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Sobre os democratas liberais radicais

Curioso que os historiadores chamem os democratas atenienses (como Efialtes, Péricles, Aspásia, Protágoras e outros sofistas) que pontificaram nos trinta anos de ouro da democracia (462-432 a.C.) de democratas radicais. E também são chamados de democratas radicais (diferentes dos moderados, como Terâmenes) os que resistiram aos dois golpes oligárquicos contra a democracia, desfechados em 411 e 404 a.C. pela aristocracia fundiária com o apoio da autocracia espartana. Eles eram radicais porque iam à raiz da democracia que é simplesmente a política que tem como sentido a liberdade. Mas a liberdade, para eles (os democratas liberais radicais), não era se libertar de um poder opressor e nem mesmo apenas resistir a golpes contra o regime político democrático e sim desconstituir autocracia no dia a dia, para tanto interagindo na comunidade política. Livre era apenas o ser político, um ser social – não animal, como supôs Aristóteles – que se constitui quando as pessoas podem permanecer juntas, sem ser na família ou na guerra, por tempo suficiente para gerar novos mundos sociais.

Democratas liberais radicais não precisam ser muitos. Eles, em geral, compõem uma minoria acentuada e funcionam, via de regra, como atratores periféricos. Quando há algum tipo de sincronia, os pequenos estímulos emitidos por eles nas periferias do sistema podem se amplificar por laços de retroalimentação de reforço (feedback+) e podem mudar a configuração do campo, alterando o comportamento dos agentes do sistema.

Suspeita-se que se democratas liberais radicais forem muito poucos ou mesmo muitos (se seu número deixar de oscilar dentro de um intervalo ótimo) a democracia não possa funcionar tão bem (ou não faça mais sentido). Sim, se todos – ou uma ampla maioria – fossem democratas liberais radicais, a democracia não faria sentido. Ela só faz sentido porque existem pessoas (sim, o que existe são as pessoas) que são democratas liberais formais, democratas eleitorais, autocratas eleitorais e autocratas não-eleitorais. A democratização não é uma mudança que se opere em entidades abstratas e sim uma mudança de comportamento de pessoas.

A política democrática é feita, nas democracias realmente existentes na atualidade, em grande parte, com os democratas liberais formais e com os democratas eleitorais. É claro que o número desses agentes conta. Se eles forem minoritários a política deixa de orbitar em torno de um centro de gravidade democrático e pode se degenerar em antipolítica. É o que acontece quando autocratas eleitorais ocupam o centro de gravidade da política (ou quando autocratas não-eleitorais fazem isso, mas hoje estes últimos são apenas vestigiais e não oferecem grande perigo). Registre-se aqui que as autocracias eleitorais – não as democracias eleitorais e muito menos as democracias liberais formais – são maioria no mundo (ou no concerto das nações) em 2021.

A democracia radical (quer dizer, radicalmente liberal) é um processo de desconstituição de autocracia. É a política que tem como sentido a liberdade e, portanto, se exerce toda vez que modos autocráticos de regulação de conflitos são desativados. Modos autocráticos são modos guerreiros (seja a guerra quente – a guerra propriamente dita, seja a guerra fria, seja a política concebida como continuação da guerra por outros meios e praticada como uma luta contra inimigos, na base do “nós” contra “eles”). Modos democráticos são modos pazeantes, que não apenas não destroem inimigos, mas não constroem e mantêm inimigos (pois é isso, precisamente, que é a guerra, não o conflito violento que aniquila fisicamente contendores).

Não temos ainda bons indicadores capazes de medir a “produção” de democracia como modo de vida ou na base da sociedade e no cotidiano do cidadão. Seriam, indiretamente, indicadores de capital social, quer dizer, dos graus de distribuição, conectividade e interatividade da rede social (que é bom não confundir com mídia social). Quem sabe se tivéssemos indicadores compostos por conectores transientes (medidores de fluxos, no caso, de fluxos interativos da convivência social) seria possível captar esses movimentos subterrâneos, verificando em que momentos a geração de inimizade (em termos políticos) se converte em geração de amizade (idem).

Porque são esses atos singulares e precários de geração de mais liberdade – e a liberdade democrática, como já foi dito aqui, é isso: é se comprazer na convivência da comunidade política, não a libertação de um poder opressor – que compõem o processo de democratização (ou de desconstituição de autocracia), não grandes projetos centralizados de transformação da sociedade dirigidos por alguma elite política que promova uma guerra de libertação.

O mundo não pode ser libertado como se varre um pátio imenso (do tamanho de um país), usando vassouras quilométricas. Só pode ser libertado pela criação de outros mundos (demoi com suas poleis, micro-mundos e poleis paralelas). Esse é o sentido da política para os democratas radicais. Obviamente nunca teria havido experiência concreta de democracia se não houvesse o assentimento dos democratas liberais formais e, na modernidade, dos democratas eleitorais. Mas também nunca teria existido democracia se não houvesse inovações introduzidas pelos democratas liberais radicais.

Poderíamos até denominar os democratas radicais de democratas inovadores para distingui-los dos democratas liberais formais e dos democratas eleitorais, mas isso não é uma boa definição porque alguém poderia ser induzido a pensar que estes últimos seriam conservadores, o que não são necessariamente, nem mesmo no sentido de que querem conservar o regime democrático e suas instituições e normas (embora isso faça algum sentido). Já os autocratas eleitorais também não são, em sua maior parte, conservadores e sim reacionários (ou “revolucionários para trás”) e muitos autocratas não eleitorais também não são conservadores e sim “revolucionários para frente”.

Mesmo assim, os demoi introduzidos por Clístenes em 508 a.C., o sorteio introduzido não se sabe por quem para escolha de dirigentes no Areópago e as reformas de Efialtes em 462 a.C. foram inovações radicais, surpreendentes e disruptivas, sem as quais, provavelmente, nunca teríamos ouvido a palavra democracia. O que nos leva a pensar que democratas radicais são democratas inovadores. Sim, a democracia foi a maior inovação social e política que ocorreu no patriarcado nos últimos, talvez, cinco milênios.

Tudo isso, em termos práticos, é também para dizer o seguinte. Quando se afirma que há um acentuado déficit de democratas no Brasil atual, o que essa constatação significa?

Bem, antes de qualquer coisa, isso não significa que a maioria da população não concorde com o regime democrático e não o prefira a outros regimes. Mas não é desse tipo de democratas que se reclama quando se diz – repetindo Dahrendorf – que não existe democracia sem democratas. Pois a maioria da população pode concordar com a democracia eleitoral (ou com a troca de governo sem derramamento de sangue, na definição minimalista à la Przeworski) e, mesmo assim, não se importar com o fato dessa democracia ser mais ou menos liberal. Muitos que concordavam com a democracia eleitoral húngara não reagiram quando ela virou uma autocracia eleitoral. Muitos que concordavam com a democracia liberal (formal) americana não se deram conta de que ela estava decaindo para uma democracia (apenas) eleitoral (processo temporariamente interrompido, não se sabe em que medida, com a eleição de Biden).

A constatação do déficit de democratas no Brasil significa que faltam democratas liberais – tanto os radicais quanto os formais – e que o número de autocratas eleitorais está crescendo (embora ainda sejam minoritários) em relação ao número de democratas eleitorais. Fundamentalmente, porém, precisamos de mais democratas liberais – no sentido democrático-originário do termo, pois a palavra liberal não tem aqui nada a ver com as acepções introduzidas pelas doutrinas do chamado liberalismo-econômico e não tem a ver apenas com o sentido que lhe atribuiu o liberalismo político moderno).

Em outras palavras, precisamos daqueles agentes democráticos inovadores que sejam capazes não apenas de fermentar a formação de uma opinião pública democrática e de resistir ao autoritarismo e a qualquer populismo (que seriam os papeis de quaisquer democratas liberais, inclusive os formais), mas também de se conectar aos seus sensates para desconstituir autocracia no dia-a-dia ensaiando a democracia como modo-de-vida (pois é isso que fazem, distintivamente, os democratas liberais radicais).

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