estado de S. Paulo (21/09/2024)
Brasileiros tornaram-se parte nos inquéritos secretos de Moraes e podem ser punidos por ‘leis’ tiradas de sua cabeça. Ainda há Constituição no Brasil. Haverá um tribunal constitucional?
A pedido da Procuradoria-Geral da República, o ministro do Supremo Tribunal Federal (STF) Alexandre de Moraes determinou à Polícia Federal que investigue perfis que utilizaram a plataforma X após a sua suspensão no Brasil, através de VPN – um dispositivo que oculta a origem do usuário –, a fim de penalizar os que fizeram “uso extremado”.
Ainda que, tomada isoladamente, a decisão de bloquear o X após reiterados descumprimentos de ordens judiciais possa ser justificada, ela é um dos frutos das árvores envenenadas que são os inquéritos intermináveis, inacessíveis e indefiníveis conduzidos por Moraes. Movido pela tara punitivista e revanchista do ministro, o bloqueio foi acompanhado de diversas providências eivadas de irregularidades, incoerências e amadorismo, a começar pela citação feita pelo perfil do STF no próprio X. Bloqueios de bens e multas vêm sendo aplicados à Starlink, uma empresa distinta, com acionistas distintos. Na petição que determinou o bloqueio, Moraes ainda ordenou a plataformas que inviabilizassem a disponibilidade de VPNs. No mesmo dia, numa confissão tácita de sua ignorância a respeito de um dispositivo perfeitamente legal usado no mundo inteiro para fins os mais diversos, Moraes revogou a própria decisão. Mas a mais teratológica e francamente sinistra das decisões foi a previsão de uma multa de R$ 50 mil a quem acessasse a rede. Todas essas medidas foram referendadas pela 1.ª Turma da Corte.
Mesmo a Ordem dos Advogados do Brasil, que no geral tem sido complacente com o festival de abusos perpetrados nos inquéritos do STF, se viu obrigada a sair de seu torpor e entrar com uma Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental contra as multas. A peça denuncia não uma, mas várias violações a preceitos fundamentais: princípio da legalidade, da reserva legal, da separação dos Poderes, do devido processo legal, do contraditório e da proporcionalidade das sanções.
Nulla poena sine lege é um princípio básico do direito consagrado pela Constituição: “Não há crime sem lei anterior que o defina, nem pena sem prévia cominação legal” (art. 5.º, XXXIX). Mas ao determinar, no âmbito de um inquérito (!), uma punição genérica e abstrata que pode alcançar todos os brasileiros, Moraes, não contente em concentrar as funções de investigador, acusador e juiz, usurpou o papel de legislador. Sanções processuais só podem ser aplicadas às partes diretamente envolvidas no processo. Mas, aberto o precedente, deve-se assumir que juízes podem exarar sanções genéricas em seus processos e aplicá-las a quaisquer terceiros não intimados a tomar parte neles.
Para piorar, o valor da multa é completamente desproporcional. Para piorar ainda mais, a conduta passível de punição é fluida: que diabos é um “uso extremado”? Trata-se de mais um tipo penal fabricado sob medida por Moraes (como “desinformação” ou “discursos de ódio”) para punir quem ele bem entender.
Em seu voluntarismo, o STF ensejou a surreal situação em que não só os 20 milhões de usuários do X, mas qualquer um dos mais de 210 milhões de brasileiros pode ser draconianamente punido no âmbito de inquéritos secretos do qual não fazem parte por condutas indetermináveis, e a constrangedora perspectiva de a Corte (através de seu colegiado) declarar inconstitucional uma decisão da própria Corte (através da 1.ª Turma), ou, o que é pior, não declarar, instaurando de vez um tribunal de exceção.
Seria tentador parafrasear, a propósito de todo cidadão brasileiro agora passível de ser alvejado pelos delírios persecutórios de Moraes, a célebre abertura de O Processo de Franz Kafka: “Alguém deve ter dito mentiras sobre Joseph K., pois sem ter feito nada errado recebeu uma multa de R$ 50 mil numa bela manhã”. Mas há outro trecho que, no caso, se aplica ipsis litteris a Moraes e outros colegas e autoridades – incluindo o procurador-geral da República – intoxicados pela fumaça do mau direito: “Eles estão falando de coisas sobre as quais não têm a menor noção. É só por causa da sua estupidez que podem ser tão seguros de si mesmos”.
A aposta de Lula na ‘doutrina Amorim’
Editorial, O Estado de S. Paulo (20/09/2024)
O Brasil não precisaria escolher nenhum lado nas disputas geopolíticas e econômicas da China e da Rússia com o Ocidente. Mas Lula escolheu, e o País só tem perdido com essa aposta
Na quarta-feira, o presidente Lula da Silva conversou por telefone com o presidente russo, Vladimir Putin. Na pauta, a guerra na Ucrânia e a cúpula do Brics, que acontecerá na Rússia em outubro. A atitude do brasileiro no bate-papo encapsulou a doutrina de Celso Amorim, o chanceler de facto que dita os rumos de sua política externa.
Lula discutiu a proposta do Brasil e da China para o fim da guerra. Trocando em miúdos, o Brasil propõe congelar as linhas territoriais atuais, entregando à Rússia 20% do território ucraniano sem nem sequer sugerir garantias concretas de segurança que não a boa-fé de Putin. Basicamente, o mesmo que se fez em 2014 com a Crimeia, à época com o endosso do Ocidente. Não há nenhum motivo para esperar que desta vez os desdobramentos seriam diferentes, e a proposta até soaria ingênua se Lula não soubesse disso.
Em tese, o Brasil reprova a agressão da Rússia. Na prática, é contrário aos meios que o agredido tem para se defender: as armas e as sanções de seus aliados ocidentais. Com mais de dois anos de conflito, longe de buscar alternativas às importações de fertilizantes e do diesel russos, Lula estimula sua expansão, ajudando a financiar o imperialismo de Putin. Sua proposta para o “fim” da guerra – a capitulação da Ucrânia – levaria em breve ao seu recomeço não só na Ucrânia, mas em outros países na mira do Kremlin, e afronta princípios da política externa nacional consagrados na Constituição: a autodeterminação dos povos e a prevalência dos direitos humanos e do direito internacional.
Não se tem detalhes das tratativas sobre a pauta dos Brics. Mas o governo tem sido conivente, para não dizer cúmplice, com a estratégia chinesa e russa de metamorfosear o que deveria ser um fórum econômico de grandes países emergentes em um clube autocrático antiocidental. Eis o núcleo duro da doutrina Amorim: um antiocidentalismo sob o qual não só a democracia, como já disse Lula, é “relativa”, mas relativos são até os ideais da esquerda. Os regimes de Putin e da teocracia do Irã – que o governo recebeu de braços abertos no Brics – são ultrarreacionários.
Se na era da globalização já era difícil para uma potência regional média, sem o poder das armas ou do dinheiro, como o Brasil, exercer seu soft power, tanto mais agora num momento de fragmentações e turbulências geopolíticas. Ainda assim, o País tem um aparato diplomático requintado, um histórico pacífico e recursos cruciais para que o mundo enfrente os grandes desafios globais da segurança alimentar, energética e ambiental. Esses ativos poderiam garantir ao País uma posição segura de equidistância e independência nos conflitos geopolíticos, e até de liderança em certos âmbitos, como na América Latina e na área ambiental.
É difícil para qualquer país se equilibrar no confronto entre EUA e China. O Brasil depende das exportações para a Ásia, mas também de insumos tecnológicos do Ocidente. Nem por isso o País precisaria renunciar aos valores comuns ao Ocidente, como a democracia liberal ou os direitos humanos, nem ser obrigado a escolher entre um lado e outro – vale lembrar que o maior parceiro comercial dos EUA é a China e vice-versa. A Índia tem logrado esse equilíbrio. Mas o Brasil de Lula escolhe um lado.
No início de seu mandato, a revista The Economist classificou sua política externa como oscilante e inconsistente: “Lula quer que o Brasil seja todas as coisas para todos: um amigo do Ocidente e um líder do Sul Global, um defensor do meio ambiente e uma potência petrolífera mundial, um promotor da paz e um amparo para os autocratas”. Quem dera. Se alguém tem dificuldade de enxergar as reais intenções de Lula por trás de suas conjurações ilusionistas, deveria conferir os posicionamentos oficiais do PT e de seu ideólogo Celso Amorim a propósito desses aparentes dilemas. Não há ambiguidade. Lula sabe o que quer e tem agido com coerência nesse sentido. Mas em troca da desconfiança dos parceiros ocidentais do Brasil, na melhor das hipóteses, e do seu escárnio, na pior, o País ainda não ganhou nada além do prato de lentilhas sino-russo.
Fogo não se apaga com saliva
Editorial, O Estado de S. Paulo (19/09/2024)
Preocupado apenas com sua imagem internacional, Lula propõe um ‘pacto nacional’ ante a crise ambiental. Ora, o Brasil não precisa de pacto. Precisa é de liderança e organização
A experiência mostra que, quando não fazem a menor ideia de como resolver um grave problema, as autoridades brasileiras em geral propõem a realização de um “pacto nacional”. Foi o que se viu na reunião convocada pelo presidente Lula da Silva para selar o tal “pacto” entre os Três Poderes em torno das ações de combate aos incêndios em diversos biomas País afora. Malgrado todo o poder de que estão investidos os presentes, desse encontro não se pôde extrair nada remotamente parecido com um plano de ação bem formulado e exequível. O que se ouviu foi uma coletânea de platitudes e ideias em profusão, algumas estapafúrdias, como se apenas saliva bastasse para apagar o fogo.
Diante dos presidentes da Câmara, do Senado e do Supremo Tribunal Federal (STF), entre outras autoridades, Lula disse que o País “não estava 100% preparado para enfrentar as queimadas”. E não estava mesmo, como a fumaça que cobre 60% do território nacional e o ar insalubre para a maioria dos brasileiros podem atestar. Porém, é o caso de perguntar por que o País não estava preparado e a quem cabia coordenar essa preparação.
Alertas de risco emitidos pela comunidade científica não faltaram. Este jornal revelou que desde fevereiro, pelo menos, o presidente já tinha sido informado de que ondas de calor somadas à estiagem no segundo semestre poderiam desencadear incêndios florestais Brasil afora – sem falar, claro, nos incêndios criminosos. Mas essas informações, ao que tudo indica, foram olimpicamente ignoradas.
Ficou evidente na reunião que Lula não tem a menor ideia de como resolver o problema e que seu objetivo ali era apenas se eximir de qualquer responsabilidade pelo descontrole do País que ele governa no combate às queimadas. O petista chegou até a insinuar, sem provas, que bolsonaristas estariam por trás de um complô para tocar fogo no País com o objetivo de enfraquecer politicamente seu governo antes da COP-30, a ser realizada em Belém (PA). É, pois, a vaidade de Lula que fala mais alto, porque não fica bem para quem vende ao mundo a ideia de que seria uma espécie de elfo guardião de nossas matas, mares e rios ser um absoluto incompetente para lidar com as queimadas – sobretudo às vésperas da Assembleia Geral da ONU e da cúpula do G-20, no Rio.
Nesse afã de disfarçar o descaso com a desordem climática, todos têm sua cota de participação. Os presidentes da Câmara, Arthur Lira, e do Senado, Rodrigo Pacheco, reforçaram a versão segundo a qual o Brasil teria sido tomado por uma horda de piromaníacos que resolveram atear fogo no País de forma coordenada. A ministra do Meio Ambiente e Mudança do Clima, Marina Silva, chegou a falar em “terrorismo climático”.
É inegável que os incêndios provocados por ação humana – criminosa ou não – compõem esse quadro de descontrole sobre as queimadas. Mas reforçar a influência dessas ações é conveniente para escamotear incompetências, além de desviar a atenção da política nacional que realmente importa: a adaptação do País às mudanças do clima.
O encontro promovido por Lula serviu, portanto, para evidenciar que, se faltam ações, sobra demagogia. Até o presidente do Supremo, ministro Luís Roberto Barroso, disse que instou os presidentes dos Tribunais de Justiça a priorizarem processos que tratam de matéria ambiental e a agirem “de forma rígida” no combate aos crimes ambientais – inventando uma escala de julgamento que, a rigor, não cabe a ele definir.
Não é preciso inventar coisa alguma. O Brasil já tem instrumentos suficientes para preservar seus biomas e avançar na adaptação às mudanças do clima. E dinheiro não falta: bastaria usar parte dos R$ 194 bilhões em emendas parlamentares ao Orçamento de 2019 até agora. Mas no Congresso ninguém parece genuinamente preocupado, pois os parlamentares deram ínfimos R$ 50 milhões em emendas para ações de combate a incêndios florestais – 0,02% do total desse período. Para essa turma, o governo que se vire com créditos extraordinários e depois lute para equilibrar as contas, porque a prioridade é comprar votos com emendas nos seus redutos eleitorais.
O País, ademais, já é dotado de uma legislação ambiental que é modelo para o mundo. Há conhecimento científico de excelência produzido aqui. Há jurisprudência em favor do combate aos crimes ambientais. O que falta são liderança e ações coordenadas.
O horror da Venezuela que Lula finge não ver
Editorial, O Estado de S. Paulo (19/09/2024)
Relatório devastador da ONU comprova que a ditadura no país protagoniza ‘uma das mais agudas crises humanitárias da história recente’, mas nem assim o petista se incomoda
“O governo da Venezuela intensificou dramaticamente os esforços para esmagar toda oposição pacífica ao seu domínio, mergulhando a nação numa das mais agudas crises humanitárias na história recente”, adverte uma Missão Independente da ONU que examinou a situação dos direitos humanos no país entre setembro de 2023 e agosto de 2024. Não são “atos isolados ou aleatórios”, mas parte de “um plano continuado e coordenado para silenciar, desencorajar e esmagar a oposição”.
No período que antecedeu à recente campanha eleitoral presidencial, entre dezembro e março, ao menos 48 pessoas foram detidas por “golpismo”, incluindo militares, ativistas de direitos humanos e jornalistas. Em julho, mês das eleições, foram 120. Na primeira semana após as eleições, foram 2.000, incluindo mais de 100 menores de idade, algumas com deficiências, acusadas de “terrorismo” e “incitação ao ódio”. Pelo menos 25 pessoas foram executadas, a maioria jovens pobres, incluindo duas crianças.
“Todas as detenções ocorrem sem mandato, não se identifica a força que detém as pessoas, não se diz aonde são levadas”, e elas “tampouco podem designar advogados”, diz o relatório. Muitas foram submetidas a estupro e torturas com choques elétricos, espancamentos ou sufocamento com sacos plásticos.
Os investigadores denunciam um “marco na deterioração do Estado de Direito”. As autoridades públicas “abandonaram toda a aparência de independência”. O Conselho Nacional Eleitoral violou a Constituição ao não publicar as atas das eleições, limitando-se a confirmar a “vitória” do ditador Nicolás Maduro. O Ministério Público expede ordens de prisão em massa com base tão somente em vídeos em redes sociais e acusações vagas de “terrorismo”. O Judiciário valida esses métodos e forja mecanismos de criminalização da oposição. O Legislativo está fabricando uma legislação “antifascista” que permitirá ao governo prender quem quiser.
Embora o rolo compressor sobre os direitos humanos dos venezuelanos “tenha atingido níveis sem precedentes”, o dossiê deixa claro que essa é apenas uma “continuação de padrões anteriores” exaustivamente documentados.
Nada disso, portanto, era novidade quando, em maio de 2023, o presidente Lula da Silva estendeu um tapete vermelho a Nicolás Maduro, denunciando que o regime chavista é “vítima de uma narrativa de antidemocracia e autoritarismo” e convidando seu companheiro a construir uma narrativa “infinitamente melhor”, que obrigaria “os nossos adversários” a “ter de pedir desculpas pelo estrago que fizeram”. A alusão era às sanções – aplicadas não só pelos EUA, mas por União Europeia, Canadá e até o México –, que, na lógica de Lula, são culpadas por todos os males da Venezuela. Mesmo quando Lula, em lapsos de improviso, confessa que o regime é “desagradável”, nunca se esquece de falar grosso contra “os nossos adversários”.
Deve ter sido um alívio para seu chanceler de facto, Celso Amorim, quando Edmundo González, que todas as evidências apontam ter sido eleito presidente da Venezuela com mais de dois terços dos votos, recebeu asilo da Espanha. À época em que foi expedida sua ordem de prisão por “crimes de guerra”, Amorim chegou a dizer que “não aceitamos presos políticos”. Agora ele pode voltar a encenar a farsa e ignorar os milhares de presos nos calabouços chavistas. Com esse cinismo repugnante, o Brasil se negou na semana passada, junto com China, Rússia e companhia bela, a assinar uma resolução da ONU pedindo a “restauração das normas democráticas na Venezuela”.
Lula usou e abusou da justa fama de Jair Bolsonaro de “pária” internacional, especialmente em relação ao meio ambiente. Mas nunca se viu nada parecido com sua complacência com as ditaduras esquerdistas. O próximo capítulo dessa espiral de degradação da diplomacia brasileira acontecerá logo mais em Nova York, às margens da Assembleia Geral da ONU, quando Lula pretende ser o mestre de cerimônias de uma cúpula intitulada Em defesa da democracia: lutando contra o extremismo. O mundo testemunhará o chefe de Estado brasileiro lutando contra as evidências produzidas pela própria ONU para fingir que “extremismo” só existe na direita, ao mesmo tempo que condescende com as tiranias mais sangrentas da América Latina.
Polarização nos tribunais
Editorial, O Estado de S. Paulo (15/09/2024)
Indicações de Lula a tribunais superiores e regionais priorizam interesses privados e grupos de amigos, que, leais ao lulopetismo, prometem intensificar batalhas ideológicas no Judiciário
As mais recentes indicações do presidente Lula da Silva a tribunais superiores e regionais, em vez de promover pacificação, apontam para a ampliação de disputas ideológicas na cúpula do Poder Judiciário brasileiro. A origem e o perfil desses nomes e a forma como são escolhidos pelo atual presidente sugerem o acirramento dos ânimos nas cortes, intensificando tensões e transpondo da política para a Justiça uma polarização que em nada colabora com o fortalecimento das instituições e o bom funcionamento dos tribunais.
Antes de Lula, Jair Bolsonaro já havia deixado claro o interesse de domesticar o Judiciário. É de sua lavra a observação segundo a qual, ao indicar Kassio Nunes Marques ao Supremo Tribunal Federal, passou a ter “10% de mim” naquela Corte. O ex-presidente também batalhou por um ministro “terrivelmente evangélico”, qualidade irrelevante para a investidura do cargo, mas relevantíssima do ponto de vista político.
Quaisquer que fossem os méritos e deméritos dos indicados por Bolsonaro, eram evidentes os interesses pessoais e o ânimo conflituoso do então presidente. Lula, por sua vez, pode até ser um pouco mais discreto no seu desejo de aparelhar politicamente o Judiciário, mas já deixou claro que não está para brincadeira, seja ao colocar no Supremo seu advogado particular, seja ao nomear seu ministro da Justiça e calejado político, Flávio Dino, para ter na Corte alguém com “cabeça política”.
No passado, o petista ainda parecia ter alguma preocupação com a qualidade de suas indicações aos tribunais superiores, como no caso da nomeação do jurista conservador Carlos Alberto Menezes Direito para o Supremo. Mas essa preocupação não durou muito: para a vaga deixada por Menezes Direito em razão de seu falecimento, em 2009, Lula indicou ninguém menos que o ex-advogado do PT José Antonio Dias Toffoli – reprovado duas vezes em concurso para juiz de primeira instância, mas considerado por Lula bom o bastante para a mais alta Corte brasileira.
Neste terceiro mandato, Lula mantém o critério ao ocupar os tribunais superiores e regionais com nomes mais próximos – como um advogado seu, um fiel aliado ou uma amiga de sua mulher, Janja da Silva. O demiurgo decerto espera que esses indicados sejam a vanguarda das batalhas político-jurídicas de interesse do lulopetismo.
E é nessa arena que ganha protagonismo o Grupo Prerrogativas, formado por 250 advogados e juristas de esquerda. O “Prerrô”, como o grupo criado há dez anos para se contrapor a alegados desmandos da Operação Lava Jato é chamado por seus próprios integrantes, já possui representantes no Superior Tribunal de Justiça (STJ), no Tribunal Superior Eleitoral (TSE) e no Tribunal Superior do Trabalho (TST), além de três tribunais regionais.
Nas indicações pelo chamado quinto constitucional – aqueles 20% das vagas de tribunais destinadas à advocacia ou ao Ministério Público –, grupos organizados sempre atuaram para emplacar nomes. O Prerrogativas, portanto, segue uma tradição, mas o faz de maneira desinibida, ostentando suas vitórias em celebrações nas quais assume a identidade de grupo político.
Sob a bênção de Lula, tudo isso terá impacto no Judiciário. Como mostrou reportagem do Estadão, a chegada de Antônio Fabrício de Matos Gonçalves ao TST, por exemplo, animou defensores das chamadas pautas progressistas e sua nomeação é vista como uma contraposição a um suposto polo conservador da Corte, representado por Ives Gandra da Silva Martins Filho. Ora, a inclinação política de um ou de outro é – ou deveria ser – indiferente, dado que os ministros deveriam estar comprometidos com a jurisdição trabalhista e com respeito às leis e à Constituição.
O poder concedido pela Constituição ao presidente da República para a indicação de magistrados para ocupar a alta cúpula do Poder Judiciário exige responsabilidade, autocontenção e profundo apreço pelo espírito público. A instrumentalização de tribunais superiores e regionais degenera a Justiça, e o Brasil não precisa de mais radicalização.
A impunidade ganha um nome
Editorial, O Estado de S. Paulo (14/09/2024)
Um ano após anular as provas obtidas no acordo de leniência da Odebrecht, Dias Toffoli batiza uma corrida de delatores em busca dos mesmos benefícios processuais dados a Lula da Silva
O ministro do Supremo Tribunal Federal (STF) Dias Toffoli deve estar orgulhoso de seu revisionismo histórico da Operação Lava Jato, sua magnum opus como juiz. Um ano depois de anular todas as provas obtidas por meio do acordo de leniência da Odebrecht, hoje Novonor, seu nome batiza um movimento de dezenas de delatores, alguns criminosos condenados, que têm acorrido aos tribunais para obter os mesmos benefícios processuais concedidos pelo ministro ao presidente Lula da Silva, autor do pedido de anulação. É o “Efeito Toffoli”, algo que, sem qualquer prejuízo semântico, também pode ser chamado de festim da impunidade.
Em 6 de setembro de 2023, vale lembrar, Toffoli usou um despacho monocrático em uma Reclamação (RCL 43007) interposta pela defesa de Lula, na véspera do feriadão da Independência, para submeter a sociedade brasileira à sua visão muito peculiar sobre o que foi a maior operação de combate à corrupção de que o País já teve notícia. Com uma canetada, Toffoli declarou “imprestáveis” as provas obtidas a partir dos sistemas Drousys e My Web Day, dois instrumentos que fizeram rodar com eficiência germânica o notório “departamento de propina” da então Odebrecht, o centro nervoso do esquema do petrolão nos governos lulopetistas.
Segundo esse realismo fantástico toffoliano, a força-tarefa da Lava Jato em Curitiba teria se valido de “tortura psicológica”, algo que ele havia chamado de “um pau de arara do século 21″, para obter provas contra pessoas “inocentes”. De acordo com o ministro em sua decisão, a prisão de Lula teria sido “um dos maiores erros judiciários da história do País”, “uma armação fruto de um projeto de poder de determinados agentes públicos em seu objetivo de conquista do Estado”. Rasgando a toga para se lançar como analista político, Toffoli ainda avaliou que a prisão do petista seria fruto de “uma verdadeira conspiração com o objetivo de colocar um inocente como tendo cometido crimes jamais por ele praticados”, ação esta que representaria “o verdadeiro ovo da serpente dos ataques à democracia e às instituições” a partir da ascensão de Jair Bolsonaro.
Sabe-se que, entre idas e vindas, o STF entendeu que a 13.ª Vara Federal de Curitiba não era o foro competente para julgar Lula da Silva. A Corte entendeu ainda que o princípio da presunção de inocência não autoriza o cumprimento da pena antes do trânsito em julgado da decisão penal condenatória. Mas escapou ao ministro Dias Toffoli, por razões que não cabe a este jornal perscrutar, que as provas que o levaram a anular o acordo de leniência da Odebrecht e deram a largada para essa corrida pela impunidade foram obtidas por meios flagrantemente ilegais, o que ficou evidente no âmbito da Operação Spoofing.
Toffoli também parece ignorar que os delatores que agora pedem a anulação de seus acordos de colaboração premiada – e a devolução de milhões de reais pagos a título de multa – confessaram seus crimes e concordaram em devolver milhões de reais cada um à Petrobras e/ou ao erário. Ademais, todos esses acordos que teriam sido assinados “sob tortura psicológica”, um rematado disparate, foram considerados hígidos pelo próprio STF, que os homologou.
Essa esquizofrenia jurídica, chamemos assim, somada ao voluntarismo, à criatividade e às intenções pessoais de Dias Toffoli – que não esconde de ninguém sua genuflexão de penitência diante de Lula da Silva –, é o que tem levado uma plêiade de ex-executivos da Odebrecht e de outras empresas à Justiça para pedir a anulação de seus acordos com o Ministério Público Federal, entre outros órgãos de controle, e a devolução de multas milionárias que foram pagas como contrapartida da não persecução criminal em casos de desvios de recursos públicos confessados com espantosos níveis de detalhe.
Por piores que sejam as decisões do ministro Dias Toffoli sobre a Operação Lava Jato nesse ano que passou – decisões que, é bom enfatizar, até hoje não foram submetidas ao crivo do plenário do STF –, mais aviltante é o desrespeito da Corte à inteligência e à memória dos cidadãos e ao próprio Poder Judiciário como um todo, pois a ninguém interessa, como já sublinhamos, um STF voluntarista, instável e politizado.
Brasil silencia ante o terror
Editorial, O Estado de S. Paulo (12/09/2024)
A condenação a mais de 16 anos de prisão do brasileiro Lucas Passos Lima, recrutado pela milícia extremista libanesa Hezbollah para promover ataques terroristas contra alvos judaicos no Brasil, coroa o trabalho da Polícia Federal (PF) em parceria com organizações internacionais, entre as quais o Mossad (serviço secreto israelense), e oferece certo alento em momento de recrudescimento do antissemitismo em todo o mundo, mas exige que o governo brasileiro adote discurso mais contundente contra o terrorismo – mesmo que isso implique eventual mal-estar com aliados ideológicos do lulopetismo, como o Irã, patrocinador do Hezbollah.
Lima foi preso no ano passado, na primeira fase da Operação Trapiche, deflagrada pela PF para “interromper atos preparatórios de terrorismo e obter provas de possível recrutamento de brasileiros para a prática de atos extremistas no país”.
De acordo com a investigação, Lima foi recrutado pela milícia xiita, tendo viajado duas vezes ao Líbano, onde recebeu treinamento para promover atentados terroristas contra a comunidade judaica em Brasília e também na Embaixada de Israel na capital federal – ataques que, se bem-sucedidos, reavivariam o trauma do atentado à Associação Mutual Israelita Argentina (Amia) em 1994, em Buenos Aires, que matou 84 pessoas. Em abril passado, a Justiça argentina responsabilizou o Irã e o Hezbollah pelo ataque, o mais letal da história do país. Salientou que o Irã teve papel “político e estratégico”, dando ampla proteção diplomática aos terroristas.
Não é remota a hipótese de que o Hezbollah tenha planejado atacar alvos judaicos menos visados no exterior como parte de sua atual campanha militar contra Israel, no contexto da guerra israelense contra o grupo terrorista palestino Hamas – outra organização a serviço do Irã. Convém lembrar que o atentado contra a Amia ocorreu depois de um ataque de Israel a um campo de treinamento do Hezbollah no Líbano que deixou 45 recrutas mortos – e a milícia, na época, prometera se vingar em qualquer parte do mundo.
Logo, o mínimo que se esperava era que o governo brasileiro ao menos questionasse Teerã sobre os planos terroristas do Hezbollah em território nacional. Não se pode ficar em silêncio ante a apavorante possibilidade de que a guerra por procuração que o Irã trava contra Israel use o Brasil como um de seus campos de batalha, ao custo de vidas de cidadãos brasileiros.
O presidente Lula da Silva, como se sabe, tem grande consideração pelo Irã, a despeito do patrocínio de Teerã ao terrorismo e da violação sistemática dos direitos humanos dos próprios iranianos. O petista poderia ao menos usar essa afeição pelo regime dos aiatolás em favor dos brasileiros ameaçados pela milícia xiita libanesa.
Não se tem notícia, contudo, de qualquer manifestação oficial, nem de Lula nem de ninguém do governo – como se os cidadãos judeus brasileiros não merecessem ao menos uma nota de repúdio ao terrorismo. Obviamente, nada disso surpreende, mas não deixa de ser lamentável.
Lula, de estadista a bobo da corte
Editorial, O Estado de S. Paulo (110/09/2024)
Lula se julga o líder da esquerda latino-americana, enquanto o companheiro Maduro o despreza e ameaça a soberania brasileira sem receber do petista uma resposta à altura
Na sexta-feira, milicianos encapuzados cercaram a Embaixada da Argentina em Caracas, que está sob custódia do Brasil desde que o governo chavista expulsou o corpo diplomático argentino. O prédio abriga seis opositores venezuelanos. No sábado, Nicolás Maduro revogou a autorização do Brasil para assumir a embaixada. A eletricidade foi cortada e só foi restabelecida no domingo, quando o cerco foi dispersado. Concomitantemente, o candidato da oposição, Edmundo González, alvo de uma ordem de prisão exarada pelos juízes fantoches de Maduro, se juntou a quase 8 milhões de venezuelanos refugiados e foi recebido como exilado pela Espanha.
Esses incidentes expõem com chocante clareza três fatos. Primeiro, que classificar o que aconteceu na Venezuela como “fraude” às eleições já virou um eufemismo. O povo venezuelano, que, segundo todas as evidências, elegeu González com dois terços dos votos, é literalmente vítima de um assalto à mão armada. Segundo, que o regime chavista não só violará regras internacionais, mas acordos com o Brasil e a própria soberania brasileira sempre que julgar conveniente. Terceiro, a pusilanimidade patológica de Lula da Silva ante essas e outras tantas agressões aos direitos dos venezuelanos e do próprio país que governa.
Líderes da oposição, organizações independentes e chancelarias de governos diversos – como EUA, Argentina, Paraguai, Uruguai e Costa Rica – emitiram notas duras de repúdio às ameaças de Maduro ao Brasil e aos refugiados venezuelanos abrigados por ele. Já o Itamaraty se restringiu a afirmar burocraticamente a inviolabilidade das instalações argentinas e também que manteria a sua custódia até que Buenos Aires indique outro Estado para exercer esta função. Nem uma mísera palavra de indignação. O máximo de emoção que o Itamaraty foi capaz de exprimir foi “surpresa”. O resto é silêncio.
Na sexta-feira, o disco quebrado de Lula voltou a rodar em uma entrevista a uma rádio: ele segue se fazendo de desentendido em relação às atas que o regime já disse que não publicará e que a oposição já publicou; sua solução continua a ser “novas eleições”; o comportamento de Maduro “deixa a desejar”; e seu regime não é uma ditadura, “é mais um rolo”.
Enquanto Nicolás Maduro promete “banhos de sangue”, rouba as eleições, declara que só entregará o governo a algum preposto chavista e persegue opositores, a posição de Lula continua a ser – visto que não houve retificação – a de que não há nada de “anormal ou grave”. Enquanto o ditador ameaça invadir um país vizinho que faz fronteira com o Brasil, questiona a legitimidade do sistema eleitoral brasileiro e ameaça territórios sob a custódia do Brasil, Lula vê apenas um regime “desagradável”.
O chavismo sempre usou Lula e o PT para se legitimar e se financiar, mas Lula e o PT são incapazes de manifestar indignação, se não pelas agressões ao Brasil, ao menos pela ingratidão do indigitado companheiro. Não é de hoje que o sangue de barata corre nas veias do lulopetismo. Foi no governo de Lula que o companheiro boliviano Evo Morales confiscou refinarias da Petrobras. Foram os governos petistas que financiaram a cleptocracia de Maduro com empréstimos do BNDES. O calote chega a cerca de R$ 7 bilhões, na prática coberto pelo Tesouro brasileiro. Lula voltou ao poder garantindo que a Venezuela e outras ditaduras quitariam suas dívidas “porque são todos amigos do Brasil” – leia-se, de Lula. Muy amigos.
A cortesia com o chapéu alheio – no caso, o do contribuinte brasileiro – deveria ao menos servir para que Lula refreasse a sede de sangue dos tiranos companheiros. Mas nem isso. Na semana passada, não foi o demiurgo petista que logrou a libertação de dezenas de presos políticos pelo déspota nicaraguense Daniel Ortega, mas o diabo em pessoa: o governo “estadunidense”.
Reza um ditado que numa mesa de pôquer há sempre um otário, e se você não sabe quem é, provavelmente é você. Lula se julga um grande estadista, um líder da esquerda global, uma voz influente no jogo de poder latino-americano. Mas os fatos mostram bem outra coisa.
Está faltando prudência ao Supremo
Editorial, O Estado de S. Paulo (10/09/2024)
Nem Lula deveria ter convidado Moraes para posar a seu lado no 7 de Setembro nem o ministro deveria ter aceitado; de Lula não se esperava outra coisa, mas ao STF se impunha mais cautela
O Supremo Tribunal Federal (STF) perdeu uma ótima oportunidade de sinalizar à grande parcela da sociedade que passou a ver com desconfiança a atuação da Corte que não é, como parece ser, uma espécie de instância superior de decisões políticas – ou seja, um tribunal parcial. Não é de hoje que o STF abriu mão da prudência republicana. Mas, como o 7 de Setembro deixou claro, nada indica, ao contrário, que a Corte esteja genuinamente interessada em retomar o bom trilho da autocontenção.
Sobrepondo seus interesses políticos à institucionalidade, o presidente Lula da Silva convidou o ministro do STF Alexandre de Moraes para figurar na primeira fileira do palanque de autoridades na celebração oficial da Independência, em Brasília. Tratou-se de um inequívoco gesto de desagravo a Moraes, que, horas depois, a cerca de mil quilômetros dali, seria hostilizado por Jair Bolsonaro e seus apoiadores na Avenida Paulista.
Lula da Silva fez o que dele se esperava. O petista usou a deferência a Moraes – na prática, tratado como chefe de Poder – para alimentar a renhida polarização com Bolsonaro, que tanto interessa a ambos. Mas não é improvável que o próprio ministro do STF também tenha usado o convite para demonstrar força política, o que, por óbvio, não se coaduna com a conduta esperada de qualquer magistrado que se pretende sério e justo.
A força de Moraes, ou a de qualquer juiz, seja qual for seu grau de jurisdição, advém fundamentalmente de sua imparcialidade e da acuidade jurídica de suas decisões, ainda que delas se possa discordar. Um juiz não é mais “forte” ou mais “fraco” por sua capacidade de granjear apoios em torno de sua figura. Evidentemente, recusar o convite do presidente da República seria uma desfeita inconcebível. Mas Moraes poderia ter optado por ficar ao lado de seus colegas de STF em fileiras mais afastadas da principal, reservada tradicionalmente aos chefes dos Três Poderes, ao ministro da Defesa e aos comandantes das Forças Armadas.
Mas Moraes não apenas se postou ao lado de Lula da Silva e do presidente do STF, ministro Luís Roberto Barroso, como ainda se deixou fotografar com eles, com a evidente intenção de transmitir ao País um sinal de que suas decisões, por mais controvertidas que sejam, contam com o respaldo dos chefes dos Poderes Executivo e Judiciário. Deveria ser ocioso lembrar, mas o amparo pelo qual Moraes deveria ansiar é o da Constituição. E deste, é forçoso dizer, muitas de suas decisões têm carecido, sobretudo as tomadas no âmbito dos onipresentes inquéritos das fake news e das milícias digitais.
Como se nada disso bastasse, alguns ministros do STF ainda participaram de um convescote organizado por Lula da Silva no Alvorada, após o desfile do 7 de Setembro. Entre uma garfada numa fatia de costela e outra no feijão tropeiro servidos aos comensais, consta que magistrados e integrantes do governo fizeram troça da manifestação convocada por Bolsonaro para fustigar Moraes e, de quebra, pedir anistia política e criminal para ele e outros golpistas envolvidos no 8 de Janeiro. Mais uma vez, faltou prudência ao STF. E faltou respeito aos seus críticos, haja vista que nem todo reparo à Corte tem sido feito por quem quer a sua deslegitimação, mas, antes, apenas deseja ver o STF circunscrito ao seu papel constitucional.
É curioso imaginar qual seria a reação dos petistas se acaso Bolsonaro ainda fosse o presidente da República e desse aos ministros Nunes Marques ou André Mendonça a mesma deferência dada por Lula da Silva a Alexandre de Moraes – alguém que até outro dia, apenas por ter sido indicado à Corte pelo “golpista” Michel Temer, era chamado de “fascista” ou coisa pior pela mesma turma que hoje o saúda como herói nacional.
A política e seus protagonistas passam. O STF, porém, haverá de permanecer como uma das mais importantes instituições da República. Portanto, pairar acima das lides políticas, como a última linha de defesa da Constituição, deveria não só ser entendido pelos ministros da Corte como sua missão fundamental, mas também servir como norte indesviável de seu comportamento.
O problema do STF com a democracia liberal
Editorial, O Estado de S. Paulo (08/09/2024)
Supremo se atribuiu a missão de sanear o debate nacional sem ter autoridade para isso. Numa democracia liberal, todos são livres para dizer o que pensam, mesmo coisas desagradáveis
O ministro Alexandre de Moraes, do Supremo Tribunal Federal (STF), disse numa palestra na Universidade Mackenzie, na semana passada, que as redes sociais são “um instrumento bom”, mas que têm sido usadas “de forma extremamente competente por um novo grupo político, os extremistas populistas”, para solapar a democracia. Para o ministro, o ideal é que as empresas que administram as redes sociais se responsabilizem pelo que publicam. Enquanto isso não acontece, presume-se pelo contexto, restaria ao Judiciário agir para proteger os cidadãos daquilo que o ministro Moraes chamou de “discurso de ódio”.
Subjaz a essas declarações de Alexandre de Moraes uma preocupante visão segundo a qual estamos numa luta do “bem” contra o “mal”, e o primeiro é representado por aqueles que prezam a democracia – liderados pelo Supremo – e o segundo é encarnado na ganância das chamadas “Big Techs” e na vileza dos extremistas de direita. Fosse o sr. Moraes um anônimo cidadão comum a conversar no bar, sua visão não teria maiores consequências. No entanto, tendo partido não somente de um ministro da Corte mais alta do País, mas também do poderoso relator dos processos sobre “fake news” e “milícias digitais” no Supremo, a opinião do sr. Moraes equivale a um veredicto.
A expressão “discurso de ódio” não se encontra em nenhum lugar do ordenamento jurídico brasileiro. É apenas o rótulo usado por aqueles que, a pretexto de proteger a sociedade e a democracia, defendem o cerceamento preventivo da manifestação do pensamento. Há alguns anos, o Supremo Tribunal Federal arvorou-se em árbitro do discurso político, sobretudo nas redes sociais, mandando derrubar perfis que, em sua visão, ameaçam a democracia – o que é tratado liminarmente como crime de lesa-pátria.
A censura judicial, que deveria ser ato excepcionalíssimo em momentos excepcionalíssimos, como é o caso do período eleitoral, tornou-se assustadoramente corriqueira. Não é preciso ser simpatizante dos censurados – e este jornal não é, sobretudo dos extremistas que querem destruir a democracia – para ver aí um padrão preocupante.
E esse padrão parece responder a uma visão de mundo autoritária, segundo a qual cabe ao Estado expurgar a sociedade de seus vícios, de acordo com um ideal determinado por um grupo de iluminados que se autoatribuiu a missão de salvar os brasileiros de si mesmos. De acordo com esse raciocínio, os brasileiros não podem ter nenhum contato com opiniões tidas como violentas ou ameaçadoras, pois seriam incapazes de discernir o certo e o errado, o bem e o mal, o virtuoso e o viciado – e estariam, portanto, sempre à mercê do extremismo.
Ora, se os cidadãos brasileiros são capazes de escolher seus governantes, são igualmente capazes de julgar quais informações lhes serão úteis ou podem prejudicá-los Já as eventuais ofensas são tratadas pela lei – e quem for difamado, caluniado ou injuriado deve recorrer à Justiça para obter a devida reparação. Essa é a lógica de um país verdadeiramente livre, em que os direitos básicos são assegurados a todos, independentemente do caráter e do comportamento de cada um. Ninguém pode ter medo de ser punido por expressar sua opinião, mesmo que seja agressiva e eventualmente antidemocrática, pois isso não é digno de uma democracia.
Mas é justamente isso o que está acontecendo no Brasil, num grau de arbitrariedade característico dos regimes de exceção. Os poderosos juízes do Supremo querem controlar o debate nacional sem ter nenhuma autoridade legal para isso – e todos os que criticam essa truculência são desde logo classificados como “inimigos da democracia”.
A beleza de uma democracia liberal, como pretende ser a brasileira, está na liberdade como princípio: todo cidadão é livre para fazer e falar o que bem entende, respondendo por seus atos e palavras na forma da lei. Numa sociedade assim, coisas desagradáveis eventualmente são ditas ou feitas. Pode ser que isso fira a sensibilidade de um ou outro ministro do Supremo, mas é o preço de viver numa verdadeira democracia.
O enquadramento político do Supremo
Editorial, O Estado de S. Paulo (06/09/2024)
Pesquisa revela que as afinidades políticas dos cidadãos afetam sua confiança no STF. A própria Corte alimenta essa percepção enviesada e precisa se afastar, de fato, da política
A ordem do ministro do Supremo Tribunal Federal (STF) Alexandre de Moraes para suspender o X no Brasil foi percebida pela maioria da população como uma decisão politicamente motivada. De acordo com uma pesquisa realizada pela Atlas entre os dias 3 e 4 deste mês, 56,5% dos brasileiros consideram que Moraes tomou uma decisão política ao retirar a rede social do ar, enquanto 41,7% dos entrevistados avaliam que o ministro agiu de forma correta do ponto de vista técnico-jurídico.
Sob a perspectiva estritamente legal, o “erro” ou o “acerto” de uma decisão judicial, por óbvio, não pode ser medido por meio de pesquisas de opinião, mas sim por sua coadunação com o ordenamento jurídico e com a jurisprudência dos tribunais – além, é claro, da observância aos imperativos éticos, legais e morais que devem orientar a judicatura.
Contudo, o levantamento da Atlas tem grande valor analítico por revelar outro dado. O grau de confiança dos cidadãos no STF é enorme entre os que votaram em Lula da Silva no segundo turno da eleição presidencial de 2022. Nada menos que 87,9% dos eleitores do petista disseram confiar no Supremo. Em contrapartida, o porcentual de desconfiança na atuação da Corte entre os eleitores de Jair Bolsonaro naquele mesmo pleito atinge um patamar igualmente avassalador: 92,4% dos bolsonaristas não confiam nas decisões tomadas pela instância máxima do Poder Judiciário.
Ou seja, os cidadãos têm olhado para o STF de uns anos para cá através das lentes da política – mais especificamente da polarização política. Se a Corte toma uma decisão que atinge em cheio os interesses dos bolsonaristas, é percebida como correta e confiável pelos apoiadores do presidente Lula da Silva. Se a decisão afeta o próprio petista, seus aliados ou políticas do governo federal, é tomada com desconfiança pelo segmento dito progressista da sociedade e aprovada pelos partidários de Bolsonaro. E essas posições, como indicam os números acima, são afirmadas no calor das paixões, sem deixar o mínimo espaço para reavaliações por concessão a argumentos contrários mais sólidos.
Lula e Bolsonaro fizeram essa leitura acerca do enquadramento político do STF muito antes de quaisquer números virem a público. Não custa lembrar que, quando indicou o ministro Nunes Marques para a Corte, Bolsonaro jactou-se por passar a ter “10% de mim dentro do Supremo”. Lula, por sua vez, deixou bem claro que enxerga o STF como uma arena de disputas políticas ao indicar o ministro Flávio Dino. À época da indicação, o petista chegou a verbalizar que “sonhava com uma cabeça política” na Corte.
Está dado um quadro terrível para a saúde da democracia no País. Resta claro, a partir desses números trazidos pela Atlas, que as decisões emanadas do STF são percebidas de antemão pelos brasileiros a partir desse enquadramento político-partidário. Enviesadas, portanto. Em um cenário mais avançado de maturidade política da sociedade, em que pese o fato de que sempre haverá quem sobreponha suas afinidades ideológicas e vieses aos fatos, as decisões judiciais, sobretudo as exaradas pelo STF, seriam avaliadas, majoritariamente, por sua acuidade jurídica, vale dizer, se foram tomadas de acordo com o que determinam as leis e a Constituição.
Mas não é de hoje que o próprio STF tem ampliado o desgaste de sua legitimidade por agir não poucas vezes como uma instância decisória que dá menos valor àqueles critérios do que a interesses pouco transparentes. Isso se manifesta quando a Corte se imiscui em questões que não lhe são afeitas, quando retorce sua própria jurisprudência para acomodá-la aos ventos políticos de ocasião ou quando alimenta conflitos de interesses participando de convescotes custeados por partes interessadas em seus julgamentos. Pululam exemplos desse comportamento daninho para a própria Corte Constitucional.
Ainda que lento, é fundamental o recobro da vocação do STF de ser a ermida da Constituição. A Corte precisa se afastar, de fato, da política. Só assim não será percebida, ora vejam, como um tribunal político. É tão simples quanto isso. Encerrar os inquéritos longevos, amplos e sigilosos relatados por Moraes, por exemplo, seria um bom começo para esse movimento auspicioso.
Maduro expõe fracasso da estratégia de Lula
Editorial, O Globo (05/09/2024)
A decisão do ditador Nicolás Maduro de mandar a Justiça prender, sob acusações absurdas, Edmundo González, o oposicionista vencedor das eleições de 28 de julho, expõe de modo eloquente o fracasso da estratégia adotada até aqui pelo presidente Luiz Inácio Lula da Silva diante da crise venezuelana. Depois da fraude escancarada nas eleições de julho, o Brasil se aliou à Colômbia e apostou no diálogo para encontrar uma saída. Só que, apoiado pelas Forças Armadas, Maduro nunca quis saber de conversa.
Pouco mais de um mês depois da fraude eleitoral, a crise venezuelana entra em nova fase. Sem pretensão de parecer legítimo, o regime investe na perseguição à oposição. A reação exige uma resposta à altura do Brasil. Infelizmente, não é o que se vê até o momento. Em mais uma nota anódina, os governos brasileiro e colombiano manifestaram “profunda preocupação” com a ordem de prisão de González, mas ficaram longe da condenação veemente que a situação exige. Curto, o texto faz uma descrição pródiga em platitudes: “Esta medida judicial afeta gravemente os compromissos assumidos pelo governo venezuelano no âmbito dos Acordos de Barbados, em que governo e oposição reafirmaram seu compromisso com o fortalecimento da democracia e a promoção de uma cultura de tolerância e convivência. Dificulta, ademais, a busca por solução pacífica, com base no diálogo entre as principais forças políticas venezuelanas”.
Manifestações estapafúrdias de Maduro, como a decisão de antecipar o Natal para 1º de outubro, podem dar a entender que o regime chavista é uma piada. Não é. É uma tragédia seriíssima. Para se manter no poder, as forças de segurança não tiveram pudor em atentar contra o próprio povo. A Human Rights Watch denunciou ao menos 24 assassinatos nos protestos depois das eleições. Pobreza e desigualdade não param de aumentar. A população subnutrida está perto da média africana. Em termos de percepção de corrupção, a Venezuela está à frente apenas da Somália. Um quarto da população já emigrou. Com o aumento do autoritarismo, mais venezuelanos deverão sair do país, criando mais um desafio para o Brasil na fronteira.
Além da crise humanitária, a situação na Venezuela tem uma dimensão geopolítica. Como escreveu o general da reserva Otávio Santana do Rêgo Barros no GLOBO, uma das consequências da instabilidade é a atenção de potências globais à região amazônica e à caribenha. Interessadas em erodir o poder americano, China e Rússia apoiam Maduro. Na opinião de Rêgo Barros, o desafio do Brasil é “evitar que outras potências mais poderosas transformem o subcontinente sul-americano em campo de batalha para suas disputas pelo controle do mundo”. Um conflito armado perto da fronteira norte seria o pior cenário possível.
Em Brasília, autoridades costumam dizer que Hugo Chávez ouvia demandas brasileiras, mas Maduro não. Como lidar com a escalada autoritária quando quem está no poder se faz de surdo? Com pragmatismo, marca da diplomacia brasileira, mas sem abandonar princípios democráticos. Há muitos países interessados na solução pacífica da crise. O Brasil teve a oportunidade de liderá-la exigindo, negociando e monitorando a transferência de poder ao vencedor legítimo da eleição. Quando apenas manifesta “profunda preocupação” com o arbítrio de Maduro, fica claro que a jogou fora.
Após suspensão do X, quem deveria defender liberdade de expressão está em silêncio
Editorial, The Economist / Folha de São Paulo (04/09/2024)
No Brasil, juízes bloquearam o acesso ao X, uma das redes sociais mais populares do país. Na França, promotores proibiram o chefe do Telegram de sair da nação enquanto investigam a plataforma de mensagens. No Reino Unido, juízes estão condenando usuários à prisão por mensagens publicadas durante recentes distúrbios. Nos Estados Unidos, há planos para banir o TikTok, um aplicativo popular de propriedade chinesa.
À medida que governos reprimem o discurso online, argumentos sobre a liberdade de expressão começam a transbordar.
Em alguns casos, a repressão é justificada. O caso da França contra o Telegram, um aplicativo fundado na Rússia que tem 50% mais usuários em todo o mundo do que o X, concentra-se no seu policiamento de conteúdo ilegal. O aplicativo, que tem apenas cerca de 50 funcionários, há muito é visto como um local fácil para compartilhar material sobre abuso infantil e anunciar drogas e outros produtos ilegais. O Telegram chama as acusações francesas de “absurdas” e diz que está em conformidade com as normas digitais europeias. Seja qual for a conclusão da investigação, pelo menos está visando algo que é ilegal.
O ataque draconiano da América contra o TikTok também é defensável. O aplicativo é apreciado por mais de 1 bilhão de pessoas em todo o mundo e abalou um mercado não competitivo. Mas, com uma empresa-mãe sediada em Pequim, ele é vulnerável à manipulação pelo Partido Comunista Chinês —o que importa, dado quantos usuários tratam o TikTok como sua fonte de notícias. Indivíduos têm o direito à liberdade de expressão, mas governos estrangeiros não; banir o TikTok é um último recurso razoável se a empresa não puder cortar seus laços com Pequim.
No entanto, outros casos recentes buscam censurar e punir discursos que deveriam estar dentro da lei. O Brasil baniu o X por se recusar a cumprir ordens judiciais opacas para remover dezenas de contas, incluindo as de membros do Congresso; os usuários que tentam acessar a plataforma enfrentam multas ruinosas. A Índia, os Emirados Árabes Unidos e outros estão tentando enfraquecer a criptografia; a Malásia disse que postagens sobre religião devem ser aprovadas pelo Departamento de Desenvolvimento Islâmico.
As democracias ricas também estão recorrendo cada vez mais às tesouras da censura. A União Europeia está investigando o X por fomentar desinformação e racismo —ambos ruins, mas não alvos apropriados para a lei. O Reino Unido está certo em prender aqueles que claramente incitam à violência, mas quando condenou um homem por postar um tuíte considerado simplesmente “grotesco”, ela se desviou para a censura injustificada. Mesmo nos Estados Unidos, que tem a tradição de liberdade de expressão mais forte do mundo, o Facebook acusou a Casa Branca de pressioná-lo para remover meras sátiras sobre a Covid-19.
Os argumentos sobre discurso e lei têm sido intensos desde a invenção do livro, para não mencionar o Facebook. Nossa posição de longa data é clara: apenas com a liberdade de estar errado as sociedades podem avançar lentamente em direção ao que é certo.
O que mudou é que hoje as objeções mais altas à repressão à liberdade de expressão vêm de direitistas como Elon Musk, chefe do X, enquanto muitos autodeclarados progressistas aplaudem o que veem como um golpe contra bilionários apoiadores do ex-presidente americano Donald Trump. À medida que o discurso se torna um campo de batalha da guerra cultural, aqueles que discordam da política de Musk e seus aliados estão tranquilos a respeito do ataque.
Eles deveriam acordar. As restrições cada vez mais rígidas sobre o que é dito afetam todos que usam plataformas online, não apenas os bilionários que as possuem. Além disso, a liberdade de expressão dificilmente está segura nas mãos de libertários de ocasião como Musk, que processa aqueles com quem discorda, bane palavras de que não gosta de sua plataforma e é cordial com Vladimir Putin, cuja ferramenta favorita de moderação de conteúdo é o Novichok. A capacidade de falar livremente é talvez o valor liberal essencial. É hora de verdadeiros liberais se manifestarem e defendê-la.
Texto de The Economist, traduzido por Daniela Arcanjo, publicado sob licença. O artigo original, em inglês, pode ser encontrado em www.economist.com.
A covardia do Brasil na Venezuela
Editorial, O Estado de S. Paulo (04/09/2024)
A repressão na Venezuela recrudesce a níveis pavorosos mesmo para os padrões de truculência do chavismo. O regime está em vias de aprovar uma “Lei contra o Fascismo” que na prática lhe dará carta branca para prender quem bem entender. Desde as eleições presidenciais, cujos resultados foram escandalosamente fraudados para dar a vitória ao ditador Nicolás Maduro, quase 30 manifestantes foram mortos e cerca de 2 mil foram detidos, entre eles dezenas de menores de idade. As milícias informais conhecidas como “Coletivos”, a Gestapo chavista, intimidam famílias em suas casas e jornalistas nas redações. O advogado da oposição foi sequestrado.
Agora, o regime ordenou a prisão do candidato da oposição, Edmundo González. Como se sabe, o único “crime” da oposição foi divulgar, graças à insubordinação cívica de funcionários dos colégios eleitorais, fotogramas das atas eleitorais que confirmam, segundo a apuração de vários observadores independentes, sua vitória nas urnas com dois terços dos votos.
Chancelarias de diversos países latino-americanos emitiram notas veementes de repúdio. Já o governo brasileiro continua a fazer cara de paisagem. Em tom prazenteiro, o chanceler paralelo do presidente Lula da Silva, Celso Amorim, disse que “eu sou do tempo da bossa nova – a gente nunca sobe o tom”. Nunca, desde que se trate de tiranos companheiros.
Se o governo, sob a retórica malandra do “pragmatismo”, se desfaz de suas obrigações de denunciar a fraude contra a vontade do povo venezuelano e as violações de seus direitos fundamentais, não é por falta de saliva. Mesmo em questões em que tem pouca influência, como a guerra na Ucrânia ou em Gaza, Lula fala e fala muito, com frequência superlativamente, como quando equiparou as operações militares de Israel ao Holocausto. O Brasil, por sinal, segue sem um embaixador em Israel.
Em 2012, quando o Parlamento do Paraguai destituiu o presidente esquerdista Fernando Lugo, a então presidente Dilma Rousseff vociferou contra uma suposta “ruptura da ordem democrática”, engendrando com os governos esquerdistas da Argentina e do Uruguai o afastamento do Paraguai do Mercosul. Pouco importa que missões internacionais tenham constatado a higidez constitucional do impeachment de Lugo: como se tratava de um companheiro progressista, Dilma deixou de lado a diplomacia “bossa-nova” de Amorim. Para confirmar que a manobra era puramente ideológica, o consórcio esquerdista do Mercosul, sem o inconveniente voto contrário do Paraguai, aprovou a entrada no bloco da – ora vejam – Venezuela chavista.
Em outras palavras, em nome da “defesa da democracia”, o lulopetismo e seus sócios sul-americanos patrocinaram um atentado às instituições do Mercosul, alijando um país em condições de normalidade democrática para favorecer um regime cujo autoritarismo é a principal marca.
A oposição venezuelana tem dado ao mundo um exemplo de heroísmo. Em outras ocasiões ela se fracionou e oscilou entre modos diversos de resistência, de boicote às eleições a tentativas de rebelião armada. Agora, mesmo diante de uma ditadura militar que mantém na coleira o Legislativo, o Judiciário e a mídia, optou pelo enfrentamento nas urnas – e venceu. Mas o governo brasileiro continua a promover a farsa da “neutralidade”, cobrando as atas eleitorais que o chavismo trancou a sete chaves e a oposição mostrou ao mundo.
Já ficou claro que o Brasil tem pouca capacidade de influência num regime manietado por China, Rússia e Cuba. Mas longe de isentá-lo, essa seria mais uma razão para que o seu chefe de Estado denunciasse com todas as letras o atentado contra a democracia e os direitos humanos em curso. Não é só um dever moral, mas constitucional. A Carta Magna brasileira preconiza que as relações exteriores do Brasil se regem, entre outros princípios, pela prevalência dos direitos humanos e o repúdio ao terrorismo.
Ditaduras dependem de duas coisas para subsistir: o apoio das Forças Armadas e da população. Maduro, aparentemente, mantém o primeiro, mas o rechaço do povo venezuelano é inequívoco. Democracias genuínas deveriam celebrar e apoiar a resistência desse povo. O Brasil, em nome das amizades de seu presidente, prefere ofendê-lo.
O cabideiro do PT na Petrobras
Editorial, O Estado de S. Paulo (03/09/2024)
Ao lotear cargos na petroleira entre indicados de sindicalistas e políticos, governo Lula não surpreende ninguém: para os petistas, as estatais servem para isso mesmo
Ao menos 35 indicações de nomes ligados ao PT e a autoridades do governo federal para cargos estratégicos na Petrobras foram efetivadas nos primeiros cem dias da gestão de Magda Chambriard. A executiva assumiu o comando da companhia depois que o ex-senador Jean Paul Prates (PT-RN) foi demitido por Lula da Silva em meio a uma disputa de poder político no primeiro escalão do governo. A mudança na presidência foi a deixa para mais uma rodada de loteamento de cargos, prática corrente que explica, em boa medida, a obsessão do PT pela intervenção estatal na economia.
Levantamento feito pelo Estadão mostra que a distribuição de cargos não ocorreu de forma aleatória. Pelo contrário, além das previsíveis mudanças na alta cúpula, é com precisão cirúrgica que estão sendo trocados integrantes de cargos-chave nos comitês que assessoram a diretoria executiva e o Conselho de Administração e nas gerências executivas, responsáveis pela gestão operacional. Com isso, ao mesmo tempo que tira proveito da oferta de cargos a apadrinhados políticos, a gestão lulopetista monta uma rede para facilitar o encaminhamento de questões que lhe são caras dentro da empresa.
São substituições que atingem, por exemplo, o Comitê de Pessoas, que avalia se a política de indicações obedece aos requisitos de governança da empresa. É a instância que, ultimamente, tem atrapalhado os planos do governo Lula, ao emitir pareceres rejeitando nomeações pelos mais diversos conflitos. As recomendações têm sido ignoradas pelo governo, que tem manobrado para burlar as regras internas, mas não sem desgastar um pouco mais a imagem da empresa.
O aparelhamento chega a setores como o de auditoria, que avalia os riscos de cada projeto da Petrobras para verificar se o retorno esperado justifica o investimento – uma precaução imprescindível a qualquer empresa que pretenda manter equilibrado seu grau de solvência, com um nível de endividamento que não comprometa o patrimônio. Mas, num governo em que o equilíbrio fiscal é frequentemente questionado pelo próprio presidente, com sua recorrente cantilena de que gasto é “investimento”, não há como esperar prudência na Petrobras.
A indicação de pessoas de confiança de ministros para cargos em áreas como engenharia e exploração de petróleo, dispensando qualquer conhecimento prévio sobre a empresa ou mesmo sobre o setor, é a comprovação absoluta do descaso. Como detalhou a reportagem, a lista é grande: vai de assessores de ministérios a sindicalistas e delegados, passando até pela irmã de um doador de campanha eleitoral. É um método em muitos aspectos semelhante ao que foi adotado nas gestões petistas e que deu origem ao “petrolão”, com denúncias de propinas, subornos, malversação de recursos e superfaturamentos de obras.
O PT, como sabemos, finge que o petrolão nunca existiu, e afeta indignação quando se toca no assunto. É o mesmo espírito que norteia explicações como a da Federação Única dos Petroleiros (FUP), que nega ter participado das escolhas, mas classifica os indicados como donos de “currículos invejáveis”, o que ofende a inteligência alheia. Sob Lula da Silva, a FUP ganhou status e poder na Petrobras, atuando quase como uma diretoria à parte. Do mesmo modo, requer uma dose considerável de ingenuidade crer na versão do Ministério de Minas e Energia (MME), que informa não ter feito qualquer indicação – embora 3 dos 11 conselheiros administrativos deem expediente no MME.
A reportagem mostra que os ministros de Minas e Energia, Alexandre Silveira, e da Casa Civil, Rui Costa, tiveram participação ativa na mudança na presidência da Petrobras, que não estava atendendo a contento a todos os anseios do governo, a despeito do esforço de Jean Paul Prates de colocar em prática decisões do governo, como a mudança na política de preços dos combustíveis para “abrasileirá-los”.
Na visão do governo Lula da Silva, a principal função das estatais parece ser a de cabide para pendurar não só os apadrinhados, como também para dar a essas pessoas a tarefa de atender aos desejos do governo, sejam quais forem. Não surpreende que bancos de investimentos, como Citi, UBS e HSBC, tenham distribuído a seus clientes relatórios alertando sobre a visível deterioração nas regras de governança da Petrobras.