Publicado originalmente na Escola-de-Redes em 09/09/2009
Os pioneiros do ciberespaço, sobretudo na sua vertente ideológico-literária, como os ciberpunks, não raro sob a inspiração benéfica de um movimento anarquista meio fora de época, emprenharam a geração digital que lhes sucederia com uma idéia-implante: a do medo do Grande Irmão. Curiosamente – e ironicamente – esse implante foi regado com a transpiração autoritária de outro movimento, assentado sobre bases que negavam os próprios princípios anarquistas: o estatismo. O Grande Irmão, antes identificado com o Estado e seus aparatos, passou a designar as grandes corporações empresariais, as multinacionais e transnacionais animadas pela ideologia neoliberal. Se o Estado, antes, era visto negativamente, depois passou, em virtude desse processo de impregnação ideológica antiliberal, a ser visto positivamente, como um poder nacional capaz de se contrapor à globalização (também esta vista negativamente como o poder das corporações globais). Caberia ao Estado proteger os povos da exploração dos megaconglomerados que queriam dominar o mundo. Só o Estado-nação – imaginavam – teria poder suficiente para se contrapor a esse poder sem controle alimentado pela ganância e (des)regulado caoticamente pela dinâmica do mercado.
Essa foi a tônica das manifestações de boa parte dos representantes dessa geração nos últimos 30 anos, do alinhamento político-partidário ou eleitoral no Brasil às mobilizações de Seattle. Tratava-se, então, não mais de liberar as forças criativas e empreendedoras dos cidadãos, mas de colocar um freio na desregulação que ensejava a desmesurada acumulação de poder econômico e político por parte dos novos e impiedosos atores globais. Tratava-se, portanto, não de trabalhar pela an-arquia e sim de produzir superavits de ordem top down, a partir de estruturas centralizadas de comando-e-controle, sempre segundo uma lógica política adversarial, deslizada da arte da guerra e inegavelmente autocrática.
Ao identificar como inimigo principal o processo de globalização – tomado, reducionisticamente, como globalização apenas econômica ou dos mercados – os participantes desses movimentos como que absolveram as estruturas centralizadoras que, há seis mil anos, vêm reproduzindo no mundo um padrão de hierarquização da rede social e, ao mesmo tempo, absolveram a si próprios de qualquer culpa pela verticalização do mundo. Todo mal está nos outros. O inimigo está lá fora e acima. Os demônios que devemos exorcizar são os grandes conglomerados que produzem a pobreza, a miséria, a fome e a devastação ambiental (conquanto uma rápida visita à China ou à ex Alemanha Oriental teria sido suficiente para refutar esta última alegação, mas isso agora não importa mais).
Na sua pressa por simplificar, por razões políticas, a interpretação do mundo, reduzindo-a a uma competição simétrica, a um embate do bem (os povos, arrebanhados em Estados-nações) contra o mal (as gananciosas corporações empresariais sem-pátria), não viram essas pessoas que o capitalismo realmente existente (não aquele dos livros dos economistas e dos discursos de outros ideólogos do mercado) foi, desde que surgiu, o resultado de uma associação perversa entre empresa monárquica e Estado hobbesiano. Mas isso agora também não importa mais porquanto – entrementes – uma nova época foi emergindo.
Mas a nova época, cuja gestação sua miopia não permitia entrever, não era, por incrível que pareça, a da disputa pelos rumos da globalização e sim a da efetiva trama subterrânea da glocalização. Não era a do surgimento das novas potências no chamado terceiro mundo em contraposição ao poder do Império (nem a desse outro besteirol designado pela sigla BRIC), como novos atores no cenário global, supostamente mais comprometidos com a erradicação da pobreza e das desigualdades (e que poderiam, com boa vontade e uma overdose de proselitismo ambiental, ser convertidos à luta contra o aquecimento global), mas a da emergência da sociedade em rede. Uma sociedade cada vez mais pulverizada e mais desorganizada (segundo os velhos padrões de ordem top down), porém cada vez mais interconectada, distribuída e clusterizada (em miríades de novas comunidades sócio-territoriais, setoriais ou temáticas, de prática, de aprendizagem e de projeto). Uma sociedade cada vez mais vulnerável ao swarming e ao crunching, em um mundo cada vez mais diverso e maior em termos geográfico-populacionais e cada vez menor em termos sociais (small world networks).
A idéia-implante do horror ao Grande Irmão, que na verdade se transformou em um programa verticalizador depois de ter abandonado sua raiz anárquica e passado a admitir a lógica da política como arte da guerra e a necessidade de regulação autoritária, continuou rodando na rede social (ou, se quisermos lançar mão de uma abstração, continuou vigendo como um modelo mental resiliente na cabeça dos indivíduos) e provocando uma cegueira coletiva. Tal cegueira não permitia ver que – na sociedade em rede (como sempre é mesmo qualquer sociedade, mas agora mais evidenciada porquanto emergindo em termos glocais com graus maiores de distribuição, conectividade e possibilidade de interação em tempo real ou sem-distância) – o Grande Irmão está também pulverizado em uma infinidade de “Pequenos Irmãos”. Ou seja, o Grande Irmão não está apenas lá fora, no cume dos megaconglomerados multinacionais, mas aí do seu lado, quem sabe sentado na sua própria cadeira de dirigente ou funcionário burocrático de uma pequena empresa, ONG ou órgão estatal (e justamente quando você está sentado nela).
Ele está no meio de nós. A fórmula ritual tirada de uma passagem da escritura evangélica evoca uma célebre controvérsia teológica e exegética sobre a presença do divino: estaria ‘Ele’ dentro de nós, (do coração) dos seres humanos como indivíduos ou entre nós – quer dizer, nas relações que tecem a comunidade – (quando conformamos um coração coletivo, o sentido original da assembléia dos amantes ou ecclesia)? Mutatis mutandis – e nesse caso mudando para o avesso: o avesso do ‘Ele’ como símbolo de fraternidade – o Grande Irmão também está no meio de nós, o que é uma outra maneira de dizer que o programa verticalizador está rodando na rede social à qual estamos conectados. Essa presença sacramental, prefiguração de uma estranha parousia onde o fim está no começo (dos sistemas de dominação), promove continuamente (ou intermitentemente) a verticalização do mundo, mas não por meio de uma estratégia global, de um plano sinistro de domínio do planeta e sim por meio da verticalização dos muitos mundos que, em termos sociais, compõem fractalmente o que chamamos de mundo.
Você verticaliza o seu mundo enquanto faz downloads desse programa verticalizador a partir da nuvem social que chamamos de mente. Mesmo que não queira, você é compelido a fazer isso em todas as suas atividades: quando monta uma empresa para prestar consultoria (e quer viver do sobrevalor gerado pelo trabalho de seus empregados ou colaboradores), quando funda uma ONG para defender a causa ambiental (e designa um board e um staff hierárquicos), quando organiza um time de futebol de várzea (e escolhe logo um presidente), quando articula uma “rede social” ou comunidade presencial ou virtual (e submete assuntos à votação produzindo artificialmente escassez). Você faz isso até quando estrutura uma associação de caridade, um grupo de oração ou um terreiro de Umbanda. Enquanto trabalha construindo fronteiras opacas ao invés de membranas permeáveis aos fluxos com o ambiente, você vê – e constrói permanentemente – inimigos (os que estão fora do seu espaço estratégico, daquele ambiente em que você aceita o outro no seu próprio espaço de vida mas somente na medida em que esse outro torne-se um “nós” organizacional). Enquanto faz isso, por certo, isso você não vê, mas você é o inimigo.
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