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“Zonas Azuis” de democracia como modo-de-vida

Terminei ontem de assistir a série “Como viver até os 100: os segredos das Zonas Azuis”, da Netflix (2023), com apenas 4 episódios. Muitos dos achados de Dan Buettner (o promotor e apresentador da série) já haviam sido descobertos com a ajuda da nova ciência das redes, estudando o segredo de Roseto (publiquei um artigo sobre isso no início de 2009 – reproduzido abaixo): rede, comunidade, o papel dos laços fracos.

Agora vejam. Esse “segredo” que Dan descobriu investigando a concentração desproporcional de centenários nas localidades de Okinawa (Japão), Sardenha (Itália), Icária (Grécia), Nicoya (Costa Rica) e Loma Linda, na Califórnia (EUA), além de Singapura, é uma fonte preciosíssima de sugestões para ensaios de democracia como modo-de-vida. Ele tentou instalar várias Zonas Azuis nos EUA (não se sabe exatamente com que sucesso) para aumentar a qualidade de vida das pessoas (sobretudo das mais idosas, mas não só). Talvez o mesmo possa ser feito para aumentar a qualidade de convivência social de cidades (como redes de comunidades). Ora, isso pode ser equivalente, nos dias que correm, a experimentar a democracia como modo-de-vida, como será comentado no final deste artigo.

Antes, porém, o artigo de 2009.

O MISTÉRIO DE ROSETO

Estou lendo o último livro de Malcolm Gladwell (2008), intitulado Outliers (cuja tradução brasileira – Rio de Janeiro: Sextante, 2008 – recebeu o nome de “Fora de Série”). [O livro está disponível para download no link Fora de Serie – Outliers – Malcolm Gladwell]

Não está me parecendo tão bom quanto o seu livro de 2000, Tipping Point, publicado no Brasil como “O ponto de desequilíbrio” (Rio de Janeiro: Rocco, 2002). Com uma ressalva, porém: a introdução – intitulada “O mistério de Roseto” – conta uma história fascinante e surpreendente. Para quem trabalha com capital social (ou redes sociais), o texto é revelador das potencialidades das configurações coletivas de fluxos que caracterizam uma comunidade.

Transcrevo abaixo na íntegra a referida introdução para depois aduzir alguns breves comentários.

O mistério de Roseto, por Malcolm Gladwell (2008)

Roseto destaca-se das pequenas cidades da Pensilvânia pelo grau de interesse acadêmico que atraiu. John G. Bruhn e Stewart Wolf publicaram dois livros sobre seu trabalho em Roseto: The Roseto story (Norman: University of Oklahoma Press, 1979) e The power of clan: the influence of human relationships on heart disease (News Brunswick: Transactio Publishers, 1993). Para uma comparação entre Roseto, Valfortore, Itália e Roseto, Pensilvânia, Estados Unidos, veja Carla Bianco: The two Rosetos (Bloomington: Indiana University Press, 1974).

Roseto Valfortore situa-se 169Km a sudeste de Roma, nos contrafortes dos Apeninos, na província italiana de Foggia. No estilo das aldeias medievais, a cidade se organiza em torno de uma grande praça central. Diante dela está o Palazzo Marchesale, o palácio da família Saggese, no passado a maior proprietária de terras da região. Uma arcada lateral conduz a uma igreja, a Madonna del Carmine – Nossa Senhora do Monte Carmine. Degraus de pedra estreitos sobem as encostas dos montes, flanqueados por grupos de casas de pedra de dois andares e telhas vermelhas.

Durante séculos, os paesani, ou camponeses, de Roseto trabalharam nas pedreiras de mármore das montanhas em torno da cidade ou cultivaram os campos no vale abaixo, descendo de 6 a 8km de manhã e, depois, fazendo o longo percurso de volta à noite. A vida era dura. Os moradores desse lugar mal sabiam ler, eram paupérrimos e não tinham muita esperança de melhorar economicamente. Foi quando no final do século XIX chegou à região a notícia de que havia uma terra de oportunidades do outro lado do oceano.

Em janeiro de 1882, um grupo de 11 moradores da cidade – 10 homens e um menino – zarparam para Nova York. Passaram a primeira noite nos Estados Unidos dormindo no chão de uma taverna em Mulberry Street, na Pequena Itália de Manhattan. Depois se aventuraram para o oeste, até encontrarem trabalho numa pedreira de ardósia a 145Km da cidade, perto de Bangor, Pensilvânia. No ano seguinte, mais 15 pessoas de Roseto trocaram a Itália pela América, e vários membros desse grupo foram se juntar aos que já haviam chegado. Esses novos imigrantes, por sua vez, enviaram notícias a Roseto sobre a promessa do Novo Mundo. Em pouco tempo, outros grupos de conterrâneos seus começaram a fazer as malas e rumar para a Pensilvânia. O pequeno fluxo inicial de imigrantes acabou se transformando numa torrente. Em 1894, cerca de 1.200 habitantes de Roseto solicitaram passaportes para os Estados Unidos, deixando ruas inteiras de sua cidade natal completamente abandonadas.

Essas pessoas começaram a comprar terras numa encosta rochosa, ligada a Bangor por apenas uma trilha de carroça íngreme e sulcada. Construíram grupos de casas de pedra de dois andares, com tetos de ardósia, em ruas estreitas que se estendiam de alto a baixo na encosta. Ergueram uma igreja e batizaram-na de Nossa Senhora do Monte Carmelo. A via principal onde ela se localizava ganhou o nome de avenida Garibaldi, em homenagem ao grande herói da unificação italiana. No princípio, chamaram sua cidade de Nova Itália. Mas logo mudaram o nome para Roseto, que pareceu mais apropriado, pois quase todos os seus moradores eram procedentes da mesma aldeia na Itália.

Em 1896, um jovem e dinâmico sacerdote – padre Pasquale de Nisco – assumiu a Igreja de Nossa Senhora do Monte Carmelo. De Nisco criou sociedades espirituais e organizou festas. Incentivou as pessoas a limpar os terrenos e plantar cebola, feijão, batata e árvores frutíferas nos grandes quintais de suas casas. Distribuiu sementes e mudas. Roseto ganhou vida. A população passou a criar porcos e a cultivar uvas para o vinho caseiro. Escolas, um parque, um convento e um cemitério foram construídos. Pequenas lojas, confeitarias, restaurantes e bares começaram a se instalar ao longo da Avenida Garibaldi. Mais de 12 fábricas surgiram, produzindo blusas para o comércio de roupas.

Na vizinha Bangor, a população era predominantemente galesa e inglesa. Na outra cidade mais próxima, a concentração era de alemães. Dadas as relações hostis entre ingleses, alemães e italianos naquela época, Roseto continuou a abrigar exclusivamente sua própria população. Quem subisse e descesse suas ruas nas primeira décadas do século XX ouviria apenas italiano, mas não qualquer italiano – somente o típico dialeto sulista de Foggia, falado na Roseto européia. A Roseto americana era seu próprio mundo minúsculo e auto-suficiente – praticamente desconhecido pela sociedade em volta. E poderia ter permanecido assim não fosse um homem chamado Stewart Wolf.

Wolf era médico. Especialista em estômago e digestão, lecionava na Faculdade de Medicina da Universidade de Oklahoma. Passava os verões numa fazenda na Pensilvânia, não longe de Roseto – embora isso não significasse grande coisa, pois a cidade estava tão concentrada em seu próprio mundo que era possível morar ao lado e não saber muito sobre ela. “Certa cez – acho que no final da década de 1950 –, eu estava lá e fui convidado para dar uma palestra na sociedade médica local”, Wolf contou, anos depois, numa entrevista. “Após a apresentação, um dos médicos me chamou para tomar uma cerveja. Enquanto bebíamos, ele disse: ‘Pratico a medicina há 17 anos. Recebo pacientes de toda a região, mas raramente encontro alguém de Roseto com menos de 65 anos que tenha doença cardíaca.”

Wolf ficou surpreso. Tratava-se da década de 1950, anos antes do advento dos remédios que reduzem o colesterol e das rigorosas medidas de prevenção de problemas cardíacos. Os infartos constituíam uma epidemia nos Estados Unidos – eram a principal causa de mortes em homens com menos de 65 anos. A experiência mostrava que era impossível ser médico naquela época e não se deparar com esse tipo de doença.

Wolf decidiu investigar. Conseguiu o apoio de alguns alunos e colegas da Universidade de Oklahoma. Eles reuniram os atestados de óbito dos moradores da cidade, procurando os mais antigos que conseguissem obter. Analisaram os registros médicos, leram os históricos e traçaram as genealogias das famílias. “Decidimos fazer um estudo preliminar. Começamos em 1961. O prefeito permitiu que usássemos a sala do conselho municipal. Instalamos pequenas cabines para coletar sangue e fazer eletrocardiogramas. Ficamos lá durante quatro semanas. Depois, as autoridades nos cederam a escola, onde trabalhamos durante o verão. Convidamos a população inteira de Roseto para ser testada”, conta Wolf.

Os resultados foram surpreendentes. Em Roseto, quase ninguém com menos de 55 anos havia morrido de ataque cardíaco ou mostrava sintomas de problemas do coração. Para homens acima de 65 anos, a taxa de mortalidade por doença cardíaca era cerca de metade da que se registrava nos Estados Unidos de modo geral. Além disso, a taxa de mortalidade por todas as causas naquela cidade era, espantosamente, 30 a 35% menor do que o estimado.

Wolf convidou para ajudá-lo o amigo John Bruhn, sociólogo da Universidade de Oklahoma. “Contratei estudantes de medicina e alunos de sociologia como entrevistadores. Fomos de casa em casa em Roseto. Conversamos com toda pessoa maior de 21 anos”, Bruhn se lembra. Embora isso tenha acontecido há mais de 50 anos, ele deixou escapar uma sensação de espanto ao mencionar o que descobrira. “Não havia suicídios, alcoolismo nem vício de drogas. O número de crimes era mínimo. Ninguém dependia da previdência social. Então procuramos casos de úlcera péptica. Não havia. Aquelas pessoas estavam morrendo de velhice. Nada mais.”

Os colegas de profissão de Wolf tinham um nome para um lugar como Roseto – uma cidade que estava à margem da experiência do dia-a-dia, onde as regras normais não se aplicavam. Roseto era uma outlier.

A primeira hipótese imaginada por Wolf foi a de que os habitantes de Roseto seguiam práticas alimentares do Velho Mundo que os tornavam mais saudáveis do que os demais americanos. Mas em pouco tempo ele constatou que isso não era verdade. Aquelas pessoas cozinhavam com banha de porco, e não com azeite de oliva, a saudável opção usada na cozinha mediterrânea. Na Itália, a pizza era uma crosta fina com sal, azeite e talvez anchovas, tomate e cebola. Na Pensilvânia, ela combinava massa de pão com salsicha, pepperoni, salame, presunto e às vezes ovos. Doces como biscotti e taralli, que na Itália costumavam ser reservados para o Natal e a Páscoa, em Roseto eram consumidos o ano inteiro. Quando Wolf pediu que nutricionistas analisassem os hábitos alimentares da população local, constatou que 41% das calorias – uma porcentagem imensa – eram provenientes de gorduras. E nenhum morador daquela cidade acordava de madrugada para praticar yoga ou correr 10Km. Muitos eram fumantes inveterados e enfrentavam obesidade.

Se a causa daquela saúde acima da média não estava na dieta nem na prática de exercícios físicos, estaria então na genética? Como aquelas pessoas constituíam um grupo coeso originário da mesma região da Itália, Wolf passou a considerar a possibilidade de que elas pertencessem a uma estirpe particularmente robusta, com grande resistência a doenças. Então, rastreou parentes desses indivíduos em outras regiões dos Estados Unidos para ver se eles compartilhavam a saúde notável dos primos da Pensilvânia. Não foi o caso.

Wolf examinou em seguida a própria região de Roseto. Será que viver nos contrafortes do lesta da Pensilvânia poderia oferecer algum benefício à saúde? As duas cidades mais próximas dali eram Bangor, situada um pouco abaixo dos montes, e Nazareth, a alguns quilômetros de distância. Ambas tinham mais ou menos o tamanho de Roseto e eram habitadas por imigrantes europeus também muito trabalhadores. Wolf examinou os registros médicos das duas cidades. Para homens acima de 65 anos, as taxas de mortalidade por doenças cardíacas em Nazareth e Bangor eram cerca de três vezes mais altas do que em Roseto. Outra pista falsa.

Wolf passou a desconfiar de que o segredo de Roseto não era nada que haviam imaginado, como dieta, exercícios físicos, genes e geografia – tinha que ser a própria Roseto. À medida que começaram a caminhar pela cidade e a falar com os moradores, Wolf e Bruhn descobriram o motivo. Observaram como as pessoas interagiam, parando para conversar em italiano na rua ou cozinhando umas para as outras nos quintais. Tomaram conhecimento dos clãs familiares que se mantinham sob a estrutura social do lugar. Viram como em muitas casas três gerações moravam sob o mesmo teto – e o respeito dedicado aos avós. Foram à missa na Igreja Nossa Senhora do Monte Carmelo e observaram o efeito unificador e calmante daquele ambiente. Contaram 22 organizações cívicas em uma cidade com pouco menos de 2 mil pessoas. Perceberam o espírito igualitário particular da comunidade, que desestimulava os ricos a ostentar o sucesso e ajudava os malsucedidos a encobrir seus fracassos.

Ao transplantarem a cultura paesani do sul da Itália para os montes do lesta da Pensilvânia, aquelas pessoas criaram uma estrutura social altamente protetora que era capaz de isolá-las das pressões do mundo moderno. Elas eram saudáveis por causa do lugar onde viviam, do mundo que haviam criado para si mesmas em sua minúscula cidade nas montanhas.

“Ainda me lembro de quando fui a Roseto pela primeira vez. Naquela época víamos três gerações reunidas nas refeições em família. Havia todas aquelas padarias, as pessoas subindo e descendo as ruas, sentando-se nas varandas para conversar umas com as outras, as fábricas de blusas onde as mulheres trabalhavam durante o dia enquanto os homens se ocupavam nas pedreiras de ardósia. Aquilo era mágico”, diz Bruhn.

Quando Bruhn e Wolf apresentaram suas descobertas à comunidade médica, enfrentaram uma grande reação de ceticismo. Eles participaram de conferências em que seus colegas estavam exibindo longas relações de dados, dispostos em gráficos complexos, para se referir a um tipo específico de gene ou de processo fisiológico. Eles, por sua vez, estavam falando dos benefícios misteriosos e mágicos de parar para conversar com as pessoas na rua e dos efeitos positivos de familiares de três gerações de viverem sob o mesmo teto. Segundo o pensamento convencional da época, uma vida longa dependia, em grande parte, de quem éramos, ou seja, de nossos genes. E também das decisões que tomávamos em relação à escolha dos alimentos, da nossa opção quanto à prática de exercícios físicos e, ainda, da eficácia do sistema médico. Ninguém estava acostumado a associar a saúde à comunidade.

Wolf e Bruhn tiveram que convencer a área médica a pensar na saúde e nas doenças cardíacas de um modo totalmente diferente. Afinal, não dá para entender por que alguém é saudável analisando apenas suas opções ou ações pessoais. É necessário olhar além do indivíduo. E também conhecer a cultura da qual ele faz parte, saber quem são seus amigos, sua família e a cidade de origem de seus familiares. É preciso ainda aceitar a idéia de que os valores do mundo que habitamos e as pessoas que nos cercam exercem um grande efeito em quem nós somos. Neste livro, quero fazer por nossa compreensão do sucesso o que Stewart Wolf fez pelo entendimento que agora temos da saúde.”

MEUS COMENTÁRIOS DE 2009

Essa historinha que Gladwell escolheu como introdução do seu último livro é realmente fantástica. Vai na linha daquela efervescência associativista que Tocqueville observou na Nova Inglaterra em meados do século 19. Vai na linha de nossa saudosa Jane Jacobs e suas conversas nas calçadas como fator dinamizador da vida das cidades em meados do século 20. Vai na linha das teorias do capital social surgidas na última década do século 20. E vai na linha das teorias das redes sociais que estão surgindo na primeira década do século 21.

Grifei apenas dois pedaços de frases na transcrição acima:

1) “Wolf e Bruhn descobriram o motivo. Observaram como as pessoas interagiam, parando para conversar em italiano na rua ou cozinhando umas para as outras nos quintais”.

2) “Elas [as pessoas de Roseto] eram saudáveis por causa do lugar onde viviam, do mundo que haviam criado para si mesmas em sua minúscula cidade nas montanhas”.

Sim, sim, interação e lugar. Em outras palavras: conversações e comunidade. Em outras palavras, ainda: rede e cluster (quer dizer, rede).

Até hoje, em todos os campos, olhamos para o ser humano como um indivíduo (como se existisse essa abstração do liberalismo iluminista) e não como uma pessoa-conectada. Seja do ponto de vista da saúde, da educação, da economia ou do desenvolvimento, olhamos para os componentes do capital humano e não para os componentes do capital social. Olhamos para os entes e não para as relações. Quer dizer, não olhamos para o que se possa propriamente chamar de ‘social’ (que não é o que está em cada elemento da coleção denominada sociedade e sim o que está entre esses elementos).

Mesmo as tradições espirituais e outros sistemas de sabedoria focalizam o indivíduo: todos os seus ensinamentos, segredos e ritos de iniciação estão voltados, quando não para sulcar caminhos de repetição de passado (pavimentando com a crença a estrada para o futuro, quer dizer, reduzindo o estoque de futuros ao tentar, como disse Jung, proteger o ser humano da experiência de deus), para orientar o esforço individual em busca da iluminação ou da perfeição. Isso vale, inclusive, para esse fantástico processo de desconstrução dos sistemas de acumulações de certezas que surgiu da simbiose do budismo com o taoísmo – o zen – e imagine-se (se isso for possível) o que ocorreria se o sujeito a que ele se destina passasse a ser a pessoa-conectada… Quem sabe as novas formas pós-religiosas de espiritualidade que vão surgir tenham que começar por aí.

Malcolm Gladwell escolheu um caso emblemático de saúde para ressaltar o peso das condições sistêmicas, ambientais (no sentido social do termo, do ambiente social e não do ambiente natural). Mas o ambiente social nada mais é do que a rede social. Nossa saúde depende, em grande parte, das redes sociais em que estamos conectados, da topologia dessas redes e dos fenômenos que nela ocorrem. Mas não só a saúde, também a nossa capacidade de aprender, de criar, de inovar, de (se) desenvolver e – como ele quis mostrar ao longo do livro – de “ter sucesso na vida” (seja lá o que isso for), também dependam, em um grau muito maior do que suspeitamos, do multiverso das conexões ocultas que produzem o que chamamos de social.

Fim do artigo de 2009.

MEUS COMENTÁRIOS DE 2023

O que isso tudo tem a ver com democracia? Bem… acabei de escrever um livro para tratar do assunto, intitulado Como as democracias nascem: redescobrindo o papel inovador da democracia como regime político e como modo-de-vida (São Paulo: Casas da Democracia, 2023). Em síntese, a tese desenvolvida no livro é a seguinte:

A democracia depende da continuidade de conversações democráticas. Se essas conversações cessarem (ou desanimarem), a democracia acaba (ou esmorece). As definições de democracia da atual ciência política, por mais precisas que sejam, não são capazes de empolgar as pessoas que não se dedicam a estudar teorias políticas, nem de animar novas conversações democráticas (algumas chegam a ser desanimadoras, como as que reduzem a democracia à troca eleitoral de governo sem derramamento de sangue). Foi pensando nisso que escrevi o livro: para animar novas conversações democráticas.

A primeira democracia nasceu em Atenas, como modo-de-vida antes de virar modo político de administração do Estado. Seu nascimento, como o nascimento de qualquer democracia, foi comunitário. Ela nasceu nas redes de conversações que se formaram na praça do mercado, na Ágora e no Pnyx e em outros lugares dos quais não se tem notícia (provavelmente em mais de uma centena de demos onde ocorriam assembleias distritais). Mas só nasceu em espaços com condições de serem publicizados, quer dizer, não nasceu jamais intramuros, em alguma organização hierárquica privada, com dirigentes ou mestres, não nasceu em academias e liceus, como a platônica e o aristotélico, que obviamente vieram depois, mas nem mesmo antes, em centros de sabedoria, confrarias, irmandades ou sodalícios, como o pitagórico. Mas depois de 322 a.C. a democracia ficou desaparecida por mais de dois mil anos. Quando os modernos a reinventaram, a partir do século 17, perderam parte do código original. Para redescobrir as potencialidades criativas da democracia é preciso decifrar o seu código – não como regra do jogo, mas como o próprio jogo. O livro Como as democracias nascem apenas sugere algumas decifrações.

A relação entre democracia como modo-de-vida e as experiências de Roseto e das Zonas Azuis de Dan Buettner parece clara. A democracia incide, sim, na melhoria das condições de vida dos indivíduos, mas não diretamente e sim pela melhoria das condições de convivência social das comunidades onde esses indivíduos interagem. Ela melhora as condições de vida da rede (quando os interagentes passam a ser capazes de viver a sua convivência). Tudo a ver.

Dito isso, valho-me aqui, para começar, de duas citações. A primeira, do final de um artigo recente (02/09/2003), intitulado Estamos vivendo em tempos de guerra. Nos dois últimos parágrafos escrevi:

Como não há democracia sem democratas, é claro que a articulação e a animação de redes de conversação democrática, a configuração de novos ambientes de aprendizagem democrática e a decorrente multiplicação do número de agentes democráticos é a tarefa mais importante dos democratas. Isso permanece válido com guerra ou sem guerra. Em estado de guerra parece mais difícil. Mas talvez não seja, considerando que o genos da democracia é ser um processo de desconstituição de autocracia (e a autocracia é a guerra). Entretanto…

Em estado de guerra o processo de multiplicação dos democratas terá uma dinâmica molecular. Não será mais possível promover mega eventos com o propósito de ‘evangelizar’ multidões de pessoas sobre o que é a democracia, como defendê-la, como reinventá-la. O campo social deformado pela polarização não permite a configuração de grandes ambientes favoráveis à aprendizagem da democracia. Agora é um a um (talvez, no fundo, tenha sido sempre assim). Os democratas (como agentes liberais-inovadores) devem continuar caminhando, mesmo na escuridão, configurando novos mundos glocais – em comunidades abertas de aprendizagem, de prática ou de projeto – nos quais seja possível manter conversações democráticas e atuar de acordo com elas, experimentando a democracia como modo-de-vida e usando suas pequenas luzes para usinar matrizes inéditas de interação com o mundo, preparando a abertura de novas janelas nas décadas de virão.

A segunda citação é do último capítulo (o quadragésimo) do livro Como as democracias nascem:

Ao que tudo indica, a transição democrática exigida pela emergência de uma sociedade-em-rede [sob um terceira grande onda de autocratização que degenera a política como continuação da guerra por outros meios] não vai se realizar a partir do planalto e sim, somente, se houver múltiplas movimentações (e fermentações) na planície.

É meio inútil ficar esperando aparecer, em qualquer lugar, um candidato honesto e convertido à democracia ou um partido ético para arrumar a casa. Simplesmente porque não há mais (uma) casa. Não será uma pessoa boa (quem?), um novo líder extraordinário (ainda bem) que vai consertar a política. Não será um partido que se diga novo (posto que a forma-partido já é velha) ou chamado de “rede” (posto que partido já é hierárquico) que vai nos dar de mão-beijada uma nova política mais limpa (ainda bem, também), uma sociedade mais harmônica e um outro mundo melhor (simplesmente porque não há mais um – único – mundo em termos sociais). Agora serão muitos mundos (no plural).

Estamos nos aproximando rapidamente daquele cenário imaginado por Bruce Sterling (1989) no romance Islands in the Net. Estamos vagando num grande oceano, ora aportando em uma ilha, ora evitando se acercar de outra, ora fugindo mesmo dos seus belicosos habitantes. Ademais, essas ilhas não serão fixas, algumas serão como bolhas e só poderemos ficar nelas durante um tempo, antes que espoquem. As ilhas são clusters de pessoas: alguns serão democráticos e inovadores, outros conservadores, e outros, ainda, retrógrados, autocráticos, quando não perversos (ninhos de jihadistas, religiosos ou laicos, de esquerda ou de direita).

Mas – eis uma (possível) nova esperança – ninguém (nenhum cluster) terá mais a hegemonia (sobre outros clusters) de suas visões (ainda bem), nem supremacia conquistada pela força, nem arrebanhamento pelo convencimento.

E não adiantará para nada debater: não é assim que a coisa funciona agora. Nos desculpem Joahanna (Arendt) e Jürgen (Habermas), mas John (Dewey) tinha razão. As pessoas se sintonizarão num glance, num blink. Ou não se sintonizarão. Quando se sintonizarem, podem conseguir sinergias para serem carregadas juntas por um tempo pelo fluxo interativo da sua convivência social e podem lograr reconfigurar seus ambientes – e “é o ambiente que muda as pessoas, não a tecnologia”: obrigado Marshall (McLuhan). Ou não se sinergizarão. É até possível que, assim, se produzam simbioses que deem origem a novas pessoalidades (e daí nasçam novos mundos-bebês). Ou não. E dizer ‘ou não’ significa dizer: o futuro está aberto.

Vamos ter que aprender a abrir mão de buscar qualquer consenso: ou aprendemos a trabalhar com ‘ecologias de diferenças coligadas’, ou as democracias vão estacionar, afundar e desparecer.  A transição democrática não vai acontecer quando elegermos um novo chefe bacana para nossa tribo nacional. Não há mais esse chefe e, se houvesse, como chefe, ele só poderia fazer mais do mesmo: tentar administrar um sistema que faliu.

Enquanto a gente não parar de ficar de boca aberta olhando para cima, nada feito. Vamos ter que olhar para o nosso vizinho e começar! Pois bem. Uma boa maneira de começar é configurar ambientes análogos às “zonas azuis”, só que de democracia como modo-de-vida, por que não?

Sim, por que não? Há evidências de que “funciona”. Aqui deveria também começar o artigo sobre as “zonas azuis” de democracia como modo-de-vida. Mas não é uma receita que esteja pronta. E sim um tema para exploração coletiva e muita conversação. Aguardem. Ou melhor, conversem.

Estamos vivendo em tempos de guerra

Meus artigos de agosto de 2023 na Crusoé