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Meus artigos de agosto de 2023 na Crusoé

No Reino do Bricstão

Augusto de Franco, Crusoé (01/09/2023)

Na sua viagem à África do Sul, para a cúpula do Brics, Lula declarou: “Agora, você pode fazer uma reunião do Brics com o G7 em condições de superioridade porque o PIB, na paridade de compra, os Brics tem mais”.

Quer dizer que os BRICS – ao contrário do que o próprio Lula declarou horas antes de proferir a fala acima – são para se contrapor ao G7? O que Lula entende por “superioridade”? Nas ditaduras reunidas no Brics há mais direitos políticos e liberdades civis do que nos países do G7? Há mais inovação tecnológica e social? A renda (o PIB per capita) é maior do que nas democracias liberais?

Vejamos.

NOS DIREITOS POLÍTICOS E NAS LIBERDADES CIVIS

Dos 20 países com mais direitos políticos e liberdades civis no ranking da Freedom House (FH 2023), todos (ou quase todos) são democracias liberais (V-Dem) ou plenas (The Economist Intelligence Unit – EIU 2023). Obviamente nenhum deles faz parte do Reino do Bricstão.

1 Finlândia

2 Noruega

3 Suécia

4 Nova Zelândia

5 Canadá

6 Dinamarca

7 Irlanda

8 Luxemburgo

9 Holanda

10 Bélgica

11 Japão

12 Portugal

13 Suíça

14 Uruguai

15 Austrália

16 Eslovênia

17 Barbados

18 Chile

19 Estônia

20 Alemanha

NA INOVAÇÃO

Entre os 10 primeiros colocados no ranking do IGI – Índice Global de Inovação 2022 da OMPI (Organização Mundial da Propriedade Intelectual) – só um não é uma democracia liberal (Singapura, o eterno ponto fora da curva e a exceção que confirma todas as regras). Mas, novamente, não aparece no ranking nenhum país do Reino do Bricstão.

1 Suíça

2 EUA

3 Suécia

4 Reino Unido

5 Holanda

6 Coreia do Sul

7 Singapura

8 Alemanha

9 Finlândia

10 Dinamarca

NA RENDA PER CAPITA

A renda per capita média do Brics inflado (US$ PPP 2020) é 20.898. A renda per capita média das democracias plenas (sem Taiwan, porque a China se apropria dos índices) é 48.917. Só uma ditadura, das que foram recentemente incluídas no grupo – os Emirados Árabes Unidos –, tem uma renda acima desse valor. Sim, no ranking dos 27 países com renda per capita (US$ PPP 2020), acima de 40 mil dólares, 20 são democracias liberais ou plenas e apenas 7 são autocracias:

1 Luxemburgo: 112.557

2 Singapura: 93.397

3 Irlanda: 90.789

4 Qatar: 85.290

5 Suíça: 68.755

6 Noruega: 63.548

7 Emirados Árabes Unidos: 63,299

8 EUA: 59.920

9 Hong Kong: 56.154

10 Dinamarca: 55.820

11 Holanda: 54.324

12 Islândia: 52.376

13 Áustria: 51.858

14 Alemanha: 51.423

15 Suécia: 50.923

16 Bélgica: 48.770

17 Austrália: 48.679

18 Finlândia: 47.154

19 Canadá: 46.064

20 Kuwait: 44.847

21 Arábia Saudita: 44.328

22 Nova Zelândia: 42.775

23 Reino Unido: 42.676

24 Coréia do Sul: 42.336

25 França: 42.321

26 Barein: 41.481

27 Japão: 40.232

O QUE É NA VERDADE O BRICSTÃO

Por que o Brasil se alinha a esses países tão “atrasados” – em democracia, em inovação e em renda per capita – do Reino do Bricstão? A justificativa dos militantes lulopetistas é que os BRICS são apenas um acordo econômico “para o Brasil vender mais”. Mas é falsa! O próprio Lula falou várias vezes que os Brics deveriam intervir para forçar uma paz na Ucrânia. E falou também (tem vídeo) que a aproximação com ditaduras como a China não é só comercial, mas estratégica (principalmente geopolítica).

Com efeito, no dia 14 de abril de 2023, em viagem de rendição simbólica  à China, Lula declarou:

“A compreensão que o meu governo tem da China é a de que temos que trabalhar muito para que a relação Brasil-China não seja meramente de interesse comercial… Queremos que a relação Brasil-China transcenda a questão comercial… [para] elevar o patamar da parceria estratégica e, junto com a China, equilibrar a geopolítica mundial”.

Fica claro que o BRICS inflado não é outra coisa: é o mesmo delírio do Sul Global. O Bricstão é o embrião de um bloco autocrático de ditaduras (autocracias eleitorais e autocracias fechadas) e de democracias (apenas) eleitorais (não-liberais) parasitadas por populismos e capturadas pelas maiores tiranias do planeta para combater as democracias liberais (sob o pretexto anacrônico e risível de que é preciso derrotar o imperialismo norte-americano e o suposto neocolonialismo europeu).

NÃO É SÓ EUA X CHINA

O fato é que uma segunda grande guerra fria já começou. Claro que ela não se parecerá com a primeira: é outra coisa. E não é apenas EUA X China, como se repete. Estamos diante de uma campanha de exterminação das democracias liberais.

Quando tudo passa a ser China – num modelo explicativo pedestre (porque a China é populosa, porque a China é uma potência econômica e militar que vai ultrapassar os Estados Unidos, porque a China manda na Ásia e na África etc.) o que se esquece com isso?

a) Com isso se esquece que há um eixo autocrático em formação articulando dezenas de países.

b) Com isso se esquece que existem hoje no mundo, segundo o V-Dem, 89 ditaduras (56 autocracias eleitorais e 33 autocracias fechadas), para não falar das 58 democracias (apenas) eleitorais, não liberais, que estão sendo disputadas para ser capturadas pelo eixo autocrático.

c) Com isso se esquece que os populismos, digam-se de esquerda ou de direita, objetivamente, estão tentando levar os regimes que parasitam a se alinharem ao eixo autocrático.

d) Com isso se esquece que, escondido dentro do eixo autocrático, há um projeto de império neoeurasiano capitaneado pela Rússia que, conquanto alucinado, busca juntar Armênia, Belarus, Cazaquistão, Quirguistão, Tadjiquistão, Sérvia, Irã, Síria e anexar ou colonizar Ucrânia, Geórgia, Moldávia, Polônia, Finlândia e os países bálticos.

e) Com isso se esquece – o mais importante – que o eixo autocrático tem por objetivo principal destruir as democracias liberais ou plenas, reduzidas hoje a menos de quatro dezenas de países. A união das 32 democracias liberais (segundo o V-Dem) com as 24 democracias plenas (segundo a The Economist Intelligence Unit) fornece a seguinte lista dos 35 alvos prioritários atuais ou inimigos principais das tiranias: Alemanha, Australia, Austria, Barbados, Belgica, Canadá, Chile, Chipre, Coreia do Sul, Costa Rica, Dinamarca, Eslováquia, Espanha, Estados Unidos, Estônia, Finlândia, França, Holanda, Irlanda, Islândia, Israel, Itália, Japão, Letônia, Luxemburgo, Maurício, Noruega, Nova Zelândia, Reino Unido, República Checa, Seicheles, Suécia, Suíça, Taiwan e Uruguai.

É para preocupar? Sim, e muito. Os democratas são acentuada minoria no mundo atual. Vivem em democracias plenas apenas 631 milhões de pessoas. O que dá menos de 8% da população mundial.


Um predador à solta

Augusto de Franco, Crusoé (18/08/2023)

Jair Bolsonaro foi uma ameaça à democracia. Uma ameaça mais social do que política. Ao revirar a lama que estava decantada no poço da cultura patriarcal, deixando que preconceitos e discriminações incivis viessem à tona, atacou o tipo de sociabilidade que permite a democracia. Ele só pôde fazer isso porque (1) esses padrões autocráticos já estavam presentes — conquanto recalcados no subsolo das consciências — em extensas parcelas da população e (2) houve uma conjunção aziaga de fatores políticos que permitiram que as campas funerárias fossem abertas.

Dentre os fatores políticos que ensejaram a golfada bolsonarista, merece destaque a degeneração da política democrática como continuação da guerra por outros meios. Já havia outro predador à solta, uma força populista vincando a sociedade com uma dinâmica “nós” contra “eles”.

Mas não é razoável esperar que os demônios que o bolsonarismo despertou vão continuar nos assombrando até o fim dos tempos. A menos que queiramos manter viva a polarização, encenando aqueles “dois minutos de ódio” (do 1984 de George Orwell) para coesionar uma legião de fiéis vingadores.

Na base da vingança, entretanto, não haverá solução. Só a dinâmica democrática será capaz de metabolizar essas forças avessas à convivência pacífica e humanizante (não querendo matá-las, mas remetendo-as novamente aos subterrâneos da vida civil — de onde não deveriam ter escapado). Padrões autocráticos, por certo, remanescerão, mas na esfera privada, não mais aceitos como categorias operativas da política na esfera pública. Assim, não serão mais normalizados preconceitos e discriminações que tornem o ambiente incivil.

Mas o bolsonarismo não continuará sendo uma ameaça à democracia?

Continuará sendo, mas menos. Pois o problema não são os cerca de 15% de bolsonaristas que queriam dar um golpe de Estado. Esse número de golpistas antidemocráticos ainda é metabolizável pela democracia. E os que, dentre esses, violaram as leis devem ser responsabilizados judicialmente. O problema são os outros 34% dos eleitores de Bolsonaro que não queriam dar golpe de Estado nenhum; apenas não queriam que Lula e o PT voltassem ao poder. É um problema para a estabilidade da nossa democracia porque esses últimos podem tomar as dores dos primeiros, se acharem que aqueles não estão sendo corretamente incriminados com base na Justiça, e sim perseguidos por vingança. Se isso ocorrer — e dirigentes governamentais continuarem dando declarações que soam revanchistas —, não haverá pacificação. E se não houver pacificação a democracia perderá legitimidade. Muitos poderão concluir que, se a democracia é um regime que permite isso, não vale mais a pena defendê-la.

É bom não forçar a barra. O Brasil não tem 58.206.322 fascistas, que queriam dar um golpe de Estado. A maioria desse pessoal (cerca de 40 milhões) votou em Bolsonaro em parte porque o admirava mesmo e em parte porque não queria — por diversos motivos — que Lula e o PT voltassem ao governo, mas essa maioria não é composta principalmente por fiéis adeptos do populismo-autoritário bolsonarista. E os 60.345.825 que votaram em Lula não são fiéis seguidores do neopopulismo lulopetista. Cerca, talvez, de uns 17 a 20 milhões apenas não queriam — também por vários motivos — que Bolsonaro fosse reeleito.

Isso significa que boa parte dos eleitores que compareceram às urnas de 2022 (talvez até a metade, um pouco mais, um pouco menos) está num campo favorável ao florescimento de uma oposição democrática aos dois populismos (de extrema direita e de esquerda) que polarizam o cenário político. Sem falar nos nulos e brancos (e, claro, nas abstenções que não foram computadas aqui). Tudo isso é estimativa, claro. Não há pesquisas. Este artigo está baseado na avaliação corrente de que os bolsonaristas-raiz representam aproximadamente 15% dos eleitores de Bolsonaro e de que os votos petistas somam mais ou menos 30% do eleitorado que votou em 2022 (no segundo turno).

A questão central aqui é o predador à solta.

Nem a democracia dinamarquesa, uma das mais bem avaliadas por todos os institutos que monitoram os regimes políticos no mundo, magistralmente retratada na série Borgen da Netflix (Søren Kragh-Jacobsen e Rumle Hammerich, 2010-2022), teria proteção eficaz contra a entrada em cena de um tipo de predador: um partido populista que usa as eleições não como parte do metabolismo democrático, mas como meio para travar uma guerra com o fito de tomar e reter o poder. Esse predador, no caso do Brasil deste século, é o PT.

Conquanto o bolsonarismo tenha sido e continue sendo uma ameaça social (ou antissocial, como diria Maturana), a maior ameaça propriamente política à democracia liberal no Brasil é constituída pelo lulopetismo, por várias razões:

• seja porque está no governo (e, como sabemos, nenhum governo populista permite que um regime eleitoral vire uma democracia liberal ou plena);

• seja porque tem um partido “com cabeça, tronco e membros” (como descreveu Lula, involuntariamente revelando que há uma cabeça — um partido interno — que se distingue da massa de simpatizantes e eleitores, o partido externo);

• seja porque tem uma base social organizada (mídias que viraram chapa-branca e institutos de pesquisa de opinião simpáticos, universidades, corporações, movimentos sociais, ONGs, além de ativos de juristas, de artistas famosos etc.);

• seja porque tem um líder capaz de apadrinhar e mesmerizar os que vivem em situação de pobreza ou extrema-pobreza;

• seja porque tem uma estratégia desenhada (inclusive no plano internacional, de aliança com as maiores autocracias do planeta contra a coalizão das democracias liberais) e uma narrativa contraliberal consolidada (que tenta substituir o conceito de democracia pelo conceito de cidadania).

Esse predador continuará à solta enquanto não se conformar um centro democrático capaz de lhe fazer oposição para valer.


Um governo dentro do governo

Augusto de Franco, Crusoé (04/08/2023)

O noticiário e as análises políticas versam hoje, invariavelmente, sobre o suposto direito divino do presidente da República de fazer maioria no Parlamento e de acomodar o Centrão para conquistar, mesmo que de modo pouco decente, tal maioria. E aí começa a festa de especular sobre indicações de ministros e de titulares para outros cargos no governo. Na imprensa, quase ninguém pergunta o que os novos indicados vão fazer, quais os seus planos para as pastas que assumirão. Nem se pergunta para que o governo tanto quer maioria, na ausência de propostas.

A explicação para esse desarrazoado é simples. Há um governo dentro do governo. O governo que conta de verdade (o governo estratégico) é o do PT e de seus aliados mais próximos de esquerda (como o camarada Dino). É para que esse governo interno possa realizar seus projetos, muitos dos quais também não anunciados (justamente, talvez, por serem estratégicos), que o governo externo (o governo tático) está sendo formado na base da negociação por cargos, emendas, verbas e outras vantagens. E aí tanto faz quem entra ou quem sai, desde que entregue votos no Parlamento e não atrapalhe o arranjo para viabilizar o funcionamento (em parte visível, em parte oculto) do governo estratégico.

Agora temos o caso momentoso da indicação do presidente do IBGE. Aqui não se trata do governo externo, e sim do governo interno. É ilustrativo para mostrar com que grau de desprezo Lula e o PT tratam o governo externo. O problema maior da nomeação de Marcio Pochmann nem tem a ver com ele (um doidivanas da esquerda marxista da Guerra Fria), e sim com a prática hegemonista do PT de aparelhar o Estado, impor sua vontade e desrespeitar seus aliados.

É batata! Aliados do PT são sempre mortos ao final. Sim, o PT faz alianças não porque isso seja correto e normal na prática democrática — por ter consciência de que uma força política sozinha não pode dar conta de captar, nem expressar, a diversidade política da sociedade —, mas apenas para ficar mais forte e, alcançados seus objetivos particulares, matar seus aliados ao final. Uma dessas aliadas, já com a morte prenunciada, se chama Simone Tebet: aquela que só é mantida como enfeite da inexistente frente ampla. Mantida, esclareça-se, enquanto continuar se subordinando.

O PT segue a máxima autocrática: os inimigos (em geral construídos) o fortalecem, os aliados o enfraquecem. Aqui se revela por que o foco do PT não é extirpar os bolsonaristas. Isso é só no discurso (de Lula). Uma minoria bolsonarista sectária é providencial para os planos do PT, para manter viva a polarização “nós contra eles”. O foco é, na verdade, tirar o oxigênio dos democratas liberais, para que eles virem aliados subordinados do partido. Uma legião de Simones.

Sim, parece evidente hoje que Lula não vai pacificar o país, como falsamente prometeu, e sim investir cada vez mais na guerra do “nós contra eles”, mantendo vivo o bolsonarismo como pretexto para inculpar qualquer oposição, mesmo democrática, por tentativas de golpe de Estado, acusando todos que a ele não se subordinam de fascistas ou neofascistas. No dia em que Simone deixar de se subordinar — se é que isso ainda pode vir a acontecer —, ela virará automaticamente fascista.

Tudo isso decorre de uma farsa que está sendo construída. Nosso presidente e o seu partido são populistas e, como tais, acham que nada deve ficar no seu caminho. Lula perdeu as eleições em quatro das cinco regiões do país, venceu por menos de 2% dos votos, mas arrota como se tivesse sido consagrado pelo povo do Brasil inteiro com mais de 80% dos votos.

A farsa de Lula e do PT é jogar com a força que não têm. Por isso querem exterminar aqueles (como os democratas liberais) que, não se conformando em ser subordinados, são capazes de denunciar a farsa. E tudo para quê? Ora, para que o governo interno (francamente minoritário) possa continuar a implementar sua estratégia (contra a vontade política coletiva). Vejamos alguns exemplos.

Lula e o PT não vão recuar de suas propostas insanas de aliar o país ao eixo das grandes autocracias do planeta contra a coalizão das democracias liberais, de apoiar as ditaduras de esquerda e os governos parasitados por forças neopopulistas amigas.

Lula e o PT não vão desistir de querer mandar em tudo, mantendo uma luta sem quartel e sem sentido contra a autonomia do Banco Central, das agências reguladoras e de outros órgãos de Estado.

Lula e o PT vão continuar usando o BNDES, a Petrobras e outras estatais para fazer (a sua) política, atropelando as boas práticas empresariais e de mercado.

Lula e o PT não vão cortar gastos e aumentar a eficiência da máquina estatal, e sim, ao contrário, gastar mais para forçar um voo de galinha do PIB que garanta a Lula mais uma reeleição.

Lula e o PT não vão sossegar enquanto não transformarem a imprensa em uma espécie de assessoria de imprensa, incorporando-a como peça do seu esquema de governabilidade. Para tanto, o seu movimento principal é extirpar dos grandes e pequenos meios de comunicação (tradicionais e sociais) os democratas liberais e todos que ousarem expressar posições críticas ao governo. Percebem-se sinais (ainda fracos, mas não tanto) de que isso já está ocorrendo.

“Zonas Azuis” de democracia como modo-de-vida

Dez narrativas lulopetistas para reescrever a história