Continuamos a transcrever o excelente livro de I. F. Stone (1988), O Julgamento de Sócrates, tradução brasileira de Paulo Henriques Britto, do original em inglês The Trial of Socrates, publicada pela Editora Schwarcz (São Paulo: Companhia das Letras, 2005).
Já foram publicados:
1) O Prefácio, o Prelúdio e os três primeiros capítulos da Primeira parte: 1 – As divergências básicas; 2 – Sócrates e Homero; 3 – Uma pista no episódio de Tersites
2) O quarto capítulo: A natureza da virtude e do conhecimento
3) O quinto capítulo: A coragem como virtude
4) O sexto capítulo: Uma busca inútil: Sócrates e as definições absolutas
5) O sétimo capítulo: Sócrates e a retórica
6) O oitavo capítulo: O ideal de vida: a terceira divergência socrática
7) O nono e último capítulo da Primeira parte: Os preconceitos de Sócrates.
8) O décimo e primeiro capítulo da Segunda parte: Por que esperaram tanto?
9) O décimo-primeiro capítulo, que é o segundo capítulo da Segunda parte: Os três terremotos
Segue abaixo o décimo-segundo capítulo (o terceiro da Segunda parte).
12. XENOFONTE, PLATÃO E OS TRÊS TERREMOTOS
XENOFONTE E PLATÃO ERAM ADOLESCENTES quando foi estabelecida a ditadura dos Quatrocentos em 411 a.C.; tinham idade suficiente para ter consciência política, mas eram jovens demais para participar quer da derrubada da democracia, quer de sua restauração. Quando, sete anos depois, foi instaurada a ditadura dos Trinta, ambos estavam na faixa dos vinte, mas não se tem notícia de que se tenham engajado em qualquer um dos lados do conflito. Com base nos relatos de que dispomos, aparentemente os dois não se afastaram da cidade com os democratas, o que seria impensável, em se tratando de dois jovens aristocratas. Seus nomes não são mencionados em relação aos acontecimentos de 401. Nesse mesmo ano, Xenofonte partiu de Atenas para atuar como oficial em comando de mercenários no exército persa. Nunca mais voltou a Atenas. Diz o Oxford classical dictionary. “Foi provavelmente em 399 a.C., o ano da morte de Sócrates e uma época difícil para o círculo socrático, que Xenofonte tornou- se formalmente um exilado”. Passou o resto da vida em Esparta.
Platão, ao contrário de Xenofonte, estava presente no julgamento de Sócrates, conforme consta na Apologia, mas tudo indica que fugiu da cidade antes da execução. Talvez temesse que movessem alguma ação contra ele também. Diz o OCD que, “juntamente com outros socráticos”, Platão refugiou-se num primeiro momento em Mégara, uma cidade vizinha. Permaneceu afastado da cidade por doze anos, e em suas viagens esteve até no Egito.
As Helênicas, obra escrita por Xenofonte em Esparta, são uma continuação da história de Tucídides, que só vai até 411. Xenofonte cobre o período até 400 a.C. Quaisquer que fossem suas origens e tendências políticas, Xenofonte escreve com uma objetividade admirável, e seu relato do debate entre Crítias e Terâmenes antes da execução deste é do nível dos grandes debates da história de Tucídides. Xenofonte vê Crítias de modo muito diverso da visão de Platão. Nos diálogos platônicos, Crítias é um personagem simpático; nas Helênicas, é um déspota repelente, ainda que obedeça a uma lógica fria.
Em suas Memoráveis, Xenofonte mostra um Sócrates mais contrário ao regime dos Trinta que o Sócrates platônico. Na Apologia, seu único gesto de desafio é recusar-se a participar da prisão de Leão de Salamina, mas sua indignação não é tanta que ele passe a fazer oposição ativa ao regime. Nas Memoráveis, Sócrates critica a ditadura publicamente em uma ocasião. Escreve Xenofonte: “No tempo em que os Trinta estavam mandando matar muitos cidadãos dos mais ilustres e levando muitos outros ao crime”, Sócrates utilizou uma de suas analogias favoritas para criticar a ditadura. Disse ele: “Parece-me estranho que um vaqueiro que deixa seus bois diminuírem em número e emagrecerem não admita ser um mau vaqueiro; porém mais estranho ainda é que o estadista que torna seus cidadãos menos numerosos e piores não sinta vergonha nem se considere um mau estadista” (1).
Considerando-se as circunstâncias, esse pequeno sermão parece um protesto um tanto tímido. Segundo as Helênicas de Xenofonte, Crítias e seus asseclas assassinaram 1500 atenienses durante o curto período de oito meses em que estiveram no poder, “número quase superior” ao dos que tinham sido mortos pelos espartanos durante os últimos dez anos da guerra do Peloponeso (2). Esse mesmo número aparece no tratado aristotélico sobre a Constituição ateniense. Afirma Aristóteles que, tendo se livrado dos democratas, os Trinta voltaram-se contra “as classes melhores” e “mandaram matar os que se destacavam por fortuna, berço ou reputação”, a fim de eliminar possíveis focos de oposição e saquear os bens de suas vítimas (3).
Xenofonte relata que o comentário de Sócrates chegou até os ouvidos dos ditadores e causou um confronto, no qual Sócrates teve oportunidade de atuar como opositor direto ao regime. Ele foi chamado a se apresentar a Crítias e a Cáricles, os dois membros dos Trinta encarregados de reformar as leis atenienses para o novo regime. Eles mostraram ao filósofo o texto de uma nova lei que proibia o ensino da téchne logon — a arte do discurso racional — “e proibiram-no de conversar com os jovens”.
Não estavam apenas proibindo Sócrates de conversar fiado com os jovens, mas dizendo-lhe que não poderia continuar com aquele tipo de ensino filosófico por ele iniciado, e que aguçara a inteligência de ao menos dois membros dos Trinta, Crítias e Cármides, ambos ex-discípulos de Sócrates. Era uma ótima oportunidade para Socrates fazer uma eloquente defesa de seus direitos enquanto professor e cidadão, e dizer o que achava da ilegalidade do regime.
Em vez disso, Sócrates perguntou:
“Posso lhes perguntar a respeito do que me parece obscuro nesta proibição?”.
“Sim”, responderam.
“Estou disposto a obedecer às leis”, disse Sócrates. “Mas para que não me aconteça infringi-las por ignorância, gostaria de saber certos pormenores com clareza. A arte da palavra [téchne logon] que me proíbem diz respeito ao raciocínio correto ou ao errôneo? Porque se se referem ao raciocínio correto, devo me abster do correto; mas se têm em vista o incorreto, devo tentar raciocinar corretamente.”
“Já que é tão ignorante, Sócrates”, disse Cáricles, irritado, “vamos falar em linguagem bem clara, mais fácil de entender. Está proibido de ter qualquer tipo de conversação [dialegesthai] com os jovens.”
“Nesse caso”, disse Sócrates, “para que não reste nenhuma dúvida em relação ao que é proibido, digam-me até que idade devo considerar um homem jovem.”
Respondeu Cáricles: “Até que ele tenha permissão de se tornar membro do conselho, por não ter siso suficiente. Assim, não fale com ninguém que tenha menos de trinta anos”.
“Então, se eu quiser comprar alguma coisa de alguém, não poderei sequer lhe perguntar ‘quanto custa isto?’, se o vendedor tiver menos de trinta anos?”
“Sim, isso é permitido”, disse Cáricles. “Mas a questão, Sócrates, é que você tem o hábito de fazer perguntas cujas respostas já conhece: é disso que o proibimos.”
Sócrates indaga se não pode mais falar em seus assuntos prediletos: “Justiça, Piedade, coisas assim?”.
“Isso mesmo”, disse Cáricles. “E vaqueiros também: senão você também verá diminuir o número dos bois” (4).
E assim, com uma ameaça velada, termina esse confronto não exatamente heroico.
O que temos aqui é um minijulgamento diante de dois importantes membros dos Trinta, análogo ao julgamento de Sócrates no regime democrático, quatro anos depois. O contraste entre a atitude de Sócrates numa ocasião e na outra é notável. Aqui não há nenhum sinal da postura de desafio que ele manteve diante do tribunal da democracia restaurada.
Xenofonte está fazendo o possível para mostrar que Sócrates não apoiava Crítias e os Trinta. Para ele, era importante poder dizer que, ao menos em segredo, Sócrates continuou a ensinar os jovens, cumprindo sua missão, apesar dos Trinta.
Não sabemos se esse confronto ocorreu antes ou depois do episódio em que Sócrates recusou-se a cumprir a ordem de prender e executar Leão de Salamina. Também não sabemos se foi antes ou depois da execução do líder moderado Terâmenes.
Mas desde o início o regime foi marcado pela ilegalidade e a repressão através de linchamentos. Não temos motivos para acreditar que Sócrates aprovava de alguma forma a ilegalidade e a crueldade do regime. Mas é decepcionante constatar que ele não se manifestou com energia contra eles, nem usou sua influência junto a seu velho amigo e discípulo Crítias no sentido de trazê-lo de volta para os caminhos da virtude. Se Sócrates tivesse agido dessa forma, ele teria se tornado um herói da resistência, e não teria havido julgamento algum depois.
Tudo que vemos no relato apologético de Xenofonte, porém, é Sócrates perguntando aos ditadores se não pode falar mais sobre “Justiça, Piedade, coisas assim”. Num momento em que ocorrem tantas injustiças e impiedades, pelo visto Sócrates só está preocupado com a velha busca de definições absolutas para seus temas favoritos. Ele ficou na cidade até o fim. Sócrates, que estava disposto a morrer enfrentando a democracia, opôs-se com muita moderação à ditadura dos Trinta.
Mas ainda nos resta uma questão intrigante: por que motivo Platão, em sua Apologia, não mostra Sócrates citando a lei contra o ensino da téchne logon para provar que ele próprio fora vítima da repressão dos Trinta?
Não há, é claro, como responder essa pergunta com certeza. Mas sempre podemos tecer especulações razoáveis. Em primeiro lugar, reconheçamos que o relato de Xenofonte a respeito do motivo pelo qual Crítias veio a instituir essa lei parece uma fofoca de última categoria. Segundo Xenofonte, Sócrates — numa sociedade em que a pederastia era a norma — provocou a animosidade de Crítias, antes dos tempos da ditadura, ao criticar o modo como Crítias cortejava o jovem Eutidemo.
Sócrates disse que o comportamento de Crítias era “indigno de um homem de bem”, e quando Crítias não lhe deu ouvidos, Sócrates “exclamou, na presença de Eutidemo e de muitas outras pessoas, ‘Crítias é semelhante a um porco, porque tem necessidade de se esfregar em Eutidemo tal como se esfregam os porcos nas pedras’”. Eis aí um bom exemplo do tipo de fofoca que circulava no jet set ateniense.
Segundo Xenofonte, Crítias “desde então guardou rancor contra Sócrates” e, “ao redigir as leis” com Cáricles, “inseriu uma cláusula que tornava ilegal” o ensino da téchne logon. Diz Xenofonte que aquilo foi “um insulto proposital dirigido a Sócrates” (5).
Pode ser. Mas é mais razoável supor que os Trinta estivessem tentando limitar os direitos de cidadania ao menor número de pessoas possível. Tentavam até mesmo evitar que esse eleitorado reduzido tivesse poder efetivo. Como seus protetores espartanos e como, mais tarde, os patrícios na república romana, eles certamente encarariam com hostilidade os professores de retórica, argumentação e filosofia. Não queriam que os cidadãos aprendessem artes que os capacitassem para a participação no governo. Detestavam as assembleias populares e as artes do debate público. Certamente encaravam a téchne logon como uma prática essencialmente subversiva, e por isso a proibiram.
Assim, esse seria um argumento particularmente relevante para a defesa de Sócrates no julgamento. Teria estabelecido um vínculo de solidariedade entre os democratas e o filósofo dissidente, todos vítimas do despotismo.
Por que motivo Platão não menciona esse fato? Talvez lhe fosse constrangedor utilizar como argumento essa proibição da téchne logon quando ele mesmo, na República, impunha restrições severas ao ensino da dialética na sociedade ideal por ele esboçada — e pelo mesmo motivo: para manter o poder absoluto nas mãos de um número bem reduzido de “reis-filósofos”.
Platão tinha cerca de 25 anos quando os Trinta tomaram o poder. Mas nos diálogos platônicos não se tira nenhuma conclusão desse episódio: ele jamais é discutido, nem mesmo mencionado. Como já sabemos, Crítias era primo e Cármides tio de Platão. Há apenas uma rápida menção aos Trinta em todo o cânon platônico, na Sétima carta, a mais interessante delas e a que é atribuída a Platão por maior número de estudiosos.
A carta teria sido escrita muitos anos depois dos acontecimentos, e nela afirma-se que alguns dos Trinta eram “parentes e conhecidos” do autor, mas nem Crítias nem Cármides são mencionados explicitamente. Afirma-se, porém, que eles “me convidaram certa vez a juntar-me a eles, julgando que a ideia me agradaria” . Não se explica por que os Trinta achavam que o convite agradaria Platão, mas afirma-se que eles haviam se instalado como “governantes absolutos” (autokratores, i.e., “autocratas”).
“Os sentimentos que então experimentei, devido a minha mocidade”, explica Platão, “foram perfeitamente compreensíveis, pois imaginei que fossem administrar o Estado de modo a tornar justo o que era injusto”. Entende-se daí que, de início, Platão sentiu-se inclinado a aceitar o convite.
Porém, diz ele, em pouco tempo desiludiu-se. “Vi que esses homens logo fizeram com que as pessoas relembrassem o antigo governo como uma idade de ouro” (6). Na verdade, o original não fala em “idade do ouro” mas em “politeia de ouro”, onde politeia significa “sistema político”.
Essa expressão, e esse reconhecimento surpreendente, talvez seja indício de que a carta não é autêntica. Pois em nenhum outro texto de Platão encontra-se qualquer sinal de que os terríveis eventos do episódio dos Trinta tenham feito com que Platão encarasse com mais simpatia as restrições impostas aos governantes pela democracia ou questionasse as virtudes do absolutismo.
Certamente tais eventos não influenciaram nem um pouco a imagem de Crítias e de Cármides para Platão. Os dois aparecem nos diálogos como figuras idealizadas. Em nenhuma passagem tiram-se conclusões políticas do breve período em que eles estiveram no poder. Cármides, no diálogo que leva seu nome, aparece como um jovem belo e talentoso, interrogado por um Sócrates encantado, para saber se sua alma é tão bela quanto seu corpo.
No mesmo diálogo, Crítias é uma figura honrada. O objetivo do diálogo é chegar-se a uma definição perfeita — à qual, como sempre, acaba não se chegando — de sophrosyne, moderação, coisa que, como a história veio a demonstrar, os dois precisavam aprender. É possível que Sócrates se refira com muita sutileza a esse fato bem no final do diálogo, onde ele adverte o jovem de que, “se começar a fazer algo através da força, ninguém o suportará” (7). Mas Terâmenes, o verdadeiro modelo de moderação no relato de Aristóteles a respeito dos acontecimentos de 411 e 404, e que aparece como herói na história de Xenofonte, jamais é mencionado no cânon platônico; tem-se quase a impressão de que Platão sequer suportava mencionar-lhe o nome.
Crítias aparece também como um personagem reverenciado em três outros diálogos de Platão: o Protágoras, o Timeu e o Crítias — e num quarto diálogo, de qualidade inferior, o Eríxias, hoje geralmente considerado obra de algum seguidor de Platão. Seja genuíno ou não, ele mostra que Crítias continuava sendo encarado com reverência pelas escolas platônicas (8).
Essa reverência em relação a Crítias, que contrasta de modo tão gritante com a repulsa geral que se sentia em relação a ele e os Trinta no século IV a.C., certamente foi promovida na academia de Platão por dois dos diálogos mais fascinantes da velhice do autor; o Timeu e o Crítias. Nessas fantasias utópicas, o nome de Crítias é investido de uma venerabilidade vetusta; é como se esses diálogos visassem reabilitá-lo politicamente.
É no Timeu que encontramos pela primeira vez a lenda da Atlântida, uma terra fabulosa que desaparecera no oceano Atlântico, além das Colunas de Hércules. E possível que Platão tenha elaborado a história com base em alguma narrativa folclórica já existente. Trata-se da versão platônica da Criação, e suas visões místicas fascinaram a Europa medieval, onde era a única obra de Platão realmente conhecida (numa versão resumida e em latim, de Calcídice) antes da queda de Constantinopla, quando os turcos causaram um êxodo de estudiosos gregos para a Europa ocidental; foi com eles que chegou o resto do cânon platônico.
No entanto, não nos interessa aqui a teologia do Timeu, que até hoje fascina os leitores, mas suas intenções políticas. Do mesmo modo como Crítias tentara transformar a natureza da sociedade ateniense, Platão tentou, no Timeu e no Crítias, transformar a história grega e a ideologia política ateniense. Para esse fim, ele utilizou Crítias como porta-voz. O nome do ditador foi associado a um novo mito, que visava realizar, no campo da ideologia, o que Crítias não conseguira realizar na prática política. Platão, filósofo revolucionário e propagandista de gênio, empreendeu a tarefa de reescrever a história.
O objetivo de Platão era duplo. A democracia ateniense se inspirava em duas vitórias lendárias. Uma delas era o papel desempenhado por Atenas na salvação da civilização helênica nas guerras contra os persas, que Heródoto e Ésquilo apresentam como uma vitória de homens livres combatendo o despotismo, um tributo à força da democracia como fonte de heroísmo na guerra, dando aos homens uma causa por que lutar.
A outra era a velha tradição ateniense, preservada na Vida de Teseu de Plutarco, a respeito do fundador de Atenas, que teria sido, já naqueles tempos arcaicos, um democrata. Segundo Plutarco, Teseu conseguiu unir as cidades independentes da Ática em uma única cidade-Estado, Atenas, mobilizando tanto o dêmos quanto os proprietários contra os régulos que as governavam, prometendo aos aristocratas um “governo sem rei” e ao povo o direito de participar do governo. Escreve Plutarco: “A gente mais simples e os pobres rapidamente atenderam a seu apelo” (9). Teseu afirmava que “ele seria apenas o comandante em tempo de guerra e o guardião das leis, enquanto sob todos os outros aspectos todos seriam iguais”.
Isso não passava de mitologia política. A verdadeira democracia só foi conquistada séculos depois. Os democratas atenienses também gostavam de citar o famoso catálogo de navios de Homero para mostrar que, na expedição contra Troia, os atenienses — e apenas eles — já eram denominados dêmos, isto é, um povo que governava a si próprio (10).
No Timeu e no Crítias, Platão propõe um mito autoritário para substituir esses mitos democráticos. O porta-voz de Platão é um personagem chamado Crítias. Até hoje, porém, os estudiosos discutem se esse é o mesmo Crítias que governou Atenas no tempo dos Trinta ou seu avô, que tinha o mesmo nome. E possível que Platão, mestre da sutileza e da ambiguidade, tenha deixado essa identificação deliberadamente em aberto. No século IV a.C., época em que escrevia, Crítias era considerado um monstro, e os leitores ficariam surpresos ao vê-lo retratado como um estadista respeitável. Um pouco de obscuridade era conveniente.
Ao apresentar Crítias, Sócrates diz que ele próprio não é capaz de dizer de que modo poderia ser criado tal Estado ideal. Afirma que seria necessária a presença de um estadista e convida Crítias a assumir tal tarefa, pois, “como todos sabemos”, Crítias “não é um novato” em matéria de teoria e prática política (11).
A conversação dos personagens do Timeu é apresentada como uma continuação da República. O mito da Atlântida, tal como relatado por Crítias, visa investir aquele esboço de sociedade ideal de uma aura de antiguidade. A ideia era fazer com que a República parecesse representar não uma ruptura radical com a tradição ateniense, mas uma reencarnação, 9 mil anos depois – número que tinha uma significação mística entre os pitagóricos, por ser mil vezes o quadrado do número 3 – de uma Idade de Ouro ateniense até então desconhecida. Assim, a fantasia política de Platão é apresentada como uma recriação da verdadeira Atenas.
A lenda da Atlântida teria sido preservada numa ilustre família aristocrática – a da mãe de Platão – por um avô chamado Crítias, que a ouvira de seu avô, também chamado Crítias, o qual, por sua vez, a ouvira de seu pai, Dropides. Este, segundo o Timeu, ouvira a história de Sólon, a quem ela fora relatada por sacerdotes egípcios, quando Sólon viajava por aquela terra já então antiquíssima.
Esse último detalhe fazia com que o ideal platônico de uma sociedade de castas fosse associado ao nome de Sólon, que era venerado pelos atenienses como o fundador da democracia. Era um golpe de mestre do Platão propagandista como argumento em favor de sua Nova Ordem. Crítias afirma que Sólon talvez tivesse tentado aplicar em Atenas o que aprendera no Egito, porém teria sido obrigado a pôr de lado essas revelações “devido às sedições e a todos os outros males que encontrou aqui [i.e., em Atenas] ao voltar” (12).
Fora graças a esse rígido sistema de castas vigente na Idade do Ouro de Atenas, explica Crítias, que a cidade pôde preservar a civilização helénica da investida militar da Atlântida. Platão propunha esse mito em substituição à epopeia das guerras contra os persas, nas quais Atenas, graças à democracia, pôde salvar a Grécia da dominação persa.
Como antídoto a essa história de fadas política, voltemos às sóbrias páginas da Constituição de Atenas, de Aristóteles. Nelas ficamos sabendo o motivo das “sedições” — para usar o termo pejorativo de Crítias — que Sólon encontrou ao voltar do Egito para Atenas. Os pobres da Ática tinham praticamente se transformado em escravos dos ricos através de um sistema no qual a legislação relativa à hipoteca dava aos credores o direito de impor a servidão aos devedores incapazes de saldar suas dívidas, bem como a suas famílias. Segundo Aristóteles, Sólon, para restaurar a estabilidade social e estabelecer um mínimo de justiça, extinguiu esse sistema de servidão. Se Sólon tivesse gostado do que vira no Egito, esse sistema seria um meio oportuno de instituir na Ática a escravidão por dívidas que havia entre os egípcios. Crítias morreu na tentativa de pôr em prática o ideal platônico.
A contrapartida do mito da Atlântida é outro mito platônico, o mais famoso de todos: a “nobre mentira” da República. Também esse mito é de natureza antidemocrática. Seu objetivo era inculcar na classe média e nos pobres uma sensação de inferioridade irremediável, de modo a “programá-los”, como diríamos hoje, para se submeterem aos reis-filósofos. O que Crítias tentara fazer por meio do terror, Platão tentou fazer através da “lavagem cerebral”, para empregar mais um neologismo.
No grande debate referente à utilização do terror entre o linha-dura Crítias e o moderado Terâmenes, nas Helênicas de Xenofonte, Crítias defende o terror com uma lógica impiedosa. Quando o conselho dá sinais de estar sendo convencido pela argumentação de Terâmenes em favor da moderação, Crítias afirma: “Se algum de vós julga estarem sendo mortas mais pessoas do que seria certo, que se leve em conta o fato de tais coisas sempre acontecerem quando se dá uma mudança de governo”.
Esse é o argumento sempre empregado pelos ditadores de nosso século, de Mussolini a Mao Tsé-Tung. Mas Crítias, com franqueza e objetividade incomuns, leva esse raciocínio mais adiante. Afirma que, se houve muitas execuções durante seu governo, é porque os inimigos da ditadura são muito numerosos. Diz ele que Atenas é não apenas a mais populosa das cidades- Estados gregas como também é nela que o povo “vive em liberdade há mais tempo” (13).
Como desarmar e privar dos direitos de cidadania um povo há dois séculos acostumado à igualdade e ao livre debate, sem impiedosas execuções em massa? Era com essa lógica fria que Crítias tentava justificar não apenas o que ele havia feito com os democratas, mas também o que estava fazendo agora com seus aliados moderados e seu rival Terâmenes. Temos aqui o nascimento do totalitarismo.
Platão, que buscava uma transformação igualmente radical, tentou imaginar, na paz de sua academia, de que modo se poderia acostumar um povo livre a um novo regime de servidão. A solução que encontrou foi um complexo sistema de doutrinação ideológica imposto pelo Estado, através do qual as “massas” seriam habituadas desde a infância a se considerarem inferiores. Elas aprenderiam que haviam nascido sem liberdade e sem igualdade. Então — imaginava Platão — obedeceriam de bom grado àqueles que se consideravam superiores.
É essa a nobre mentira que Platão propõe pela boca de Sócrates no terceiro livro da República. Sua franqueza é tão completa quanto a de Crítias. Pergunta Sócrates: “De que modo, pois, poderemos inventar uma dessas mentiras úteis de que falávamos ainda há pouco, uma nobre mentira que convencesse, se possível, os próprios governantes, porém ao menos o resto dos cidadãos?”. Platão supõe que os governantes, sendo filósofos, talvez não consigam engolir a propaganda por eles próprios espalhada, mas que as massas talvez acabassem acreditando. A nobre mentira é a ideia de que os homens são intrinsecamente divididos em quatro classes: a minoria de filósofos governantes, a casta militar que impõe as ordens da primeira classe, a classe média de comerciantes e artesãos e — em último lugar — os trabalhadores braçais e agricultores.
O Sócrates platônico afirma que, embora todos sejam na verdade irmãos, filhos da mesma mãe, a Terra, é necessário convencê-los de que são feitos de metais diferentes. Explica ele: “Embora todos vocês, cidadãos, sejam irmãos, diremos em nosso mito que Deus, ao criar aqueles dentre vocês que são capazes de exercer o poder, em sua composição fez entrar o ouro, e por esse motivo são eles os mais preciosos”. A nobre mentira dirá que os “guardiães”, ou seja, a casta dos militares, são também feitos de um metal precioso, se bem que de valor menor — a prata. A maioria dos cidadãos teria sido feita de metais vis, ferro e bronze (14).
O leitor descuidado pode deixar de perceber um fato importante nesse ponto, especialmente se está usando a edição Loeb. Trata-se de uma edição admirável, cheia de anotações preciosas; porém está impregnada do espírito de platonismo cristão do tradutor, o grande estudioso americano Paul Shorey. No trecho citado acima, Shorey usa o termo the helpers [“os ajudantes”] para se referir aos guardiães, a casta dos militares. A palavra empregada por Platão é epikouroi, que de fato tem “ajudantes” como uma acepção possível. Mas na linguagem militar da época, epikouroi significava “soldados mercenários”, isto é, que não eram cidadãos.
O leitor grego da época compreenderia perfeitamente aonde Platão queria chegar. A base da democracia na pólis era o soldado-cidadão. O cidadão armado não apenas defendia a liberdade da cidade como também podia usar suas armas para defender sua própria liberdade.
Em Atenas, em 411 e 404, o partido antidemocrático desarmou tanto os pobres quanto a classe média para impor seu jugo. Crítias dependia de uma guarnição de tropas de ocupação espartanas, seus epikouroi. Era para pagar esses soldados que Crítias expropriava os bens de estrangeiros ricos, como Leão de Salamina. O objetivo da casta militar na República de Platão, tal como no Egito, era manter o povo desarmado e incapaz de oferecer resistência a seus senhores.
Numa outra passagem, Sócrates refere-se à casta militar como phylakes, os guardiães, e diz que eles devem atuar como “guardiães em todos os sentidos da palavra, em guarda contra os inimigos de fora e os amigos de dentro, para que estes não queiram e aqueles não possam prejudicar” o Estado ideal.
Observe-se que os “guardiães” devem agir contra os dissidentes dentro da cidade tanto quanto em relação aos inimigos estrangeiros. Os phylakes ou epikouroi atuavam não apenas como um exército de ocupação, mas também como a polícia de um Estado policial. Esse é o lado negro da utopia platônica. Nesse ponto convergem a teoria de Platão e a prática de Crítias.
Mas não é só nesse ponto que os dois concordam. Além de instituir a mentira oficial, a “doutrinação”, Platão estava tão disposto quanto seu primo a usar da força para realizar o sonho de criar uma Nova Ordem e um Novo Homem, mais submisso que o antigo.
Na República e nas outras utopias platônicas, quando os dissidentes se recusassem a ser convencidos, ou a fingir que estavam convencidos, seriam eliminados de modo tão implacável quanto Crítias eliminava a oposição a seu governo. Encontramos três exemplos disso no cânon platônico. O primeiro está no Político, no qual o ideal de Platão é a monarquia absoluta. Nesse diálogo, escrito na velhice, Platão usa como porta-voz — tal como fará mais tarde nas Leis — um “Estrangeiro”, que é evidentemente o próprio Platão. O Estrangeiro oferece a analogia socrática do médico como “aquele que sabe” e portanto tem o direito de mandar em seu paciente. A partir dessa imagem, tira uma conclusão política implacável.
Diz o Estrangeiro que o médico nos cura, “quer com nosso consentimento, quer sem ele, cortando-nos ou queimando-nos”, seja “por meio de regras escritas ou sem elas”, “nos purgando ou nos submetendo de algum outro modo”. Pelo visto, a palavra “purgar” [ou expurgar] tem aqui algumas das conotações sinistras que adquiriu em nosso tempo.
O Estrangeiro afirma que o médico tem o direito de proporcionar dores ao paciente desde que esteja trabalhando “segundo a arte ou a ciência” e faça com que o paciente fique “melhor do que estava antes”. O rei ideal deverá governar desse modo e seguindo a mesma lógica. Para o Estrangeiro, “essa é a única definição correta do poder do médico e de qualquer outro poder” (15). Ou seja: o único poder verdadeiro é o poder absoluto, que requer a submissão absoluta.
A passagem em que é definido “o único poder verdadeiro” parece ser a única, em todos os diálogos platônicos, em que se afirma que finalmente chegamos a uma “única definição correta”. Tais definições exatas e absolutas representam a única forma verdadeira de episteme, ou seja, de conhecimento verdadeiro. Platão julga ter provado que o absolutismo é a única forma legítima de governo. Como é a única forma legítima de poder, ela tem o direito de matar ou banir súditos “para seu próprio bem”.
Naturalmente, como todo argumento baseado em analogias, esse tem suas falácias. O médico não exerce poder absoluto sobre o paciente. Se este acha que o tratamento lhe está fazendo mal, ele pode trocar de médico. Se acha que foi prejudicado, pode processar o médico por negligência. Já naquela época, como agora, o médico fazia o juramento hipocrático, que o sujeitava ao opróbrio e à perda do direito de exercer a profissão se agisse de modo impróprio. O médico, ao contrário do governante investido de poderes absolutos, não era ao mesmo tempo juiz e júri; não podia decidir que tudo aquilo que fosse feito por ele era ipso facto científico.
Quanto à justiça, como estabelecer o equilíbrio entre o que era bom para o Estado ou a comunidade e o que era bom para o indivíduo? Em todas as épocas, a lei vem tentando pesar em sua balança sensível a preocupação com ambos. Mas para Platão o protótipo do teórico do totalitarismo — era o Estado, a abstração, que importava. Era o Estado que justificava a morte ou o banimento de indivíduos cujo único crime era não se adaptar à Nova Ordem.
Isso fica bem claro no segundo exemplo que veremos do modo impiedoso como Platão buscava a perfeição: a política eugênica de pureza racial, ou de casta, apresentada na República, juntamente com a insólita proposta de esposas e filhos comuns entre os guardiães (16).
Platão gostaria de criar seres humanos como se criam animais. Para melhorar “o rebanho de guardiães”, sua procriação seria rigorosamente controlada pelo Estado, e a formação de casais seria determinada, aparentemente, por sorteio. Mas na verdade o sorteio seria de cartas marcadas, com fins eugênicos, de modo que “os melhores homens coabitem com as melhores mulheres no maior número de casos possível, assim como os piores com as piores no menor número possível […] a fim de que o rebanho seja o mais perfeito possível” (17).
Como seria possível manter esse logro em segredo? Como resolver os ciúmes sexuais que seriam despertados? O que impediria os guardiães, os únicos a portar armas, de expulsar o rei-filósofo (ou reis-filósofos)? Nenhuma dessas questões de caráter prático é abordada. Aqui o utopismo é levado às raias da loucura.
Temos outro exemplo ainda mais alucinado, se é que tal coisa é possível. Aparece no final do sétimo livro da República, e daria uma cena impagável numa sátira a Platão.
O primo Crítias exilara primeiro os democratas e depois os moderados, em sua tentativa de refazer Atenas. Mas Platão vai mais longe. Seu Sócrates imagina que “a maneira melhor e mais rápida” de preparar o campo para a cidade ideal é exilar todo mundo que tiver mais de dez anos, e deixar as crianças para serem remodeladas pelos filósofos.
Sócrates está ansioso para demonstrar que o ideal que ele apresenta “não é um mero devaneio”. Diz ele: “É de certo modo possível, desde que haja na cidade um ou vários governantes que sejam verdadeiros filósofos” e, “considerando a justiça a maior e mais necessária de todas as coisas”, assumam a tarefa de “reorganizar e administrar sua cidade” (18). Seu interlocutor, confuso, pergunta de que maneira isso se dará.
Responde Sócrates: “Todos os habitantes que tenham mais de dez anos de idade serão enviados para o campo, e [os reis-filósofos] se encarregarão das crianças, subtraindo-lhes os costumes de seus pais e educando-as segundo seus próprios costumes e leis, isto é, aqueles que vimos apresentando”.
Sócrates julga que é essa a maneira mais rápida e mais fácil de criar sua cidade perfeita “e trazer os maiores benefícios ao povo”. Seu interlocutor dócil concorda que essa seria “de longe a maneira mais fácil”. Ninguém levanta nenhuma questão problemática. É espantoso constatar como é escassa a dialética nos momentos cruciais dos diálogos platônicos.
Um método fácil? De que modo um punhado de filósofos cuidaria de um pequeno exército de crianças? Só mesmo um solteirão como Platão, que nunca na vida trocou uma fralda, poderia levar a sério uma proposta dessas. Como impedir que os pais angustiados e furiosos voltassem à noite do “campo” — para usar o termo eufemístico empregado por Platão para matar esses filósofos malucos e recuperar os seus filhos e a sua cidade? Como podia o Sócrates platônico falar em justiça, qualificando-a de “a maior e mais necessária de todas as coisas”, e logo em seguida propor que toda uma cidade fosse subvertida e toda uma geração fosse condenada a sofrimentos tais, sem seu consentimento, contra a sua vontade?
Estaria Platão distorcendo grosseiramente as verdadeiras posições de seu mestre? Ou haveria de fato uma ligação umbilical entre essa concepção e o desdém manifestado por Sócrates em relação à democracia? Será que Platão achava que essa ideia seguia-se logicamente à concepção socrática da comunidade humana como um rebanho, a ser “reduzido’ para seu próprio bem por um pastor sábio, seu soberano natural, “aquele que sabe”?
A maioria dos seguidores devotos de Platão fecha os olhos para essa passagem da República. Alan Bloom, um dos poucos que ousam enfrentar os absurdos clamorosos nela expostos, apela para a teoria de que nesse trecho Platão estaria na verdade satirizando seu próprio utopismo! Essa explicação até poderia ser plausível, não fosse o fato de que no Político, nas Leis, no Timeu e no Crítias encontramos visões semelhantes do Estado ideal. E pouco provável que Platão tenha passado a vida inteira satirizando a si próprio.
O horror culminante numa antologia do pensamento político de Platão seria a metáfora da “lousa limpa” no sexto livro da República. O autor nos prepara para ela fazendo Sócrates apresentar uma visão rósea das qualidades que legitimam o direito do filósofo de exercer o poder absoluto. Sócrates descreve o verdadeiro filósofo como “o homem cuja mente está verdadeiramente fixa nas realidades eternas”. Por isso “não tem ele tempo de voltar os olhos para as ações mesquinhas dos homens”, porém “fixa o olhar nas coisas da ordem eterna e imutável” que pode ser percebida nos céus e nos movimentos das estrelas. Assim, o filósofo “torna-se ele próprio ordenado e divino até onde tal é dado aos homens” (19). Sendo semelhante à divindade, o filósofo pode, se assim o quiser, reassumir a obra da Criação e criar um Novo Homem.
Sócrates coloca essa ideia na forma de uma pergunta dirigida a seu interlocutor. Indaga ele: “Se alguma necessidade o leva a tentar moldar a matéria maleável da natureza humana, quer em Estados, quer em indivíduos, de acordo com aquilo que vê lá no alto [nos céus], em vez de moldar apenas a si mesmo, acredita que ele possa se revelar um mau artífice da sobriedade, da justiça e de todas as formas de virtude cívica?” (20).
Eis o tipo de pergunta que seria rejeitado em qualquer tribunal, mesmo pelo juiz mais sonolento, por ser tendenciosa. Um observador irreverente poderia perguntar a Sócrates nesse ponto se um homem sem tempo “de voltar os olhos para as ações mesquinhas dos homens” seria a escolha ideal para reorganizar essas ações e resolver de que modo elas deveriam passar a ser. Mas o interlocutor platônico, como sempre, limita-se a concordar, reverente. O que deveria ser questionado e testado pela argumentação é simplesmente pressuposto.
Sócrates em seguida faz outra pergunta tendenciosa, referente à conversão instantânea dos democratas em crentes nas visões celestiais do filósofo. “Mas se a multidão se der conta de que o que estamos dizendo a respeito do filósofo é verdade, ela continuará a se indispor com a filosofia e desconfiará de nós quando dissermos que cidade alguma pode ser feliz se suas linhas gerais não forem traçadas por artistas que copiem o modelo celestial?”
Sócrates explica que o rei-filósofo ou os reis-filósofos “tomarão a cidade e os caracteres dos homens como quem toma uma lousa de escrever, e tratarão de limpá-la antes de mais nada”. Mas admite que “isso não é fácil”. Pois o que Crítias tentou fazer com Atenas foi justamente “limpar a lousa”, e a dificuldade da tarefa foi a desculpa que ele usou para justificar as crueldades que seu objetivo revolucionário o levou a cometer.
Sócrates não nos diz de que modo essas dificuldades serão vencidas, nem tal coisa lhe é perguntada. “Mas, como bem sabes”, diz ele, “nisso reside a primeira diferença entre eles [os reis-filósofos] e os reformadores comuns: eles não consentiriam em tocar numa cidade, sequer numa pessoa, […] enquanto não a tivessem recebido limpa ou eles próprios a limpassem.” Seu poder deve ser absoluto e inatacável.
O Sócrates platônico parece achar que tudo isso talvez pudesse ser aceito pelos atenienses. Pergunta ele: estaremos convencendo aqueles que “avançavam contra nós dispostos a tudo? Poderemos convencê-los de que um tal pintor político de caracteres existe? Já não terão eles se acalmado um pouco após ouvirem o que estamos dizendo?”. Resposta — mais uma vez, sem qualquer argumentação: “Bastante” (21).
Felizmente para Sócrates, na época de seu julgamento a República não tinha ainda sido escrita e portanto não podia ser lida para seus juízes. Se era de fato isso que Sócrates ensinava, ou se tais eram os efeitos de seus ensinamentos sobre um jovem brilhante como Platão, seria mais difícil ainda convencer os juízes de que Sócrates não havia transformado alguns dos mais brilhantes jovens de Atenas em perigosos revolucionários. A lembrança ainda recente dos Trinta deixava bem claro o grau de desumanidade que se escondia por trás da singela expressão “limpar a lousa”.
Notas
1. Memoráveis, 1.2.32 (Loeb 4:27).
2. Helênicas, 2.4.21 (Loeb 1:157).
3. Constituição de Atenas, 35.4 (Loeb 103).
4. Memoráveis, 1.2.33-38 (Loeb 4:29-31).
5. Ibid., 1.2.29-31 (Loeb 4:25-27).
6. Platão, Sétima carta, 342C (Loeb 479).
7. Ibid., 176D (Loeb 91).
8. O Eríxias pode ser encontrado in Jowett, Plato, 2:559, ou na edição Bohn, 4:59.
9. Plutarco, Vida de Teseu, 24.2 (Loeb 1:53).
10. Ilíada, 2.547 (Loeb 1:91). Aqui, porém, dêmos é traduzido como “terra”, uma leitura que encontra apoio no léxico homérico de Cunliffe, se bem que no verso 198 do mesmo livro da llíada tanto a Loeb quanto Cunlifife traduzam demou andra como “homem do povo”. Na Antiguidade, os detratores de Atenas afirmavam que essa referência em Homero era uma interpolação tardia feita por algum ateniense. Essa controvérsia, ainda em aberto, é bem resumida em Alan J. Wace e Frank H. Stubbings, Companion to Homer (Londres, Macmillan, 1962), 239.
11. Platão, Timeu, 19E-20B (Loeb 7:25-27).
12. Ibid., 21C (Loeb 7:31).
13. Helênicas, 2.3.25 (Loeb 1:125).
14. República, 414C-415A (Loeb 1:301-305).
15. Político, 293A-C (Loeb 3:131).
16. República, 4.424A, 5.449C, 457C ss. (Loeb 1:331, 427, 453 ss.).
17. Ibid., 5.459C-E (Loeb 1:461).
18. Ibid., 540D ss. (Loeb 2:231-233 ss.).
19. Ibid., 6.500C (Loeb 2:69).
20. A palavra que aparece no original é sophrosyne, normalmente traduzida por moderação . A tradução de Shorey aqui, “sobriedade”, parece irônica nesse contexto, já que dificilmente uma pessoa sóbria proporia uma ideia como essa. República, 500D (Loeb 2:71).
21. Ibid., 501A-C (Loeb 2:73).