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Por que é necessário estudar a democracia ateniense

A democracia original, que teve seu início com a reforma de Clístenes (em 508 a.C.) em Atenas, experimentou seu auge a partir da reforma de Efialtes (462 a.C.), no entre-guerras (462-432 a.C. – entre o fim das guerras com os persas e o início da guerra com os espartanos), e que se arrastou até a invasão macedônia (322 a.C.), ficou praticamente inativa durante mais de 2 mil anos.

Uma cronologia compreensível da democracia ateniense (levando em conta o que realmente importa em termos de eventos marcantes do século 5 a.C.) poderia ser apresentada assim:

508 Reforma de Clístenes
492 Morte de Clístenes (data incerta)
499-449 Guerras com os persas
462 Reforma de Efialtes
462 Morte de Efialtes e início do protagonismo de Péricles
462-432 Apogeu da experiência democrática e da atividade dos sofistas
445 Associação de Aspásia com Péricles
444 Associação de Protágoras com Péricles (data simbólica)
431-404 Guerra do Peloponeso
429 Morte de Péricles
422 (415) Morte de Protágoras
411 Primeiro golpe (dos 400) contra a democracia
404 Segundo golpe (dos 30) contra democracia
401 Terceiro golpe (frustrado) contra a democracia e morte de Aspásia

O que veio depois, é depois. A primeira democracia foi ferida de morte um século antes do seu desaparecimento (em 322 a.C.). Foi a Guerra do Peloponeso (431-404 a.C.) que matou a rede social que possibilitou o incrível florescimento dos trinta anos de ouro da democracia (462-432 a.C.) – período em geral chamado, por historiadores e analistas, de democracia radical. Foi ainda durante a guerra que vieram os dois golpes oligárquicos – com o apoio da aristocracia militar espartana – contra a democracia (em 411 e 404 a.C.). Repetindo, a democracia floresceu no entre-guerras: entre o final das guerras com os persas e o início da guerra com os espartanos. Como se sabe o propósito da guerra não é matar pessoas (um efeito colateral) e sim matar a rede social (e sem uma rede social suficientemente distribuída, a democracia não pode perdurar).

Mas disso tudo não sobrou praticamente nada em termos teóricos.

Até o Tratado Teológico-Político de Spinoza (1670), não há um só texto teórico (que tivesse chegado até nós) tentando identificar, explicar e justificar o DNA da democracia original.

Há duas menções não negativas de um teatrólogo (Ésquilo, em Os Persas: 472 a.C.) e um poeta (Eurípedes, em As Suplicantes: 424 a.C.) e também registros não particularmente desfavoráveis de dois historiadores (Heródoto e Tucídides: 440-404 a.C.), mas texto teórico não há.

Pelo contrário, toda a literatura política surgida nesses dois milênios ou é contra a democracia ou não entendeu bem a democracia. A partir do Pseudo-Xenofonte (431-424 a.C.), com A Constituição de Atenas – o primeiro texto político que se conhece (um panfleto abertamente antidemocrático) – passando por Xenofonte e por Platão (pró-espartanos e adversários da democracia), até chegar a Aristóteles (e seu sucessor Teofrasto, que não entenderam bem do que se tratava – ou entenderam e censuraram, excluindo os escritos democráticos, como os dos sofistas, da sua tradição doxográfica), dos séculos 5 e 4 não temos nada. E ficamos assim, sem ter nada, teoricamente elaborado, a favor da democracia (até Spinoza).

G. B. Kerferd (1980), em O movimento sofista, avaliza essa interpretação:

“Pelo visto, parece que um número considerável de escritos [dos sofistas] sobreviveu por um bom tempo. No que os sofistas foram menos afortunados do que outros, entre os pré-socráticos, foi na virtual ausência de relatos doxográficos. Provavelmente a principal razão disso foi a sua rejeição, como pensadores, por Aristóteles. Isso significa que foram virtualmente excluídos da série de sínteses encomendadas à escola de Aristóteles, que foi uma importante fonte de informação subsequente. Eles provavelmente foram incluídos na sua síntese de escritos retóricos e esta é pelo menos uma razão pela qual a tradição subsequente acentuou tão pesadamente este aspecto da obra deles. A geral omissão deles na tradição doxográfica, unida à opinião platônica e aristotélica de que seu pensamento e seu ensino eram falsos, explica por que foram, de fato, virtualmente ignorados pela cultura helênica, e por que mesmo essas suas obras que sobreviveram não eram lidas”.

Aqui está, aparentemente, a razão dos sofistas terem sido cancelados da história do pensamento. Não foi apenas em razão da maledicência e da desonestidade de Platão, mas principalmente, pela exclusão de Aristóteles. Os sofistas foram assim apagados do mundo pelos escolásticos da época. Claro que a verdadeira razão é quase óbvia: o ódio da Academia e do Liceu à democracia.

O erudito Chester Starr (1990), em O nascimento da democracia ateniense, foi mais um estudioso que notou que não há defesa teórica da democracia na antiguidade. Ele escreve que:

“Quanto a esta última” – [a defesa teórica da democracia] -, de fato, há muito pouca evidência nas fontes antigas do século 5 ou posteriores; do anônimo conservador chamado o Velho Oligarca ou Pseudo-Xenofonte, que escreveu um breve e incisivo panfleto, até Platão e Aristóteles, a democracia ateniense foi severamente criticada, como o seria mais tarde por Catão, o Censor, e pela maioria dos analistas políticos modernos do século 19″.

Starr acrescenta, que:

“Não é verdade, porém, que o princípio democrático tenha sido sempre atacado; além da famosa Oração Fúnebre, Tucídides registrou brevemente uma defesa feita pelo chefe siracusano Hermócrates, e há em Heródoto uma interessante opinião expressa por um dos conspiradores ligados a Dario. Otanes não descreve diretamente a democracia ateniense, mas o autor de sua defesa da democracia (provavelmente o próprio Heródoto) cita um de seus princípios fundamentais, o de obrigar os funcionários a prestarem contas de suas ações (eúthyna)”.

Está correto, mas essas não são defesas teóricas. São observações pontuais em relatos de historiadores. Continua, portanto, correta, a avaliação de que não há nenhuma obra teórica democrática que tenha sobrevivido e chegado a nós até, pelo menos, o Tratado Teológico-Político de Spinoza (1670).

Com efeito, Spinoza (1670), no capítulo 16 do seu Tratado Teológico-Político, escreveu:

“Julgo ter mostrado com bastante clareza os fundamentos do Imperium Democrático, de que preferi tratar porque me parece o mais natural e que mais permite a liberdade que a natureza concede a cada um. Pois nele ninguém transfere seu direito natural a outro de maneira que depois [in posterum] nunca mais seja consultado, mas transfere à maior parte de toda a Sociedade de que participa. Por isto é que todos permanecem desta maneira iguais, como antes no estado natural [in statu naturali].”

Há aqui uma preferência, inequivocamente política, pela democracia. A política da liberdade (democrática) é preferível a qualquer política que torne os homens servos. E no capítulo 20, o último do Tratado, renasce a ideia ateniense de que o fim da política (ou do Estado, ou da República, como tratado na época) não é a ordem, como supunha Hobbes (1651), e sim a liberdade.

O capítulo 20, que leva por título “Onde se demonstra que numa república livre é lícito a cada um pensar o que quiser e dizer aquilo que pensa”, tem passagens muito significativas.

Em primeiro lugar, a liberdade como sentido da política:

“O fim da república, repito, não é fazer os homens passar de seres racionais a bestas ou autômatos, é, pelo contrário, fazer com que a sua mente e o seu corpo exerçam em segurança as respectivas funções, que eles usem livremente da razão e que não se digladiem por ódio, cólera ou insídia, nem sejam intolerantes uns para com os outros. O verdadeiro fim da república é, de facto, a liberdade”.

Pode-se entender aqui a perspectiva liberal de Spinoza. Ao contrário de Hobbes e em sintonia com os primeiros democratas atenienses, ele sustenta que o sentido da política não é a ordem e sim a liberdade.

Em segundo lugar, a liberdade de pensamento:

“O mais violento dos Estados é, pois, aquele que nega aos indivíduos a liberdade de dizer e de ensinar o que pensam”.

Ou seja, colocando em outros termos seu pensamento, Spinoza percebe que a pior tirania é aquela que leva as pessoas não apenas a agir, mas a pensar sob comando. Note-se que ele não coloca na categoria de liberdade de pensamento apenas a liberdade de opinião (de dizer) e sim também a de ensinar.

“Por maioria de razão, deve ser permitida a liberdade de pensamento, que é sem dúvida uma virtude e não pode reprimir-se. Acresce ainda que ela não provoca nenhum inconveniente que não possa, como a seguir vou demonstrar, ser evitado pela autoridade dos magistrados. Isto, para já não falar de quanto ela é absolutamente necessária para o avanço das ciências e das artes, as quais só podem ser cultivadas com êxito por aqueles cujo pensamento for livre e sem preconceitos”.

Concluindo, Spinoza escreve:

“Com isto, ficou demonstrado o seguinte:

1 — É impossível tirar aos homens a liberdade de dizerem aquilo que pensam.

2 — Esta liberdade pode ser concedida a cada um sem prejuízo do direito e da autoridade do soberano, podendo cada um conservá-la sem prejuízo desse mesmo direito, desde que daí não retire a permissão de introduzir como direito algo de novo na república ou de fazer algo que vá contra as leis estabelecidas.

3 — Cada um pode ter esta mesma liberdade sem perigo para a paz e sem que daí venha algum inconveniente que não possa facilmente neutralizar-se.

4 — Cada um pode tê-la sem prejuízo da piedade.

5 — As leis estabelecidas em matérias de ordem especulativa são de todo inúteis.

6 — Finalmente, mostramos que esta liberdade, não só pode ser concedida sem risco para a paz da república, a piedade e o direito do soberano, como inclusivamente o deve ser, se se quiser preservar tudo isso”.

E ainda:

“Não há nada mais seguro para a república do que restringir a piedade e a religião unicamente à prática da caridade e da equidade e limitar o direito do soberano, tanto em matéria sagrada como profana, aos atos, deixando a cada um a liberdade de pensar aquilo que quiser e de dizer aquilo que pensa”.

Dois mil anos depois do surgimento da democracia ateniense, Spinoza criou a justificativa teórica para a reinvenção da democracia pelos modernos (embora isso tivesse acontecido na prática, não na teoria, na resistência do parlamento inglês ao poder despótico de Carlos I, não havia – antes de Spinoza – uma formulação cabal que sustentasse tal reinvenção).

Sim, no século 17 surgiu uma variante inglesa da democracia. E no século 18 as variantes americana e francesa. Mas todas essas eram bem diferentes da versão original. O problema é que foram essas variantes que passaram a ser chamadas de democracia.

A variante inglesados Bill of Rights e da resistência parlamentar ao poder despótico de Carlos I – era objetivamente democrática (foi mais ou menos assim que a democracia começou: numa resistência, no caso, mais lírica do que épica, a Hípias, o tirano filho de Psístrato que governava Atenas com mão de ferro). Mas, provavelmente, esses inventores da variante inglesa nem conheciam direito a palavra democracia.

A variante americana queria ser subjetivamente democrática, mas os pais fundadores tinham um certo medo das pessoas comuns, das turbas sublevadas e não disciplinadas que poderiam tomar, pela demagogia, o “cetro da razão” (para usar as palavras de Madison). Eles – Jefferson inclusive, mas sobretudo Madison e Hamilton – viviam apavorados com uma imaginária “tirania da maioria” (que nunca aconteceu na história). Acabaram constituindo mais uma república dos que julgavam ser os melhores (aristoi), ou seja, objetivamente, uma oligarquia – posto que eram poucos (oligoi).

A variante francesa colocou em tela a temática da igualdade, mas nem com uma super-lâmpada de Diógenes seria possível achar um democrata entre jacobinos e girondinos.

Uma “tradição” democrática – que tentasse recuperar o genos da democracia ateniense – só foi inventada mesmo no século 20, mas ainda é, em grande parte, desconhecida (e, a rigor, não-escrita com coerência interna e completude).

Foi a investigação sobre a democracia ateniense que levou algumas pessoas, como Hannah Arendt (1950-59), nos seus fragmentos sobre o sentido da política (publicados postumamente) a descobrir o que aqui estamos chamando de DNA da democracia, um DNA liberal no sentido democrático-originário do termo.

Se quisermos recuperar esse sentido liberal (originário) da democracia – diferente dos sentidos atribuídos pelo liberalismo político moderno e pelo liberalismo-econômico – é necessário ir à raiz do conceito (sim, a democracia liberal é a democracia radical). Para tanto é preciso continuar a exploração da democracia ateniense.

Onde tudo começa? Começa aqui: a minha liberdade começa não onde termina a do outro e sim onde começa a do outro. Claro que o conceito liberal clássico de liberdade (ausência de coerção) não é o mesmo conceito liberal democrático de liberdade dos atenienses (ninguém pode ser livre sozinho: a liberdade consiste em interagir na comunidade política).

É mais ou menos consenso que o liberalismo moderno surgiu na Inglaterra na resistência política que culminou com a Revolução Gloriosa de 1688 contra Jaime II. Defendia-se a tolerância religiosa e o governo constitucional. Esta foi a origem do liberalismo político moderno, dito clássico, surgido entre 1780 e 1860. Nele se destacam os pensamentos de J. Locke (1632-1704) e de Montesquieu (1689-1755), além de Alexis de Tocqueville (1805-1859), Benjamin Constant (1767-1830) e John Stuart Mill (1806-1873). Em termos políticos pode-se dizer que esse liberalismo é a primazia da liberdade individual sobre a vontade excessiva do Estado.

No entanto, o liberalismo não começou aí. Há um liberalismo antigo, que corresponde à democracia ateniense e que define, de modo mais abrangente, o liberalismo político. Liberal é toda política que toma como sentido a liberdade. Nada, além disso, acrescenta qualquer coisa relevante à tarefa de apreender o DNA da democracia.

A coisa política propriamente dita é a liberdade, mas não no sentido corrente, usual, da palavra – herdeiro da concepção liberal clássica – e sim no sentido que lhe atribuíram os democratas atenienses do século 5 a.C. Tal liberdade só podia se materializar na polis – um ambiente social configurado de tal maneira que possibilitasse aos seres humanos permanecerem juntos (sem ser na família ou na guerra) por tempo suficiente para viverem a sua convivência, criando mundos totalmente inéditos.

Isso não tem nada a ver com prover bem-estar para a população e sim melhorar as condições de convivência social (para que pessoas e comunidades possam caminhar com suas próprias pernas, inclusive para melhorar suas condições de vida). Quer dizer, não é dar ao povo “casa, comida e roupa lavada” (como da democracia muitos esperam atualmente e, por isso, se desiludem com os regimes democráticos).

Isso também não tem a ver diretamente com a boa governança.

Tem mais a ver com o que a democracia não é, como já foi dito no artigo Sete reflexões sobre o que a democracia não é, mas vale repetir aqui:

Democracia não é sobre governar e sim sobre se auto-organizar; não é sobre implantar alguma ordem social conhecida, julgada (por alguém) melhor do que outras e sim sobre permitir que ordens inéditas brotem da interação política dos cidadãos; não é adotar um modelo de regime político (para escolher os melhores representantes) e sim permitir que o processo de democratização – ou de desconstituição de autocracia – continue fluindo; não é sobre melhorar condições de vida e sim sobre melhorar condições de convivência social; não é o governo do povo e sim o governo de qualquer um (não de um, de poucos, de muitos, nem mesmo da maioria – daí que o sorteio, e não a votação, seja da sua essência); não é a utopia da política e sim o contrário (a política é a utopia da democracia); não é sobre se libertar de alguma coisa e sim sobre se comprazer na livre convivência da polis (ou seja, da comunidade política).

Só uma teoria democrática que levasse tudo isso em conta poderia recuperar o genos da democracia e explicar por que a democracia liberal é a democracia radical. Ao longo dessa jornada investigativa teremos a surpresa de ver que a democracia como invenção liberal-radical é outra coisa, bem diferente do que nos acostumamos a chamar, nos últimos três séculos, de democracia.

Populistas no poder ao redor do mundo (traduzido)

Sobre os democratas liberais radicais