A Lava Jato é uma importante operação de parte do Estado democrático de direito para combater a corrupção na política. Isso ninguém pode negar. As leis devem valer para todos em um regime democrático. No Brasil, não valiam muito. Com a Lava Jato as coisas começaram a mudar.
Mas por mais importante que seja a Lava Jato ela não pode ser o referencial para a atuação dos democratas. O referencial para os democratas é a democracia, quer dizer, a política democrática, não qualquer operação da polícia, do ministério público ou da justiça. Por maior que seja, por mais impacto que venha a causar no apodrecido sistema política brasileiro, uma operação do Estado – mesmo que conte com amplo apoio da população, o que é o caso – não pode substituir a política. Se os cidadãos cruzam os braços para acompanhar os lances emocionantes de uma operação do Estado, eles deixam de ser agentes políticos e passam a ser torcedores. E aí, como torcedores, ficam torcendo mesmo:
“Lula já foi preso? Quando será?”
“Lula já ficou inelegível? Quando o TRF-4 vai julgá-lo em segunda instância? E se condená-lo, confirmando a sentença de Moro, isso significa que ele não poderá fazer campanha (ou será que ele continuará no palanque por força de liminares concedidas pelo STJ ou pelo STF)?”
“Dirceu já voltou para a cadeia? Quando, afinal, ele voltará?”
“Palocci vai mesmo entregar Lula? Por que o Ministério Público não consegue fechar sua delação?”
“Cunha vai delatar? Vai entregar Temer como o chefe da maior e mais perigosa organização criminosa do país (como inventou Joesley em conluio com Janot)?”
E por aí vai.
Os que já compreenderam o perigo que representa a atuação de uma força autocrática como o PT (que pode, sim, voltar ao governo em 2018 – isso é até bem provável), que não foi desbaratada pela Lava Jato, em vez de enfrentarem o PT com ação política ficam esperando que a justiça resolva o problema.
“Ah! Moro – o nosso herói – vai enquadrar Lula. Com ele o PT não tem moleza”
“A força-tarefa da Lava Jato vai, afinal, desbaratar a organização política criminosa chefiada por Lula”
Vai mesmo? Parece que não. Até agora só há um dirigente do núcleo duro da organização criminosa que comanda de fato o PT preso em regime fechado: João Vaccari. Até Dirceu (o sub-chefe, “o capitão do time” de Lula) está solto e fazendo política. Isso para não falar do próprio Lula.
Sir Ralf Dahrendorf (2004) dizia que não há democracia sem democratas. Os democratas só o são enquanto agem como atores políticos democráticos. Se os democratas paramos de fazer política e ficamos esperando que a Lava Jato tire as castanhas do fogo para nós, a democracia não se exerce.
Agora, por exemplo, abre-se uma imensa janela de oportunidade para desmascarar o PT. Está facílimo para o governo brasileiro expor o caráter autocrático do PT. Basta tomar atitudes mais contundentes em defesa da democracia no continente contra a ditadura de Maduro e esperar a reação regressiva de Lula e dos principais dirigentes petistas.
Aí então será fácil mostrar à população brasileira o que está acontecendo na Venezuela e questionar o apoio dado pela esquerda ao regime bolivariano, mostrar os vídeos de Lula apoiando a eleição de Chávez e Maduro, revelar as partes da delação de João Santana e Mônica onde fica claro que o governo do PT financiou suas campanhas, dar publicidade às notas de apoio do partido aquele regime antidemocrático.
Com isso, muitas pessoas entenderão que a Venezuela é um alerta para o que pode acontecer com o Brasil se o PT voltar ao poder. Isso seria um verdadeiro enfrentamento político com o PT em vez de ficar esperando que a justiça resolva o problema.
Os procuradores da Lava Jato e o juiz Moro não podem tomar iniciativas como essas. Não é seu papel. E mesmo que fosse, eles não têm a clareza suficiente para fazê-lo como cidadãos. Apesar de tudo que acontece na Venezuela, Deltan Dallagnol e Carlos Fernando continuam falando que todos são farinha do mesmo saco. Que não se trata de combater o PT e sim todos os corruptos. Como se todos os políticos que cometeram crimes representassem o mesmo perigo para a democracia. Como se fosse possível limpar a política da corrupção endêmica, que lhe é inerente (e que, portanto, existe desde Péricles, quer dizer, desde que existe política democrática).
Açulando o moralismo – um traço conservador da nossa cultura e um atributo do analfabetismo democrático reinante – os agentes da Lava Jato estão matando a política e nos transformando em torcedores. Talvez não estejam fazendo isso de caso pensado. Deve ser consequência do seu analfabetismo democrático mesmo. Não que eles estejam fazendo isso ao cumprir seu papel institucional. Não! Eles estão fazendo isso quando se comportam como agentes políticos (em entrevistas, palestras, publicações nas mídias sociais).
Os democratas devemos aplaudir os responsáveis pela Lava Jato quando agem corretamente, em termos policiais e jurídicos, dentro dos limites constitucionais, combatendo o crime, venha de onde vier. Mas não podemos seguir suas orientações políticas. Eles não têm condições de nos orientar politicamente e não podem nos transformar em macacas de auditório da sua atuação como cruzados da limpeza ética, como uma espécie de Comitê de Salvação Pública que pratica a antipolítica robespierriana da pureza.
Mesmo porque eles até hoje não compreenderam os limites políticos da sua atuação. Em termos políticos, o balanço da Lava Jato, depois de centenas de investigações, condenações, prisões (e não-prisões) é pífio: os chefes da verdadeira organização política criminosa e seus principais subordinados (cerca de trinta) estão todos soltos, essa organização não foi desbaratada e continua atuando e, ainda por cima, está ameaçando (com chances reais) eleger seu grande líder novamente como presidente da República.
Continuemos o balanço. As organizações empresariais que participaram do esquema criminoso de poder do PT continuam funcionando, sob a direção de facto das mesmas famiglias que celebraram uma aliança estratégica com Lula (tal como Krupp e Ig-Farben fizeram com Hitler) esperando lucros incessantes a perder de vista caso o projeto criminoso de poder se eternizasse (numa espécie de “terceiro reich petista”). É o caso da Odebrecht e de outras empreiteiras. É o caso, escandaloso, da JBS (cujo acordo com Janot, o chefe do Ministério Público, em troca da deposição de um presidente constitucional, inaugurou no direito brasileiro um novo instituto: o da absolvição preventiva).
E qual será o final disso tudo? É claro que o final não poderá ser muito diferente daquele, tão lamentado, da operação Mãos Limpas, na Itália dos anos 1990. O sistema político vai se adaptar às novas circunstâncias e vai metabolizar as iniciativas de parte do Estado para reformá-lo. Sim, é exatamente isso o que vai acontecer, a menos que haja um levante, uma insurreição popular ao estilo jacobino, com legiões de sans-culottes cortando cabeças nas praças. Mas se houver isso, na base da antipolítica da pureza, um Termidor acabará, mais cedo do que mais tarde, com essas vãs (e anacrônicas) esperanças revolucionárias: algum Napoleão estará nos esperando na próxima esquina.
Isso significa que a Lava Jato é inútil? Não! No melhor cenário, alguma reforma sempre haverá. Todavia, por mais discursos inflamados que sejam feitos, ela será incremental. E não será feita sem política.
No pior cenário, porém, toda essa campanha de caça aos corruptos, vai igualar os criminosos comuns que infestam a política com os criminosos políticos que pretendem alterar o DNA da nossa democracia e bolivarianizar o nosso regime. E dois raciocínios se espalharão na população:
1) “Se todo mundo rouba, melhor o Lula, que pelo menos se preocupa com os pobres”
2) “Se todo mundo rouba, quem sabe não chegou a hora de eleger um outsider honesto e corajoso como Bolsonaro (para dar um curto-circuito no velho sistema que apodreceu)”
Ou seja, duas saídas autocráticas. Duas soluções prejudiciais à democracia. Delírio? Longe disso. É o que estão apontando todas as pesquisas de opinião.
A Lava Jato deve continuar no seu terreno próprio. Mas nós, os democratas, não podemos deixar que ela mate a política, nos transformando em torcedores.
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