Quase um milênio de academia, quer dizer, de platonismo, contribuiu para disseminar uma visão preconceituosa sobre os sofistas. É claro que a corporação medieval meritocrática que chamamos de universidade faria isto. Aliás, com esse comportamento, as universidades apenas reafirmam que são platônicas, inclusive no início, nos séculos 11 a 13 do segundo milênio, a escolástica era muito mais platônica do que aristotélica, ao contrário do que se pensa: basta investigar o pensamento de Robert Grosseteste (1175–1253) para comprovar isso.
A maledicência contra os sofistas começou com a desonestidade de Platão ao escrever o diálogo Protágoras, como mostrou Castoriadis (1986) nos seus célebres seminários sobre O Político de Platão. Platão, como se sabe, era um adversário da democracia, enquanto que Protágoras, o sofista, estava implicado na primeira invenção da democracia pelos atenienses e frequentava o grupo que se reunia com Péricles (o corrupto) na casa de Aspásia (a puta). Sim, não nos espantemos tanto com a reprodução das maledicências aristocráticas.
Qual era a acusação contra os sofistas: a de cobrarem por suas aulas de retórica e truques de argumentação circular para os jovens atenienses que queriam adquirir algum protagonismo na Ágora (claro que Platão, um aristocrata, não precisava fazer isso para viver). E também a de que eles não eram — assim como a democracia — suficientemente meritocráticos (Platão e seu Sócrates não aceitavam que uma sociedade pudesse ser dirigida a partir da interação de meras opiniões = doxa: achavam que quem deveria dirigir a polis eram os sábios, os que possuíam o conhecimento filosófico = episteme e, assim, nunca entenderam que um regime capaz de regular os conflitos entre um povo que ousava viver sem um senhor, “sem ser escravo ou súdito de ninguém”, como disse Esquilo (472 AEC) em Os Persas, só poderia ser baseado na liberdade de opinião: posto que um governo de filósofos seria necessariamente autocrático, no limite tornando os ignorantes súditos dos sábios).
Pulando dois mil e quinhentos anos, a questão continua relevante. Os teóricos das redes e da democracia (não os novos teóricos da autocracia disfarçados de teóricos da democracia, que infestam hoje as universidades) são espécies de novos sofistas. Eles andam pelas praças e pelos becos (físicos e virtuais, como o Facebook), conversam com quem os procura, conseguem falar e ser ouvidos por muita gente, mas não conseguem manter pessoas aglomeradas nos mesmos clusters por muito tempo. Seria contraditório, pois em sociedades hierárquicas estruturas mais distribuídas do que centralizadas são fugazes, são bolhas que duram apenas um tempo (aliás, cada vez menor quanto maior for a interatividade: ou seja, a vulnerabilidade à interação fortuita, com o outro-imprevisível).
Você só consegue manter pessoas em um mesmo cluster se as fronteiras tiverem alguma opacidade ou se as membranas selecionarem fluxos. Jogadas no vento que sopra onde quer e que ninguém sabe de antemão de onde vem ou para onde vai, as pessoas tendem a seguir fluxos diferentes e as linhas de vida se separam. Só fica no mesmo lugar (se aposentando, por exemplo, como professor universitário) quem não pode sair, quem depende de uma dinâmica particular e tem de se sujeitar a uma estrutura hierárquica para sobreviver (do contrário, as pessoas abandonariam as empresas e outras organizações hierárquicas em que trabalham) ou quem aceitou que seu caminho para o futuro fosse pavimentado por uma crença (do contrario sumiriam os fiéis de qualquer religião).
Esta é a dificuldade de manter organizações em rede que sejam reconhecidas como organizações por organizações hierárquicas. Por isso a rede não é um tipo de organização e sim um padrão. Essa dificuldade, entretanto, é uma potencialidade para criar novos mundos. Novos mundos democráticos, necessariamente precários e fugazes, nos desvãos da vida cotidiana.
Por isso pode-se dizer que os sofistas estão voltando. Sofistas são os que tomam a democracia como modo-de-vida, ou seja, a democracia no sentido forte do conceito: como processo de desconstituição de autocracia, onde quer que ela se manifeste, não apenas no Estado e sim também nas organizações da sociedade (como a família, a escola, a igreja, a corporação – incluindo a universidade -, o quartel, as organizações da sociedade civil e a empresa hierárquica). E como são mais protagorianos do que platônicos, não são acadêmicos: posto que se recusam a erigir ou a participar de tribunais epistemológicos que tenham o poder de validar conhecimento-ensinado e de descredenciar a livre investigação-aprendizagem. Porque a democracia não é um ensinar e sim um deixar-aprender. Porque as redes são ambientes para inventar e não para reproduzir. Em outras palavras, sofistas são interativistas, não cognitivistas.
Menos Platão, mais Protágoras
Isso merece uma explicação. A visão interativista não se reduz à tentativa de explicação do fenômeno da aprendizagem (o que é, como acontece). Na verdade, de um ponto de vista interativista não há aprendizagem sem investigação e vice-versa (ou melhor, não se pode separar os dois processos). Mas uma visão não-cognitivista sobre a aprendizagem e a investigação — como é a visão interativista — muda radicalmente as bases do que o segundo milênio chamou de ciência, sobretudo do que os filósofos da ciência, a partir do final do século 19, chamaram de ciência. Tal como as teorias da aprendizagem são cognitivistas, a ciência (assim definida pelos epistemólogos racionalistas da ciência) também é cognitivista. A ciência é, basicamente, platônica e com isso não queremos dizer que a ciência não passa de uma ideologia (a ideologia do platonismo) e sim que ela é explicada e justificada de um ponto de vista cognitivista herdeiro do platonismo.
Mas o que seria uma ciência não-cognitivista, ou seja, não baseada em uma teoria do conhecimento e sim numa teoria da alostase social (como seria uma teoria interativista da aprendizagem)? A ciência, como sabemos, é escolástica (no sentido literal do termo, de que é uma propriedade da escola, da academia, ou seja, não aristotélica — como se confundiu na Idade Média — e sim, a rigor, platônica mesmo, como também sabemos desde Robert Grosseteste, e isso já foi mencionado acima). Seu ambiente original é hierárquico e autocrático.
Imaginem agora o que seria uma “ciência” protagoriana, quer dizer, sofista. Uma “ciência” que não tivesse nascido como efluxo de um organismo social autocrático e sim democrático. Uma “ciência” que não desvalorizasse a opinião (doxa) em relação ao saber (episteme). Seria possível uma ciência (sem as aspas) assim? Ou o que chamamos de ciência tem que ser necessariamente closed science (e não open science), conforme à academia (um tipo de organismo social fechado, um cluster de sábios, separado do vulgo, do não-sábio)?
Interativistas são uma espécie de sofistas contemporâneos – repetindo outra vez: mais protagorianos do que platônicos – mais tendentes a explicar a aprendizagem pelas alterações na configuração do campo social do que pelos conteúdos transmitidos-recebidos e sempre avalizados por algum tribunal epistemológico (uma casta de sábios). Diga-se o que se quiser dizer, cognitivismos — mesmo construtivistas — são conteudismos; quer dizer, estão baseados na hipótese de que as interações são instrutivas. Por isso todo affaire educativo (ou preparativo para a ciência, ou avalizável pela ciência) é baseado em conteúdo, na assimilação e verificação de algum conteúdo que foi desenvolvido e guardado por outrem para ser transmitido do mestre ao discípulo (ainda que esses nomes tenham mudado, há sempre um sacerdócio — uma intermediação institucionalizada — cuja presença é necessária).
Assim como a universidade é a escola da escola, a ciência (cognitivista) é a religião da escola. Nada disso, a rigor, é a vida comum das pessoas em sociedade. E como mostrou Paul Feyerabend (1975) é preciso defender a sociedade diante da ciência (pelo menos, desta ciência – como se poderia dizer? – privada ou, talvez melhor, un-commons).
A questão é relevante pelo seguinte. O meio onde se gera ciência cognitivista (a academia, do ponto de vista da sua morfologia e da sua dinâmica) tem a ver com o modo de observação-investigação-explicação validado pelos epistemólogos da ciência como ciência? O “produto” (por assim dizer) tem a ver com a configuração da “fábrica”? É possível validar modos de observação-investigação-explicação não-acadêmicos? Ou, em termos um tanto poéticos, a praça pode gerar algum tipo de ciência? Ou, ainda, o Zeus Agoraios e a deusa Peitho podem ser numes tutelares de alguma ciência ou só é ciência o que estiver sob a proteção de Atena (a deusa do que hoje seria algo mais parecido com a ciência, que também o era da guerra, ou seja, da autocracia)?
Uma ciência que foge (se tranca, fecha as portas às pessoas comuns) da praça não seria autocrática? Não, não há aqui propriamente qualquer deslizamento epistemológico. Há uma indagação sobre os efeitos do condicionamento recíproco entre o ambiente em que uma coisa é produzida e o produto. Nesse sentido, pode haver uma ciência democrática? Perguntando de outra maneira. Sabe-se que a ciência é sacerdotal, mas pode haver uma ciência poética? Autopoética? Ou melhor, alterpoética?
Voltemos à época em que o segundo milênio começou a cogitar de alguma coisa que depois foi chamada de ciência. E se em vez de fazer experimentos para conhecer o mundo houvesse uma ciência para experimentá-lo? Uma ciência rogerbaconiana, considerando que o experimentalismo de Roger Bacon não foi o precursor do experimentalismo de Robert Boyle (para o primeiro a ciência da experiência era um fim enquanto que para o segundo o método experimental era um meio).
E se as formulações em prol do experimentalismo de Bacon não desembocaram naquilo que ele talvez pretendesse: a ciência experimental (ou melhor, a ciência da experiência) como um fim e não como um meio de fazer a natureza revelar seus segredos (Galileu)?
E se o que se chamou de ciência não fosse a mesma coisa que uma “ciência” onde o sujeito e o objeto da investigação se fundem e se transformam (cabendo à teoria um papel ou um sentido, talvez, mais órfico, de contemplação e comunhão com o cosmos e não predominantemente especulativo e explicativo)?
Tantas perguntas. Quantas respostas?
Os novos sofistas não são aqueles que têm as respostas, mas os que continuam fazendo as perguntas.
Continua…
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