Um briefing de uma investigação em curso
Publicado simultâneamente na revista Inteligência Democrática.
A grande contribuição do V-Dem (o Instituto Varieties of Democracy, da Universidade de Gotemburgo, fundado por Staffan Lindberg em 2014: juntamente com a Freedom House e a The Economist Intelligence Unit, um dos mais reconhecidos centros de pesquisa que monitoram os regimes políticos no mundo e produzem rankings anuais de democracia) foi clarear os conceitos que usamos para classificar os regimes políticos. Tres frases podem sintetizar as novidades da sua abordagem:
1 – Tudo que não é democracia é autocracia: não existe um terceiro grande tipo de regime político.
2 – Nem todas as autocracias são regimes não-eleitorais. Existem, e em muito maior número, autocracias que são regimes eleitorais.
3 – Toda democracia é um regime eleitoral, mas nem toda democracia é um regime liberal.
O V-Dem classifica os regimes políticos em quatro tipos: (1) Democracia Liberal, (2) Democracia Eleitoral (não-liberal), (3) Autocracia Eleitoral, (4) Autocracia Fechada (não-eleitoral).
A classificação dos regimes políticos, adotada pelo V-Dem, em quatro tipos (Democracia Liberal, Democracia Eleitoral, Autocracia Eleitoral e Autocracia Fechada), é a mais sugestiva de todas (porquanto faz uma distinção clara entre regime eleitoral e democracia ao mostrar que existem – e em grande número – autocracias eleitorais). Essa classificação é baseada num magnífico estudo de Anna Lührmann, Marcus Tannenberg e Staffan Lindberg (2018) – Regimes of the World (RoW): Opening New Avenues for the Comparative Study of Political Regimes.
Segundo o relatório V-Dem de 2023, temos hoje no mundo:
O ponto fraco da classificação do V-Dem está na categoria confusa que ele chama de Democracia Eleitoral. O grande problema é como classificar os regimes que estão indistintamente misturados na categoria Democracia Eleitoral, ou seja, regimes eleitorais não-autoritários e não-liberais. Por exemplo, embora ambos estejam classificados como Democracia Eleitoral pelo V-Dem, Chipre e Bolívia não parecem ser o mesmo tipo de regime político. O mesmo vale para Portugal e Colômbia. Ou Malta e México. Ou, ainda, Grécia e Armênia.
Parece difícil resolver esse problema sem lançar mão de critérios políticos. Para os democratas, a categoria de mais interesse, que deve nortear ou condicionar todo o esquema classificatório, é a de Democracia Liberal. O que diferencia uma Democracia Liberal de qualquer outro tipo de regime é um comportamento político expressivo da sociedade e não um ou outro atributo “técnico”, mais sujeito à verificação objetiva, como, por exemplo, se há ou não há eleições livres e periódicas ou em que medida o judiciário é constitucionalmente independente. Uma democracia liberal é definida pela medida em que a sociedade é capaz de controlar o governo – e isso é um critério essencialmente político, que depende de comportamento político, da pervasividade de uma cultura política.
Ou seja, para resolver esse problema devemos adotar critérios políticos. Um possível critério político a ser considerado seria o regime ser ou não ser parasitado por forças políticas populistas (no governo ou na oposição majoritária). Porque são os populismos do século 21 – o populismo-autoritário ou nacional-populismo (dito de extrema-direita) e o neopopulismo (dito de esquerda) – que impedem que um regime eleitoral, conquanto não seja autoritário, não seja um regime liberal (1). Em regimes não-autoritários os populismos são, por excelência, derivados de um comportamento político que impede (ou dificulta) o exercício dessa capacidade (de a sociedade controlar o governo) (2).
Assim, teríamos:
Para citar um exemplo de cada tipo, teríamos:
Mas a questão principal em análise aqui é a confusa categoria Democracia Eleitoral. Como vimos, há (pelo menos) dois tipos de regimes diferentes nessa categoria. Para escapar dessa confusão seria preferível chamá-los, no geral, de regimes eleitorais não-autoritários e não-liberais em vez de chamá-los de democracias. Assim, a partir do levantamento do relatório do V-Dem 2023, teríamos, claramente, um campo autocrático, um campo democrático e um campo que está em disputa:
Regimes eleitorais não-autocráticos, mas não-liberais, se comportam de maneira diferente na medida em que não estão ou estão parasitados por populismos. Se não estiverem, têm mais chances de entrar em transição democratizante, virando Democracias Liberais (as democracias propriamente ditas). Os que estiverem parasitados por populismos, enquanto estiverem, ficarão sob risco maior de entrar em transição autocratizante, podendo decair para Autocracias Eleitorais (ou até para Autocracias Fechadas, embora isso seja menos provável).
São duas categorias novas, portanto, desentranhadas da antiga categoria Democracia Eleitoral. Com exemplos:
Para resumir este briefing poderíamos ter o seguinte diagrama:
Teríamos, assim, cinco tipos de regimes (e não quatro, como na classificação do V-Dem):
(1) Democracias Liberais (33 regimes segundo o V-Dem 2023): são as democracias propriamente ditas.
(2) Regimes Eleitorais com possibilidade de entrar em transição democratizante (seria preciso refazer o levantamento para saber o seu número, mas seriam regimes como os do Chipre, da Grécia ou de Portugal),
(3) Regimes Eleitorais sob risco de entrar em transição autocratizante (idem, mas seriam regimes como os de Bolívia, Brasil e México),
(4) Autocracias Eleitorais (56 regimes, segundo o V-Dem 2023: que também poderiam ser chamados de regimes eleitorais autoritários,
(5) Autocracias Não-Eleitorais (33 regimes, idem).
Claro que nada estará resolvido enquanto não definirmos o que significa, precisamente, parasitagem de um regime por comportamentos políticos populistas. Mas já é um início de investigação.
Notas
(1) Cf. o artigo O que é populismo.
(2) Parte da argumentação exposta no presente artigo já foi objeto de outro artigo, intitulado Regimes políticos na América Latina.