in ,

É possível barrar a manipulação populista das mídias sociais

Vamos colocar os pingos nos is. A manipulação das mídias sociais é produto dos populistas, sejam de esquerda ou de extrema-direita. Agora os de extrema-direita tomaram a ofensiva, mas isso nem sempre foi assim.

A criação dos chamados MAVs (núcleos de Militância em Ambientes Virtuais) foi decidida no 4º Congresso do PT, em setembro de 2014. O encontro foi marcado por ataques à imprensa e pela defesa da “regulamentação dos meios de comunicação” (o tal controle social da mídia que, na verdade, era um controle partidário-governamental).

Na época o PT havia montado uma rede suja de sites e blogs, financiados com dinheiro público, inclusive via propaganda de estatais. As diretivas apareciam nesses veículos da rede suja e eram então replicadas nas mídias sociais pelos militantes.

Vejam abaixo um quadro de veículos dessa rede suja existente em 2014 (alguns ainda subsistem, não se sabe financiados por quem):Sobre isso, há três anos, escrevi no Facebook:

“Nada do que você faça poderá mudar a opinião de fanáticos. Quanto mais você mostrar as inconsistência das alegações que proferem, mais eles se aferrarão às suas narrativas. Porque, para eles, não existe necessidade de coerência entre as explicações e os fatos. Trata-se, simplesmente, de interpretar os eventos de acordo com sua visão da realidade. Mas não a realidade objetiva, que possa ser apreciada de modo congruente por sujeitos distintos, pois para esse tipo de abordagem do mundo o próprio conceito de realidade é dispensável. Isso se sabe. O problema é quando o fanatismo é instrumentalizado, por pessoas que não são fanáticas, para arrebanhar seguidores e combater inimigos. Esta é situação da rede suja de sites que era financiada com dinheiro público e patrocínio de estatais. Seus redatores não são fanáticos, são apenas amoralistas que se aproveitam do fanatismo alheio para faturar alguma grana ou obter vantagens…. O mecanismo é simples: eles cunham e publicam uma versão falsa, todos eles se repetem e vêm em seguida os fanáticos replicando tudo nas mídias sociais. Agora é preciso descobrir e denunciar o seguinte. Com o declínio do financiamento estatal, como se sustentam hoje veículos sujos como Brasil 247, Opera Mundi, Correio do Brasil, Revista Forum, Carta Capital, Pragmatismo Político, O Cafezinho, Plantão Brasil, Conversa Afiada, GGN, Rede Brasil Atual, Diário do Centro do Mundo, Viomundo, Brasil de Fato, Caros Amigos, Carta Maior, Tijolaço, Outras Palavras, Mídia Ninja e tantos outros? Há fortes indícios que alguns deles recebem dinheiro do crime. Eis uma investigação que não deve parar”.

O PT fazia isso não porque era comunista e sim porque era populista. O lulopetismo é um neopopulismo, subversor da democracia como qualquer populismo contemporâneo, i-liberal e majoritarista.

Agora apareceram outros populistas que aperfeiçoaram e escalaram a manipulação: os populistas-autoritários de extrema-direita, bolsonaristas – que são, igualmente, i-liberais e majoritaristas.

Os bolsonaristas fazem isso não porque sejam fascistas (embora tenham comportamento fascistoide) e sim porque são… populistas.

As mídias sociais, capturadas pelo sharp power das grandes potências e por gangues de milicianos virtuais, alcançaram, porém, um nível de manipulação jamais visto. Tudo começou, aparentemente, com a netwar dos hackers comandados pelo regime de Putin e, em seguida, com o financiamento à campanha do Brexit, feita pela empresa de dados políticos de Robert Mercer, a Cambridge Analytica, usando a tecnologia de falsificação desenvolvida por Stephen Bannon. Depois o mesmo pacote de manipulação foi aplicado à eleição de Trump e oferecido a dezenas de populistas autoritários em várias partes do mundo (como Marine Le Pen, Matteo Salvini e Viktor Orbán, inclusive para Jair Bolsonaro).

Sim, Bolsonaro. A tecnologia de Bannon foi comprada também para a campanha de Bolsonaro, com a intermediação, segundo se diz, de Fabio Wajngarten, hoje no comando da Secom – Secretária Especial de Comunicação da Presidência da República.

Tudo isso foi feito de caso pensado. Há uma teoria de que a extrema-direita só pode chegar ao poder e implantar seu projeto antissistema se conseguir fugir das mídias tradicionais, que estariam controladas pelos comunistas, pelos globalistas, enfim, pelo establishment.

Vejam o que escreveu sobre isso o chanceler olavista de Bolsonaro, Ernesto Araújo, em um paper do final de 2017:

“Trump e sua proposta de reconexão com o patrimônio mítico do passado ocidental não seria possível, paradoxalmente, sem a internet. A internet, se por um lado constituiu o paroxismo da globalização e do desenraizamento do indivíduo, por outro pode tornar-se o instrumento que produz o fim da globalização, pois permite a volta do indivíduo à esfera política e o retorno de ideias e maneiras de pensar que já não tinham nenhum lugar na mídia oficial controlada pelo programa politicamente correto, inclusive o sentimento nacional, o princípio nacional de organização espontânea da sociedade. O mundo do discurso vinha‑se transformando em um enorme dictionnaire des idées reçues como chamava Flaubert, em um Newspeak como imaginou Orwell. A internet veio para rasgar esse dicionário, recuperar a língua e reabrir o espaço simbólico não controlado pelo estado ou pelas forças políticas oficiais”.

Não se trata, portanto, de uma via lateral. A manipulação das mídias sociais é o eixo da estratégia dos populistas-autoritários. No Brasil ela não é comandada por alguma ala ideológica, radical, do bolsonarismo e sim pelo próprio núcleo duro do governo: Jair Bolsonaro, seus filhos, seu guru e seus sequazes.

Diariamente, pelo menos três fatwas são emitidas – em geral via grupos fechados de WhatsApp – para virarem artificialmente TT do Twitter e posts do Facebook e do Instagram. Eles também usam bots. Mas os bots não são o principal problema e sim as pessoas-bot (borgs): o bolsominion desmiolado, jovem e de meia idade, a tiazinha do zap, o aposentado que entrou tardiamente na política achando que era uma espécie de religião e o religioso (em geral evangélico) que resolveu fazer política como se fosse combatente de uma cruzada.

Manuel Castells, nosso velho parceiro, esteve no Rio de Janeiro, na última segunda-feira (15/07/2019), para um seminário. Na oportunidade concedeu uma entrevista à Paula Ferreira, de O Globo. Ele terminou assim a entrevista:

“As pessoas que querem estabelecer a verdade, a honestidade e os valores fundamentais humanos têm que intervir nas redes sociais, porque hoje em dia os que fazem isso são, sobretudo, os destruidores da Humanidade”.

Em um aspecto Castells tem razão: as mídias sociais foram colonizadas pelos populistas-autoritários que expressam valores anti-humanos. Mas a medida que Castells propõe é inútil e contraproducente (entendendo que ele se refere a “intervir nas redes sociais” como passar a comparecer nas mídias sociais fazendo um contraponto à extrema-direita que capturou essas ferramentas). As mídias sociais, pelo menos as atuais, não podem virar palco de uma guerra, pois é isso que alimenta a sua deturpação e retroalimenta o belicismo militante. A menos que apareçam novas ferramentas de netweaving – de articulação e animação de redes sociais (propriamente ditas) – menos vulneráveis à instrumentalização pelas grandes potências e das milícias virtuais organizadas – travar o combate no mesmo estilo adversarial, não é saída para nada.

Já há extensa literatura sobre o assunto. Ao final deste texto recomendo a leitura de alguns artigos de minha própria lavra e de outros de especialistas no tema (*).

Quem encarar seriamente o problema verá que não há como, a partir do usuário, neutralizar a manipulação das mídias sociais levada a efeito pelos populistas que as capturaram. A única solução depende dos proprietários dessas mídias, se quiserem adotar soluções simples como as que foram aplicadas pelo Instagram no Brasil.

A pressão do público tem de ser feita, portanto, sobre os dirigentes do WhatsApp, do Telegram, do Twitter, do Facebook, do Instagram e do Youtube. Com três ou quatro medidas que alterem as funcionalidades dessas mídias é possível neutralizar – ou reduzir sensivelmente – sua manipulação para propósitos antidemocráticos.

Basicamente é preciso desestimular o broadcasting e incentivar a interação, premiando a conversa e punindo a replicação de diretivas para conduzir rebanhos. Se isso for feito nas principais mídias sociais, o festival de manipulação tende a declinar rapidamente.

A manipulação em larga escala, por incrível que pareça, não é feita por muita gente. Por exemplo, todo o atual carnaval bolsonarista nas mídias sociais é feito por apenas cerca de 50 mil pessoas (que replicam diariamente e religiosamente cerca de três diretivas – na forma de hashtagsmemes, vídeo-memes ou pequenos discursos – emitidas por menos de 100 hubs – e sabemos quem são estes hubs, seus nomes e sobrenomes).

Para coibir a manipulação das mídias sociais, o WhatsApp e o Telegram deveriam eliminar a possibilidade do fluxo descendente em árvore, segundo uma topologia descentralizada. Para tanto, basta limitar drasticamente os grupos (o número de membros permitidos em cada grupo, o número de grupos e a possibilidade de abertura de grupos, não permitindo que pessoas que não tenham um histórico de interação com um número mínimo de pessoas de um grupo possam nele entrar). A justificativa é simples. Mídias sociais são feitas para conversar, não para para formar manadas.

Para coibir a manipulação das mídias sociais feita pelos populistas (de direita e de esquerda), o Twitter bem que poderia seguir o exemplo do Instagram e ampliá-lo: acabar não só com o registro de likes e compartilhamentos, mas também com os TT (diariamente falsificados). Sem os TT, acaba – pelo menos parcialmente – o esforço de subir artificialmente tags pré-fabricadas (pelo menos três por dia, como se constata hoje). Há, é claro, outras soluções mais sofisticadas, como mudar os algoritmos para captar reverberação (inaugurando uma outra linha TT, mais dinâmica, selecionada por tempo de emissão congruente, réplica e tréplica – esta última usada para medir a interatividade). Sugeri algumas dessas medidas no artigo As mídias sociais contra as redes sociais.

Além disso, o Youtube – como parece já estar querendo fazer – deve desmonetizar os vídeos políticos, sobretudo dos canais de hubs da rede descentralizada (hierarquizada) bolsonarista e também os canais dos neopopulistas petistas (e aliados).

Aqui começa o problema da solução. Pois algumas dessas medidas colidem com os modelos de negócios adotados pelas empresas que controlam essas mídias. Deve-se mostrar aos proprietários dessas empresas que seus modelos de negócios são incompatíveis com a natureza das suas tecnologias (que estão sendo pervertidas como instrumentos de broadcasting, vitrines para ricos, poderosos e famosos em geral – ou seja, não estão cumprindo sua função própria de mídias interativas). Mark Zuckerberg parece ter entendido o problema quando proclamou querer redirecionar o Facebook para servir de instrumento de formação de comunidades. E ele comanda, além do Face, o WhatsApp e o Instagram. Mas entre entender o problema, visualizar um horizonte ideal e tomar medidas práticas para modificar as principais funcionalidades de suas tecnologias, vai uma distância enorme.

No entanto, deve-se mostrar que a questão é bem mais séria e chamar à responsabilidade os proprietários das principais mídias sociais com o aviso de que suas tecnologias estão permitindo o maior ataque já feito à democracia em toda a história.


(*) Pode-se ler, para começar, os seguintes artigos:


Leia mais em http://democracia.org.br

Comentários à decepcionante entrevista de Manuel Castells

Por que é necessário parar Bolsonaro