Defendo que as pessoas – dentro de certos critérios (como idade, condição física ou psíquica, tipo de atividade que exercem ou localidade onde moram) – possam ter (se quiserem) uma arma para se defender. Acho que o Estado não deve se meter muito nesses assuntos. Que fique claro que esta é a minha posição.
Mas isso é diferente de fazer uma campanha pelo armamentismo popular, sobretudo usando o argumento de que tal medida seria uma garantia contra os que querem abolir a democracia pela força das armas.
Sobre as armas como instrumentos de defesa pessoal, posso dar um depoimento também pessoal.
Fui vítima, em junho de 2005, de um ataque na minha residência. A meia-noite, dois encapuzados armados entraram pela porta da cozinha, perseguiram minha mulher, que conseguiu escapar correndo por dentro da casa e se refugiou no quarto de dormir, onde eu estava.
Os intrusos forçaram a porta que, infelizmente, estava sem a chave. Então peguei um revólver antigo que possuía, que nunca tinha sido usado, pedi para minha mulher abrir e porta e disparei vários tiros. Os assaltantes responderam com mais tiros. Ficamos assim trocando balas no escuro, a três metros de distância uns dos outros, até que eles fugiram.
Felizmente não fomos atingidos (apenas uma bala passou de raspão na barriga da minha mulher). Todos os móveis ficaram crivados de balas e a perícia gastou uma manhã inteira retirando os projéteis (os que não foram levados antes pela PM, que só chegou 30 minutos depois e tratou de recolher todos os cartuchos que estavam no chão, descaracterizando e contaminando a cena do crime).
A imprensa noticiou (e até o Reinaldo Azevedo comentou). Depois os agressores voltaram, várias vezes, em grupos de até 12 pessoas armadas, mas aí é outra história (que não posso contar agora). O que quero dizer nesta oportunidade é que se eu não tivesse uma arma e não tivesse reagido, possivelmente seríamos amarrados, seviciados, sequestrados ou coisa pior (porque o ataque, como parece claro, não tinha pinta de crime comum).
O risco foi imenso, mas como vivia numa área rural (no Km 6,5 da DF 250), avaliei que, no caso concreto, os riscos de não reagir seriam maiores. Mesmo assim, fiquei aliviado por não ter matado ou ferido ninguém. Não é bom matar ou infligir sofrimentos a seres humanos (ou a quaisquer seres sencientes): uma parte da nossa alma morre também (enquanto permanecemos vivos, o que é o pior).
Em outubro do mesmo ano votei NÃO no referendo sobre a proibição da comercialização de armas de fogo e munições, mas não influenciado por esse evento e sim porque penso que o Estado não deve se meter na vida do cidadão a esse nível. No entanto, isso não me faz aderir ao besteirol do armamentismo popular, sobretudo quando vem acompanhado por justificativas políticas idiotas e delirantes.
Para começar, vamos concordar com a hipótese de que as pessoas devem se armar para proteger a democracia de eventuais golpistas que queiram violá-la. Este – segundo a versão que foi espalhada – não era o espírito da Segunda Emenda à Constituição dos Estados Unidos? Acreditemos.
Mas o que seria necessário para que isso fosse uma defesa efetiva? Armas pessoais, como revólveres e carabinas, serão suficientes? Vejam a população venezuelana que enfrenta a ditadura de Maduro. As forças armadas e policiais de Maduro, a sua guarda pretoriana, as milícias do regime e os colectivos (treinados pelos cubanos) têm tanques, aviões, drones, helicópteros, fuzis automáticos, metralhadoras, granadas, morteiros, canhões, bombas etc. A oposição popular venezuelana vai enfrentar tudo isso com coquetéis molotov, morteiros juninos, pistolas e espingardas? Ou quem defende o armamento da população também defende que as pessoas possam ter acesso a equipamento militar de alto impacto, armas de guerra e de destruição em massa?
Outra coisa: os que dizem que vão distribuir armas para o povo (como fez Bolsonaro em Belém, na véspera do Círio de Nazaré de 2017), vão comprar essas armas nas Forjas Taurus, na Companhia Brasileira de Cartuchos ou na Amadeo Rossi? Vão recomendar que as pessoas comprem suas armas nessas indústrias (ou no mercado negro de armas)?
Se eu posso comprar armas de (pouquíssimos) fabricantes, por que não poderia fabricá-las para meu próprio uso? Negá-lo só pode ser parte da pauta da chamada Bancada da Bala, concordam?
Ou será que eles vão propor uma lei permitindo que as pessoas fabriquem seus próprios armamentos (hoje isso não é mais tão difícil e o próprio Estado poderia fornecer cursos práticos de armaria, disponibilizando na internet meios e modos de fabricação de artefatos mortais)?
Como pequenas armas de porte pessoal não são suficientes, já não diria para resistir a golpistas organizados militarmente, mas ao próprio narcotráfico (que possui armamento pesado, como fuzis de assalto em calibre 5,56 mm e 7,62 mm, mas não só), então a licença para se armar tendo poder de fogo semelhante ao dos golpistas ou das organizações criminosas, ou seja, para comprar e fabricar armas de guerra, deveria ser ampla, geral e irrestrita, certo? E por que não ensinar também a população a fabricar algumas armas químicas ou biológicas (o cloro pode ser adquirido ou produzido facilmente e não é difícil montar laboratórios caseiros, tanto para fabricar substâncias químicas letais quanto para cultivar culturas de micro-organismos nocivos à saúde)?
Estou levando os argumentos às últimas consequências para evidenciar o besteirol do armamentismo popular, não para dizer que as pessoas, que quiserem, não possam ter uma arma de defesa pessoal ou de caça (embora também não goste de matar, nem seres humanos, nem quaisquer seres sencientes).
Repito. Votei NÃO no referendo sobre a proibição da comercialização de armas de fogo e munições, ocorrido no Brasil em 23 de outubro de 2005. Mas não posso concordar com o oposto: com o estímulo ao armamentismo popular, que é tão inútil para enfrentar os que querem suprimir a democracia pela força militar, quanto inócuo para escapar de bandidos comuns organizados. Aliás, as estatísticas mostram que a resistência armada a assaltos envolve, em geral, riscos de vida maiores para as vítimas do que para os bandidos. E mesmo que os bandidos fossem mortos em maior número do que as vítimas, isso não seria bom. Não é bom matar seres humanos.
Sim, as estatísticas não confirmam a hipótese de que um povo armado diminui o crime. Depende do lugar, da época e das circunstâncias.
A militância contra o chamado estatuto do desarmamento não tem quase nada a ver com a Segunda Emenda à Constituição dos Estados Unidos (ou com a common-law britânica que lhe deu origem). Não é para defender o regime democrático contra supostos tiranos (até porque os que defendem isso não são democratas). Não é nem para a defesa pessoal contra os bandidos comuns (sim, porque contra os bandidos políticos é medida ineficaz). Não há evidências científicas de que uma sociedade em que o povo está armado seja necessariamente mais segura ou pacífica do que qualquer outra. Depende muito das circunstâncias. Se for como na Suíça, tudo bem. Se for como nos USA do final do século 18, tudo bem. Se for como nos USA do início do século 21, tudo mal.
Na verdade, as propostas contra o desarmamento (ou melhor, pelo armamento da população, pois é disso que se trata) não têm nada a ver nem com a defesa do regime democrático contra eventuais golpistas políticos organizados militarmente, nem com a defesa contra o crime organizado de bandidos comuns. Elas têm a ver, isto sim, com uma mudança no emocionar social, para transformá-lo num emocionar guerreiro, cada um armado contra o outro, o qual deixa de ser um possível amigo ou parceiro para se transformar num potencial inimigo. Ora, isso é apenas um modo de configurar ambientes sociais favoráveis à autocracia. Tratei do assunto no artigo Armas e autocracia, que açulou a fúria do meliante ideológico Olavo de Carvalho e dos fanáticos olavistas e bolsonaristas.
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