Terrestres é o que somos
É impossível explicar rapidamente um conjunto de observações sistemáticas, investigações e explicações que levaram décadas para ser reunidas, decodificadas e interpretadas. Basicamente, porém, uma tentativa de resumo pode ser a do velho Ésquilo, em Os Persas (472 a. E. C.): a democracia é não ter um senhor e, por extensão, não ter heróis ou seres, em algum sentido, superiores a nós, seja mandando-nos fazer qualquer coisa que não desejamos, seja nos revelando um verdadeiro passado (que estaria oculto aos olhos do vulgo), seja nos orientando sobre qualquer futuro pré-figurado, que consumaria nosso destino como povo eleito, grande nação e outras porcarias autocráticas semelhantes.
Ora, nós – os democratas – somos o vulgo. Nós somos aqueles que não reconhecemos a não ser os iguais a nós e através dos quais somos o que somos e somos como somos, porque queremos ser o que somos, porque seremos o que seremos e não porque devamos repetir o que fomos (ou que alguém quer dizer que fomos para tornar-nos repetição de um sonho que sonharam sem nós). Nós desobedecemos a esses criadores de narrativas, codificadores de doutrinas, determinadores de caminhos e colonizadores de consciências.
Não, os democratas não cultuamos heróis. Nossa perspectiva é lírica, não épica. Nenhum dos incensados (e construídos) gigantes que nos antecederam é superior (nem inferior) a nós. E mesmo que tivessem sido, em algum sentido, superiores, nós, diante deles, não nos curvaríamos. Nenhuma reverência prestamos-lhes por terem mais força, mais riquezas ou mais conhecimento ou pelo fato de trazerem no “sangue” as mônadas que constituirão uma nova raça. Mesmo se deuses fossem, não os idolatraríamos, nem lhes prestaríamos qualquer tipo de culto. O único culto que aceitamos é permanecer abertos a ser modificados pelo outro, mas o outro-imprevisível, não o outro escolhido e aceito, iniciado, preparado, purificado e aperfeiçoado e sim o outro qualquer mesmo, que compõe e representa, fractalmente, a humanidade inteira.
Nós somos os profanos, os sujos, os impuros, os curvos, os ignorantes dos segredos incógnitos, os que não aceitam ser regulados por nenhuma sabedoria, os que não pagamos um centavo por nenhuma verdade superior. Terrestres é o que somos, e sujos de terra, sim, a democracia é terrestre, não celeste, angélica ou divina como as doutrinas que legitimam as autocracias.
Nós somos os que desobedecem – a qualquer ser humano ou a qualquer deus que não esteja (e seja) entre-nós -, os que não repisamos caminhos já traçados, os que não nos deixamos levar por sulcos que foram cavados para fazer escorrer por eles as coisas que ainda virão.
Para ler as reflexões terrestres sobre a democracia:
Primeira reflexão terrestre sobre a democracia
Segunda reflexão terrestre sobre a democracia
Terceira reflexão terrestre sobre a democracia
Quarta reflexão terrestre sobre a democracia
Quinta reflexão terrestre sobre a democracia
Sexta reflexão terrestre sobre a democracia
Sétima reflexão terrestre sobre a democracia
Oitava reflexão terrestre sobre a democracia