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Três golpes contra a democracia ateniense – O Julgamento de Sócrates de I. F. Stone – 9

Continuamos a transcrever o excelente livro de I. F. Stone (1988), O Julgamento de Sócrates, tradução brasileira de Paulo Henriques Britto, do original em inglês The Trial of Socrates, publicada pela Editora Schwarcz (São Paulo: Companhia das Letras, 2005).

Já foram publicados:

1) O Prefácio, o Prelúdio e os três primeiros capítulos da Primeira parte: 1 – As divergências básicas; 2 – Sócrates e Homero; 3 – Uma pista no episódio de Tersites

2) O quarto capítulo: A natureza da virtude e do conhecimento

3) O quinto capítulo: A coragem como virtude

4) O sexto capítulo: Uma busca inútil: Sócrates e as definições absolutas

5) O sétimo capítulo: Sócrates e a retórica

6) O oitavo capítulo: O ideal de vida: a terceira divergência socrática

7) O nono e último capítulo da Primeira parte: Os preconceitos de Sócrates.

8) O décimo e primeiro capítulo da Segunda parte: Por que esperaram tanto?

Publicamos abaixo o décimo-primeiro capítulo, que é o segundo capítulo da Segunda parte.

11. OS TRÊS TERREMOTOS

NÃO HAVIA PROMOTOR PÚBLICO EM ATENAS. Qualquer cidadão podia apresentar uma acusação em juízo. Se durante toda a vida de Sócrates vinha se formando um preconceito contra ele devido a acusações anônimas e comédias, tal como ele afirma na Apologia, então por que motivo ninguém apresentou queixa contra ele antes que o filósofo completasse setenta anos de idade? A resposta parece conter duas partes. Em primeiro lugar, Atenas devia ser extraordinariamente tolerante em relação a opiniões dissidentes. Em segundo lugar, alguma coisa deve ter acontecido durante a velhice de Sócrates que fez com que a cidade se tornasse bem menos tolerante.

O que aconteceu que teve o efeito de fazer com que as velhas piadas perdessem a graça? O que fez com que o preconceito contra Sócrates gerasse uma acusação formal? A resposta, a meu ver, encontra-se em três “terremotos” políticos que ocorreram durante um período de pouco mais de dez anos antes do julgamento, que abalaram a sensação de segurança interna da cidade e tornaram apreensivos seus cidadãos. Não fosse por tais acontecimentos, Sócrates jamais teria sido acusado, nem mesmo se outros tantos poetas cômicos se pusessem a satiriza-lo.

As datas desses acontecimentos alarmantes são 411, 404 e 401 a.C. Em 411 e em 404, elementos descontentes, em conivência com o inimigo espartano, derrubaram a democracia e estabeleceram ditaduras, instaurando o terror. Em 401 a.C., apenas dois anos antes do julgamento, houve mais uma tentativa de golpe. Em todas as três convulsões cívicas, desempenharam um papel importante jovens ricos como os que se destacavam na entourage de Sócrates.

Os personagens parodiados nas Nuvens e nos Pássaros, já tão conhecidos, certamente passaram a ser encarados sob um novo ângulo, tornando-se sinistros. O jovem aristocrata perdulário, Feidípides, que vai estudar no “pensatório” socrático em As nuvens, já não parecia mais um janota inofensivo. Agora uma realidade dolorosa transparecia por trás de sua fala exultante, antes da cena em que ele dá uma surra no pai: “Como é bom aprender ideias novas e engenhosas e poder olhar com desdém as leis estabelecidas” (1). Os jovens “socratizados” dos Pássaros, com seus porretes à espartana, já não pareciam mais tão engraçadinhos. Haviam se transformado nas tropas de choque utilizadas pelos Quatrocentos em 411 e pelos Trinta em 404 para espalhar o terror pela cidade.

Nos períodos elegantes e sedutores de sua Apologia, Platão não deixa que esses acontecimentos políticos se imponham à consciência do leitor, embora fossem lembranças ainda bem nítidas para os juízes. Tampouco os menciona em nenhuma passagem de seus numerosos diálogos (2). Como uma das principais preocupações de Platão era concretizar uma política virtuosa, essa curiosa lacuna nos diálogos era claramente fruto de uma amnésia política seletiva.

Conhecemos relatos bem vívidos do que aconteceu. Tucídides é a melhor fonte para os eventos de 411, e Xenofonte para os de 404, em suas Helénicas. A primeira ditadura — a dos Quatrocentos — durou apenas quatro meses; a segunda — a dos Trinta — oito meses. Mas em ambos os casos foram muitos os horrores que ocorreram num intervalo de tempo curto e inesquecível.

Nem todos esses horrores foram acidentais. Em todo o decorrer da história, quanto menor a base de sustentação de uma ditadura, maiores as atrocidades que ela julga necessárias para se preservar no poder. Tanto em 411 quanto em 404, a democracia foi derrubada não por uma onda de descontentamento popular, mas por um punhado de conspiradores. Eles tiveram de apelar para a violência e a trapaça e colaborar com o inimigo espartano, porque tinham muito pouco apoio em Atenas. É nesse contexto que podemos entender melhor uma curiosa negação feita por Sócrates na Apologia de Platão. Diz ele que durante toda a vida sempre evitou participar de synomosias. O termo é traduzido por plots [“conspirações”] tanto na edição Loeb quanto na versão de Jowett (3). Mas é necessário explicar melhor o sentido da palavra para entendermos exatamente o que Sócrates está negando. O termo é derivado de um verbo que significa fazer um juramento juntos. Era usado para designar os clubes ou conspirações mais ou menos secretos em que aristocratas juravam ajudar-se mutuamente e atuar contra a democracia. Essas synomosias, explica Burnet em uma nota a essa passagem da Apologia, “visavam originariamente garantir a eleição de membros do partido oligárquico e sua absolvição quando eram julgados, e haviam desempenhado um papel da maior importância nas revoluções do final do século V a.C.” (4).

Esses clubes aristocráticos eram tristemente famosos. A mais antiga menção a eles que se conhece está nos Cavaleiros de Aristófanes, no trecho em que o paflagônio diz: “Vou nesse mesmo instante até o Conselho/ Denunciar estas vis conspirações [synomosiaí]” (5). A comédia ganhou o primeiro prêmio em 424 a.C., treze anos antes da primeira derrubada da democracia.

É sintomático que Sócrates julgasse necessário negar ter participado de tais conspirações. Não há por que duvidar de sua palavra. Mas ele tinha em comum com as synomosiai uma antipatia pela democracia. Essa sua negação é o único trecho da Apologia em que Sócrates toca — ainda que muito de leve — nas questões que, a meu ver, constituem as verdadeiras razões políticas do julgamento. Sócrates, no entanto, não nega — e infelizmente não poderia negar — que alguns de seus mais famosos discípulos e amigos haviam desempenhado um papel fundamental nessas conspirações.

A estratégia subversiva dos clubes aristocráticos em épocas de normalidade política é exposta com total franqueza por Adimanto no segundo livro da República. Adimanto é normalmente identificado como irmão de Platão. Diz ele a Sócrates: “Para permanecermos escondidos, organizaremos sociedades [synomosiai] e clubes políticos [hetaireias], e há também professores de lisonja que ensinam a arte de convencer assembleias populares e tribunais. Assim, graças à persuasão e também à força, poderemos nos impor impunemente” (6).

Nas Leis, Platão propõe a pena de morte para todo aquele que organizasse conspirações ou clubes com o fim de subverter a cidade ideal por ele imaginada (7). Mas Atenas era mais tolerante. O direito de associação era garantido por uma lei que remontava aos tempos de Sólon. Esses “clubes” aristocráticos jamais foram alvo de nenhuma punição, embora fosse verdade — como afirma Gomme em seu monumental comentário à história de Tucídides — que “somente os inimigos da democracia precisavam 4 de sociedades secretas” (8). A primeira menção às synomosiai em Tucídides aparece na passagem referente à famosa questão da mutilação das hermas no momento exato em que uma esquadra ateniense preparava-se para atacar Siracusa (9). Na frente dos lares em Atenas havia estátuas de Hermes, que era, entre outras coisas, o protetor das viagens; uma noite todas elas foram mutiladas. Suspeitava-se que uma conspiração (synomosiai) oligárquica que visaria trazer azar à expedição militar estivesse por trás dessa afronta ao deus.

E, de fato, após a catástrofe de Siracusa, teve início uma conspiração de aristocratas. Segundo Tucídides, um general traidor, Pisandro, começou a alterar a política ateniense nas cidades controladas por Atenas, abolindo as instituições democráticas e substituindo-as por regimes oligárquicos. Essas controladas revoluções nas cidades logo deram origem a um exército de simpatizantes da oligarquia, que derrubaram o regime democrático em Atenas em 411.

Afirma Tucídides que, ao chegar em Atenas, os conspiradores descobriram que boa parte de sua tarefa “já fora realizada” pelos clubes secretos de aristocratas. “Alguns dos jovens” desses clubes haviam organizado grupos de assassinos, que mataram os líderes do povo e criaram uma atmosfera de terror. Tais grupos “mataram em segredo um certo Ândrocles”, escreve o historiador, por ser ele “o principal líder do partido popular. Outros que se opunham a seus planos foram eliminados do mesmo modo”. O terror disseminou-se. As pessoas não mais ousavam “falar contra eles, por medo e por constatarem que a conspiração se espalhara; e se alguém assim mesmo se opunha” aos conspiradores, diz Tucídides, “era imediatamente morto de modo conveniente”. Esses grupos de assassinos eram os protótipos dos esquadrões da morte utilizados pelos militares na Argentina, em El Salvador e no Chile, em nosso tempo.

Não havia mais segurança no lar. Prossegue o historiador: “Não se tentava encontrar os que cometiam tais feitos e tampouco tomavam-se medidas legais contra suspeitos.” Pelo contrário: “O populacho [dêmos] mantinha-se em silêncio, e era tamanha sua consternação que os que não sofriam nenhuma violência, ainda que não dissessem palavra alguma jamais, julgavam-se afortunados”. O terror tinha um efeito multiplicador. “Imaginando que a conspiração fosse bem maior do que era de fato” , os democratas “intimidavam-se”.

“Todos os membros do partido popular”, explica Tucídides, “abordavam-se mutuamente com desconfiança”. Não se tratava de mera paranoia. Ocorriam traições imprevisíveis, e alguns mudavam de lado por covardia ou oportunismo. “Entre eles havia homens que ninguém jamais imaginaria que viessem a mudar de posição e defender uma oligarquia.”

Foram esses vira-casacas, afirma o historiador, “que causaram mais desconfiança entre as massas e mais auxiliaram a minoria, no sentido de garantir-lhe a segurança, confirmando a suspeição com que o povo encarava seus próprios defensores” (10). Tais eventos ainda estavam muito vívidos na memória dos atenienses quando Sócrates foi a julgamento.

Outra conspiração semelhante ocorreu depois que Atenas se rendeu no final da guerra do Peloponeso. O general espartano Lisandro “aliou-se ao partido oligárquico”, afirma Aristóteles. Era tal o medo do que os vitoriosos pudessem fazer que a própria assembleia ateniense votou a favor da extinção da democracia. Explica Aristóteles: “O povo, intimidado, foi obrigado a votar a favor da oligarquia” (11). Assim, em 404 a.C. os Trinta subiram ao poder. Muitos deles eram exilados antidemocráticos. Alguns haviam lutado ao lado dos espartanos. Os vitoriosos precisavam desses homens para manter Atenas sob o jugo espartano. Para a maioria dos atenienses, a legitimidade do regime estava desde o início comprometida por suas relações com a traição e a derrota.

A segurança dos Trinta era garantida por uma guarnição espartana. Além disso, eles organizaram um exército particular de jovens simpatizantes para aterrorizar os cidadãos. Aristóteles diz que os Trinta arregimentaram “trezentos seguidores, armados de açoites, e desse modo conservaram em suas mãos o poder sobre o Estado” (12). Esses jovens truculentos certamente lembravam aos atenienses os jovens “socratizados” e “laconômanos” satirizados por Aristófanes nos Pássaros. Sócrates não podia ser responsabilizado pelo seu comportamento, mas quando foi julgado, pouco depois desses eventos, em 399 a.C., sem dúvida foi feita uma associação entre esse exército particular e os jovens que ele teria inclinado contra a democracia.

Na verdade, o próprio Sócrates parece estar respondendo a tais suspeitas quando, na Apologia, diz a seus juízes que, após sua morte, “serão mais numerosos que antes os que lhes pedirão contas, homens que até agora eu continha, ainda que os senhores não o percebessem; e eles serão mais severos” (13). Esse comentário enigmático aparece na terceira e última seção da Apologia, depois que já foram realizadas as duas votações cruciais, a primeira para decidir o veredicto, a segunda para determinar a pena; assim, já era tarde demais para influenciar qualquer decisão. Por que Sócrates fez essa afirmação quando já não adiantava mais? Ela indicava que, embora se opusesse à democracia, Sócrates jamais incitou ninguém a derrubá-la por meios violentos. Nesse caso, porém, ele teria de admitir que era, de fato, um professor, e que, de fato, inculcava nos discípulos ideias antidemocráticas.

Sócrates não queria admitir tais coisas. Preferia manter a imagem de homem acima de todas as disputas, totalmente afastado da política, só intervindo quando o obrigavam a tomar uma decisão; e em tais casos optava por resistir em vez de participar, qualquer que fosse o regime, tal como fez no julgamento dos generais, no período democrático, e na prisão de Leão, durante a ditadura dos Trinta.

Para compreender como os eventos de 411 e 403 devem ter modificado a atitude do povo em relação a Sócrates, basta levar em conta as circunstâncias sob as quais a democracia foi restaurada ambas as vezes. Como no caso de tantas outras revoluções — a queda do czar e do cáiser no fim da Primeira Guerra Mundial, a derrubada dos coronéis gregos e da ditadura militar na Argentina na década de 1980 —, a reviravolta política seguiu-se ao desastre militar. No caso de Atenas em 411, foi a derrota em Siracusa; em 404, a perda da esquadra ateniense — devido à traição ou a uma incompetência inacreditável — em Egos-Pótamos, obrigando Atenas a se render a Esparta.

Após essas derrotas, surgiu não apenas um conflito entre oligarcas ricos e democratas pobres, mas também uma luta de classes triangular. A facção liderada por Crítias era constituída de aristocratas que haviam se organizado em conspirações clandestinas e que estavam aguardando uma oportunidade de derrubar a democracia. Havia uma segunda facção, que representava a classe média; e uma terceira, a dos pobres, os quais constituíam a força de trabalho e haviam conquistado a igualdade política graças ao papel que desempenharam como marinheiros e soldados na infantaria leve — o equivalente aos fuzileiros navais de hoje — na marinha ateniense, da qual dependiam o poder imperial e a supremacia comercial da cidade.

Tanto em 411 quanto em 404, a democracia foi derrubada por uma coalizão entre a aristocracia e a classe média, unidas contra os pobres, cujos direitos políticos foram extintos. Contudo, nas duas ocasiões a coalizão se desfez quando os aristocratas tentaram desarmar e privar do direito de voto a classe média juntamente com os pobres, e estabelecer uma ditadura em vez de um governo oligárquico ou “republicano” em que o direito de voto fosse limitado aos que possuíam propriedades. Em 411 e em 404, os ditadores aristocratas revelaram-se cruéis, gananciosos e sanguinários. Nunca, em toda a história de Atenas, os direitos básicos dos cidadãos e suas propriedades ficaram em situação tão precária quanto durante os dois períodos de ditadura. Em ambas as ocasiões, a classe média foi levada, por interesse próprio, a se aliar aos pobres e restaurar a democracia.

Em 403, a democracia restaurada agiu com magnanimidade. Uns poucos líderes aristocráticos foram mortos, mas as diferentes classes e facções em conflito foram reconciliadas através de uma ampla anistia, admirada durante todo o período da Antiguidade. O próprio Aristóteles, que era favorável a um regime liderado pela classe média, com direito de voto limitado, elogiou a restauração da democracia. Escreveu ele, cerca de meio século após a derrubada dos Trinta: “Os atenienses, tanto em particular quanto em público, parecem ter agido em relação aos desastres do passado de modo mais honrado e politicamente acertado do que qualquer outro povo na história”. Em outras cidades, os derrotados muitas vezes eram massacrados, e os proprietários de terras aristocráticos perdiam todas as suas propriedades para os sem-terra. Mas os democratas atenienses, observa Aristóteles, nitidamente admirado, “nem mesmo redistribuíram as terras” (14).

Sócrates, durante esses conflitos históricos e durante os períodos em que eles foram resolvidos de modo civilizado, não tomou nem o partido dos aristocratas, nem o da classe média, à qual ele próprio pertencia, nem o dos pobres. O homem mais tagarela de Atenas calou-se quando sua voz era mais necessária. Um dos motivos possíveis para seu comportamento é a indiferença pura e simples. Ao que parece, Sócrates era totalmente desprovido de compaixão. Nietzsche, que começou sua carreira como estudioso da literatura clássica, certa vez qualificou a lógica socrática de “gélida”. Gregory Vlastos, um dos maiores estudiosos da obra de Platão de nossa época, escreveu que, enquanto Jesus chorou por Jerusalém, Sócrates jamais verteu uma única lágrima por Atenas.

A falta de compaixão de Sócrates evidencia-se no Eutífron de Platão, se relermos o diálogo com atenção. Esse texto normalmente é publicado — juntamente com a Apologia, o Críton e o Fédon — sob o título “Julgamento e morte de Sócrates”. Mas o Eutífron, embora à primeira vista prometa revelar muitas coisas que gostaríamos de saber, termina dizendo muito pouco a respeito da acusação. O diálogo começa com Sócrates no pórtico do basileus archon, ou rei-magistrado, para onde fora convocado para o inquérito preliminar ao julgamento. Seria interessante saber o que aconteceu lá. No sistema ateniense, tal como no sistema legal adotado na Europa séculos depois, o inquérito preliminar diante de um magistrado tinha mais ou menos a mesma função que o grand jury no direito anglo-americano. O magistrado ouvia ambas as partes e resolvia se seria necessário o caso ir a julgamento.

Os acusadores nem sequer aparecem no diálogo. A primeira cena é apenas um recurso para introduzir um diálogo que quase nada tem a ver com o julgamento de Sócrates. Somos apresentados a Eutífron, outro queixoso, envolvido numa outra questão judicial. Durante o diálogo, no entanto, ocorrem algumas revelações casuais a respeito de Sócrates.

O que há de extraordinário quanto à questão de Eutífron é que ele levantou acusação contra seu próprio pai, devido a um duplo assassinato ocorrido em sua fazenda na ilha de Naxos. Um dos escravos da família fora morto numa briga por um empregado. O pai de Eutífron jogou o homem, de pés e mãos amarrados, dentro de uma vala, e mandou um mensageiro para Atenas a fim de perguntar a um consultor religioso como agir em relação ao assassinato do escravo. Enquanto aguardava a volta do mensageiro, o trabalhador morreu de fome e abandono. Eutífron resolveu levantar acusação contra o pai pela morte do trabalhador.

Sócrates utiliza o encontro com Eutífron para dar início a mais uma investigação metafísica — e semântica que termina inconclusa. Ele quer saber se um filho que levanta uma acusação contra o próprio pai não estaria agindo de modo “ímpio” ou profano”. O diálogo então se dedica à busca de uma definição de “piedoso” ou “sagrado”.

Em todo esse longo diálogo, complexo e às vezes enfadonho, nem uma única vez Sócrates manifesta sentimento algum de piedade em relação ao pobre trabalhador sem terra. Seus direitos jamais são mencionados. Teria sido uma atitude “piedosa” deixá-lo exposto ao frio e a fome, enquanto o proprietário resolvia, sem nenhuma pressa, o que fazer com ele? Não teria ele o direito de se apresentar num tribunal? Talvez conseguisse provar que a briga na qual o escravo foi morto fora provocada pelo outro, ou que agira em legítima defesa, ou que matara o escravo por acidente. Todos esses argumentos eram reconhecidos pela legislação ateniense referente ao homicídio. E, agora que o trabalhador estava morto, a justiça não exigiria que o pai de Eutífron fosse a julgamento para que se determinasse se o comportamento dele não constituíra homicídio?

A essa altura, Sócrates poderia argumentar que não estava discutindo uma questão de direito nem de justiça, mas de lógica. Mas seria possível contra-argumentar que sua falta de compaixão tornava-o cego para uma deficiência de sua própria lógica e para as implicações globais da questão. O problema mais sério, que mais preocupava Sócrates, era se, dadas as circunstâncias, Eutifron agira de modo “piedoso” ao levantar acusação contra o próprio pai. Mas não havia definição de “piedoso” que resolvesse o problema. Eutifron estava envolvido num clássico conflito de obrigações, como os que são tão frequentes na tragédia grega. Enquanto filho, tinha certas obrigações para com seu pai. Enquanto ser humano e cidadão, também tinha a obrigação de agir de modo a que se fizesse justiça.

Na Orestéia de Esquilo, Orestes termina enlouquecido por causa de um conflito de obrigações desse mesmo tipo. Enquanto filho, tinha a obrigação de vingar o assassinato do pai. Mas seu pai fora morto pela mãe de Orestes, Clitemnestra, e ele também tinha obrigações filiais em relação a ela. Qual delas era mais sagrada? Em Esquilo, Clitemnestra exibe o próprio seio e resume a questão num gesto terrível: como poderia seu filho cravar o punhal no seio que o havia amamentado?

O problema não poderia ser resolvido por nenhum silogismo baseado numa definição perfeita de um termo moral ou legal. Ésquilo colocava o matricídio num plano mais elevado que o da lei e o da lógica. Como quer que se definisse justiça, não seria possível fazer justiça naquelas terríveis circunstâncias. No final da tragédia, o júri chega a um impasse. É Atena, a deusa protetora de Atenas, que decide a questão, votando a favor da absolvição. A misericórdia transcende a justiça.

Contudo, apenas a piedade nos permite enxergar isso. No Eutífron, é necessário sentir compaixão pelo pobre trabalhador — cujo nome nem mesmo é mencionado — para sair do impasse lógico a que chega o diálogo. Como Orestes, Eutífron estava preso num conflito — mais, num labirinto — de obrigações morais, legais e políticas. Nada disso é explorado na semântica árida da investigação socrática. Enumeremos as questões que Sócrates deixa de lado:

1. É bem verdade que Eutífron tinha obrigações filiais em relação a seu pai. Mas mesmo dentro desse relacionamento ele enfrentava um conflito de obrigações. Sem dúvida, é terrível um filho levar o pai a julgamento. Mas, segundo os critérios atenienses e gregos, o pai não podia inocentar-se em relação à morte do trabalhador sem ter sido julgado. No julgamento, ele podia ser julgado inocente, ou então, se fosse considerado culpado, seria purificado pela pena imposta pelo tribunal. Se ninguém mais ia levar aquele proprietário à cerimônia de purgação que representava o julgamento, então não seria dever de seu filho assumir essa tarefa dolorosa?

2. Enquanto cidadão, Eutífron tinha o dever de levantar a acusação, até mesmo contra o próprio pai. Não havia promotor público em Atenas. Todo cidadão tinha o direito — e o dever — de recorrer à justiça quando julgava que a lei fora infringida; é algo semelhante à doutrina americana da citizen’s arrest, a qual permite que qualquer cidadão efetue uma prisão quando vê um crime sendo cometido. Em Atenas, o cidadão podia não apenas prender como também processar. Isso estava de acordo com a concepção ateniense de governo democrático com participação popular.

3. Estava em jogo também uma terceira obrigação, que qualquer observador ateniense perceberia de imediato. Essa obrigação decorria de sentimentos humanitários comuns, e era de natureza tanto moral quanto política, quando encarada de um ponto de vista democrático. Esse aspecto da questão entra em jogo — indiretamente —, mas só bem no final do diálogo. Nesse trecho, Sócrates diz a Eutífron, a essa altura já exausto, que a menos que soubesse claramente o que era sagrado e o que não era, ele “certamente não teria decidido processar seu próprio pai por assassinato, por causa de um criado” (5). Fazia alguma diferença — do ponto de vista legal, ou ético — o fato de o morto ser apenas um criado?

Há uma diferença política importante entre o termo usado na tradução, “criado”, e a palavra grega que aparece no original. O tradutor da edição Loeb optou pelo termo servant [“criado”] para simplificar, e também porque desse modo não se perde a conotação de desdém existente no original. Mas o termo que Platão pôs na boca de Sócrates, thes, tinha um sentido especial na Atenas democrática.

Havia dois séculos que os cidadãos de Atenas eram divididos em quatro classes, para fins de tributação e para indicar sua elegibilidade para cargos públicos. A divisão baseava-se na situação econômica do cidadão, conforme a avaliação de sua propriedade. A mais baixa e maior das quatro classes, os thetes (plural de thes), tinha pouca ou nenhuma propriedade. Eram homens livres, pobres, mas não necessariamente criados. Originariamente, não eram cidadãos, nem mesmo em Atenas. Simplesmente era como se não existissem.

A palavra thes já aparece em Homero, para designar o trabalhador assalariado, em oposição ao escravo (16). Há uma passagem da Ilíada que vem à mente do leitor do Eutífron. Ela mostra que o thes podia ser tratado por seu empregador, o proprietário de terras dos tempos homéricos, de modo tão arrogante quanto a maneira como o pai de Eutífron tratou seu empregado.

No 21 livro da Ilíada, Posídon lembra Apolo da maneira vergonhosa como foram trapaceados por um nobre proprietário troiano, Laomedonte. Disfarçados de thetes, os deuses desceram à terra, por ordem de Zeus, e trabalharam para Laomedonte “durante um ano, por um salário fixo” (17) construindo muros e cuidando de seus rebanhos. Contudo, quando chegou a hora de receberem o pagamento, Laomedonte não apenas se recusou a pagá-los como também ameaçou cortar-lhes as orelhas e vendê-los como escravos, se insistissem. Segundo Homero, os deuses voltaram para o Olimpo sem ter recebido, “com ira nos corações”. A situação do empregado assalariado era até mais precária e desprotegida que a do escravo, o qual, por constituir propriedade, recebia ao menos um mínimo de atenção.

Esse episódio é uma das únicas passagens de Homero em que temos não a visão aristocrática, mas o ponto de vista dos que estão por baixo. Nesse trecho, Homero, por um momento, é mais sensível em relação à justiça social do que o Sócrates platônico. No Eutífron, o status do trabalhador livre em Naxos não parece ser muito melhor do que era nos tempos homéricos. O pai de Eutífron ficou tão indignado com a perda de seu escravo que não teve nenhuma consideração com os direitos do empregado, e deixou-o amarrado numa vala até a morte. O que ele fez jamais poderia ser considerado “sagrado”, como quer que se definisse o termo. Mas esse aspecto da questão jamais entra no campo de visão de Sócrates; para ele, trata-se de “um mero criado”.

Eutífron diz a Sócrates que a morte do trabalhador ocorreu quando “nós” — isto é, Eutífron e seu pai — “estávamos cuidando da fazenda em Naxos” e “ele estava lá, trabalhando em nossas terras” (18). O que ocorreu em Naxos não poderia ter acontecido em Atenas. Naxos era uma ilha de solo fértil no Egeu, que foi libertada por Atenas nas guerras contra os persas e foi incluída na Liga de Delos, sob hegemonia ateniense. Naxos foi uma das primeiras cidades a se revoltar contra o pesado jugo ateniense; foi derrotada e suas terras foram distribuídas entre colonos (cleruchs) atenienses. Quanto aos antigos proprietários, os que tiveram mais sorte tornaram-se meeiros ou empregados, trabalhando nas terras que antes eram suas. Quando Atenas perdeu a guerra contra Esparta, Naxos foi um dos primeiros Estados dominados a serem libertados, e os colonos atenienses tiveram que fugir. As terras foram devolvidas aos antigos proprietários. É por isso que Eutífron usa o pretérito quando se refere ao tempo em que cuidava de suas terras em Naxos.

Durante o período de dominação ateniense, os thetes em Naxos não eram considerados cidadãos nem gozavam dos direitos que tinham os trabalhadores sem terra em Atenas. Na Ática, o trabalhador seria levado a julgamento por ter assassinado o escravo. Se um proprietário jogasse o trabalhador numa vala e o deixasse lá até morrer, os amigos ou parentes do morto teriam processado o proprietário por homicídio. E é isso que Eutífron está fazendo agora, em prol do pobre trabalhador, que não tem amigos que façam isso por ele.

Eutífron é ridicularizado no diálogo, sendo encarado como uma espécie de fanático supersticioso, mas sua atitude é mais humana e mais esclarecida que a de Sócrates. Logo no início do diálogo, antes de saber dos fatos em questão, Sócrates, pressupondo que Eutífron não levantaria acusação contra o próprio pai por ter este matado um “estranho”, pergunta se a vítima era seu parente próximo. Eutífron fica surpreso com tal atitude. Diz ele:

E absurdo, Sócrates, julgar ter alguma importância o fato de o homem que foi morto ser um estranho ou um parente, em vez de perceber que a única coisa a se considerar é se o ato daquele que o matou foi ou não justificado, e que, se foi justificado […], e se não foi, é necessário levá-lo a julgamento, ainda que a pessoa em questão more no mesmo lar e coma à mesma mesa que nós (19).

Evidentemente, Eutífron julgava que o que estava em questão era um dever que transcendia as obrigações filiais e diferenças de status e classe. Sócrates deixa de lado esse aspecto da questão. A ideia de que todos são iguais diante da lei, ou de justiça social, jamais é discutida no diálogo. Mas em 399 a.C, a época em que o diálogo com Eutífron teria ocorrido, às vésperas do julgamento de Sócrates, o dêmos ateniense estava mobilizado justamente em relação a essa questão, devido aos recentes conflitos com a repressão oligárquica em 411 e 404. Os thetes constituíam a classe que mais sofrera. Haviam perdido o direito de cidadania, conquistado dois séculos antes, com as reformas de Sólon. Seus líderes foram mortos. Os pobres foram expulsos de Atenas. Perderam seus lares e sua cidade. Se a derrubada da democracia tivesse sido definitiva, tornar-se-ia tão fácil na Ática quanto em Naxos para um proprietário fazer justiça com as próprias mãos, tal como fizera o pai de Eutífron. Os trabalhadores não teriam direitos.

A indiferença manifestada por Sócrates em relação ao empregado teria parecido a seus concidadãos semelhante à indiferença com que ele havia encarado a situação dos thetes em 411 e 404. Concluiriam talvez que essa indiferença era reflexo do desprezo que Sócrates sentia pela democracia. Isso explicaria por que ele não se exilara durante nenhum dos períodos de ditadura, nem participara da restauração do regime democrático. Sócrates não manifestava nenhum interesse pelos direitos dos pobres, nem pela justiça social. A atitude de Eutífron é que era democrática.

Em sua defesa, Sócrates teria encontrado um argumento poderoso se conseguisse provar que nem todos os seus seguidores eram aristocratas antidemocráticos como Crítias e Cármides, mas que também havia entre eles alguns democratas. E um dado revelador o fato de que, durante o julgamento, ele só pôde mencionar um.

Platão certamente percebeu a importância desse fato, porque na Apologia faz Sócrates falar desse discípulo e destacar suas tendências democráticas. Chamava-se Querefonte. Não pôde ser chamado para depor porque já havia morrido.

“Decerto conheceram Querefonte”, diz Sócrates aos juízes. “Era meu amigo desde jovem, e também amigo de seu partido democrático; foi seu companheiro de exílio recentemente e voltou com os senhores” (20).

Observe-se que Sócrates não diz “nosso” — nem mesmo “o”— “partido democrático”, mas “seu”, como se quisesse dissociar-se claramente da tendência política que predominava entre os juízes. Observe-se também que Sócrates não diz — o que talvez tivesse dito, se fosse verdade — que, apesar do preconceito político contra ele, vários de seus discípulos pertenciam ao partido do povo, citando em seguida Querefonte como exemplo; ele era claramente uma exceção. Querefonte é o único discípulo democrata mencionado em Platão e em Xenofonte. A maioria de seus seguidores, como o próprio Sócrates afirma, eram “moços que dispõem de mais tempo, os filhos das famílias mais ricas” (21).

Sócrates piorou sua própria situação quando comentou que Querefonte “foi seu companheiro de exílio recentemente e voltou com os senhores”. Com tristeza, Burnet escreve, em seu comentário à Apologia: “Observe-se que o próprio Sócrates permaneceu em Atenas”. E acrescenta: “Era bem mais imprudente lembrar esse fato aos juízes do que era vantajoso lembrar as opiniões democráticas de Querefonte” (22). A menção a Querefonte teve apenas o efeito de ressaltar a diferença que havia entre ele e Sócrates, bem como os outros discípulos — Platão inclusive — que também permaneceram na cidade durante a ditadura dos Trinta.

Com a restauração da democracia, tornou-se motivo de desonra ter “ficado na cidade”, conforme deixam claro as inúmeras referências ao fato que encontramos nos discursos de Lísias e de outros oradores do século IV. A anistia que se seguiu à derrubada dos Trinta não removeu o estigma dos que não haviam participado da resistência. Com a anistia, depois que os líderes foram julgados, ninguém mais podia ser processado por ter cometido qualquer infração à lei durante a ditadura ou antes dela. Passou-se a borracha sobre o que ocorrera, a fim de solidificar a reconciliação cívica. Também não se podia mais entrar com processo a fim de recuperar propriedades confiscadas pelos ditadores e por eles vendidas, para pagar dívidas ou acumular riquezas. Muitos cidadãos de classe média e estrangeiros ricos haviam sido vítimas de expropriações desse tipo. Mas com a anistia perderam o direito de recorrer à justiça para reaver seus bens.

No entanto, em outros tipos de questões judiciais ocorridas depois de a paz ser restabelecida, o rancor contra os réus e querelantes que haviam “ficado na cidade” era com frequência utilizado para influenciar os tribunais, como fica evidente nos discursos de Lísias, amigo de Sócrates. Lísias foi o mais famoso “advogado” do período imediatamente após a restauração. Tais advogados não atuavam no julgamento, porém preparavam os discursos dos litigantes. Eram chamados logographoi, ou seja, redatores profissionais de arrazoados.

Lísias descendia de uma família rica e ilustre de estrangeiros radicados em Atenas. Seu pai, Céfalo, atua como anfitrião nas discussões da República de Platão. A família de Lísias, como outras famílias estrangeiras ricas, foi vítima da voracidade dos ditadores, “em parte por causa de suas tendências democráticas”, diz o Oxford classical dictionary em relação a Lísias, “mas principalmente por causa de sua riqueza”. Lísias salvou a própria vida fugindo de Atenas, mas seu irmão Polemarco, um dos interlocutores de Sócrates na República, foi executado. Suas propriedades foram confiscadas. Lísias uniu-se aos exilados que em pouco tempo derrubaram os Trinta. Voltou a Atenas como herói da resistência.

Com base nos discursos de Lísias, sabemos que os litigantes eram com frequência questionados ou atacados de acordo com seu comportamento durante o regime dos Trinta. Numa questão, o réu fez os juízes se voltarem contra o acusador com uma revelação inesperada. Admitiu que havia de fato ficado na cidade, porém afirmou que seu pai tinha sido executado pelos Trinta e que ele próprio tinha apenas treze anos na época. “Nessa idade”, disse ele, indignado, “eu nem sabia o que era uma oligarquia, nem teria conseguido salvar” o pai (23). Outro indivíduo, evidentemente um aristocrata — pois havia servido na cavalaria —, foi por engano considerado soldado dos Trinta; ele provou que estava no estrangeiro na época da ditadura (24).

Poderiam ter perguntado a Sócrates por que motivo ele não saíra da cidade, principalmente depois que a execução de Leão de Salamina deixou claro que se tratava de um regime injusto. Não bastaria esse incidente para convencê-lo — tal como fora convencido um oligarca moderado como Terâmenes — de que a democracia era, na pior das hipóteses, um mal menor, mais seguro e mais justo que uma oligarquia estreita?

Mas Sócrates também estava protegido pela anistia. Ele não poderia ser processado por nada que fizera ou dissera antes da restauração da democracia, nem por ter sido mestre ou amigo de Crítias e Cármides. Se alguém levantasse tais acusações, isso seria denunciado no tribunal como uma violação gritante da anistia, e tanto Platão quanto Xenofonte teriam mencionado o fato.

Para que a acusação fosse válida, ela só poderia referir-se às atividades ou ensinamentos de Sócrates durante o período de quatro anos entre a derrubada dos Trinta e o julgamento. Sócrates deve ter voltado a ensinar as mesmas ideias e a atrair o mesmo tipo de seguidores que antes da ditadura. E é bem possível que seus acusadores temessem que esses jovens mais uma vez tentassem derrubar a democracia recém-restaurada. Apenas dois anos depois da anistia e dois antes do julgamento de Sócrates, em 401, ocorreu uma tentativa desse tipo.

Os atenienses pensavam que seus problemas estavam resolvidos em 403 quando as facções inimigas fizeram a paz. Mas havia uma brecha no acordo de anistia que viria a causar mais conflitos. Alguns dos aristocratas que tinham se aliado aos Trinta recusaram-se a aceitar a reconciliação. Em vez de recomeçar a guerra civil e tentar dominá-los à força, os atenienses permitiram que eles se retirassem para a cidade vizinha de Elêusis e lá fundassem uma cidade-Estado independente.

Os oligárquicos intransigentes ao que parece estavam aguardando justamente uma oportunidade dessas, com presciência e ferocidade características. Quando a resistência armada contra os Trinta, cada vez mais forte, conseguiu conquistar sua primeira posição na Ática, ao capturar uma fortificação no alto de uma colina na fronteira, em File, Crítias e seus seguidores resolveram preparar um refugio onde pudessem resistir até o fim, caso fossem expulsos de Atenas. Escolheram Elêusis, porém a população era hostil. Controlaram Elêusis à força e executaram trezentos homens — provavelmente a totalidade dos cidadãos da cidade, que era pequena.

Esse massacre, bem ao estilo de Crítias, é mencionado em duas fontes da época, uma pró-democrática, outra antidemocrática. A primeira é Lísias (25); a segunda é Xenofonte. Ambos concordam quanto aos motivos de Crítias, e o número de vítimas é apresentado em Xenofonte, cujo relato é mais detalhado. Nas Helénicas, Xenofonte conta que Crítias prendeu ardilosamente os trezentos homens e em seguida intimidou uma assembleia ateniense, obrigando-a a dar uma aparência de legalidade às execuções, aprovando uma sentença de morte para todos os trezentos sem julgamento (26).

Esse horror perpetrado pela ditadura, cujos dias já estavam contados, abriu caminho para os eventos de 401, que envenenaram a atmosfera de Atenas com mais suspeitas e — creio eu — determinou a abertura do processo contra Sócrates.

Não muito depois do massacre em Elêusis, Crítias e Cármides foram mortos na luta contra as forças crescentes da resistência. A ditadura começou a ruir, e foi se abrindo o caminho para a reconciliação. Quando por fim se fez a paz, os aristocratas intransigentes, uma pequena minoria, recuaram para Elêusis. Os atenienses achavam que seus problemas estavam resolvidos. Mas homens desse tipo não desistem com facilidade. Os que não aceitaram a reconciliação contavam-se entre as maiores fortunas de Atenas, e portanto dispunham de dinheiro para contratar soldados mercenários. Dois anos depois da queda da ditadura, Atenas soube que em Elêusis estava sendo preparado um ataque à cidade.

Segundo Xenofonte, os atenienses imediatamente mobilizaram “todas as suas forças contra eles”, mataram os chefes “e então, enviando aos outros seus amigos e parentes, convenceram-nos a se reconciliarem”. Assim, a guerra civil finalmente terminou. “E, tendo se comprometido, sob juramento, que verdadeiramente se esqueceriam de seus rancores passados”, escreve Xenofonte, “os dois partidos até hoje convivem como cidadãos, e os comuns [dêmos] cumprem seu juramento”, no sentido de não se vingarem (27).

Isso foi em 401 a.C., apenas dois anos antes do julgamento de Sócrates. A meu ver, não teria havido nenhum julgamento se também ele houvesse demonstrado ter se reconciliado com a democracia, se tivesse, como Xenofonte, de algum modo reconhecido a magnanimidade da maioria no acordo de paz. Se uma tal mudança tivesse ocorrido em sua atitude, ele teria atenuado os temores de que uma nova safra de jovens “socratizados” e alienados surgisse entre seus seguidores e mais uma vez desencadeasse uma guerra civil na cidade.

Mas nem em Platão nem em Xenofonte encontramos nenhum indício de que tenha ocorrido qualquer mudança nesse sentido em Sócrates após a queda do regime dos Trinta. Sócrates retomou seus ensinamentos antidemocráticos e antipolíticos. Como antes, o tom por ele adotado era mais ofensivo do que sua doutrina; nada mudou. Por trás de sua ironia, permanecia a atitude de escárnio. Sócrates jamais se reconciliou com a democracia. Aparentemente, não aprendeu nada com os acontecimentos de 411, 404 e 401.

Era como se ele continuasse vivendo isolado de Atenas, pairando nas nuvens, encarando a cidade a seus pés com desdém. Não demonstra, nem em Platão nem em Xenofonte, nenhuma consciência de que seus concidadãos tinham motivo para se reconciliarem.

Notas

1. Aristófanes, As nuvens, 1397-1400.

2. A única passagem que se conhece em Platão em que o autor os critica é uma referência rápida à ditadura dos Trinta em sua Sétima carta (Loeb Classical Library, 1966), 324D (479), em que ele afirma que os Trinta “em pouco tempo fizeram-me encarar o governo antigo” – ou seja, a democracia – “como uma idade do ouro”. Mas os estudiosos ainda não têm certeza de que a Sétima carta é autêntica.

3. Platão, Apologia, 36B (Loeb 29); B. Jowett, The dialogues of Plato, 5 vols. (Oxford, Clarendon Press, 1892).

4. Burnet, op. cit., 153.

5. Aristófanes, Os cavaleiros, 1.479-480 (Loeb 1:169).

6. A república, 365D (Loeb 1:137). Para o argumento de que “nem o segredo nem a força valem” contra os deuses, Adimanto tem uma réplica cínica: “Se não há deuses, ou se eles não se interessam pelos atos dos homens, também nós não precisamos nos preocupar em fugir-lhes à observação”. Mas e se eles existem? Adimanto diz que os poetas, que são a fonte de conhecimento a respeito dos deuses, afirmam que se pode obter o perdão deles por meio de “sacrifícios e promessas que os aplaquem”. Assim, conclui ele, “o que se deve fazer é cometer injustiças e depois oferecer em sacrifício parte dos frutos do mal que cometemos”. Sócrates ataca essa ideia; sua tese é de que “a justiça é melhor do que a injustiça” (368B [Loeb 1:471]).

7. Leis, 856B (Loeb 1:209).

8 A. W. Gomme, A. Andrewes e K. L. Dover, A historical commentary on Thucydides (Oxford, Clarendon Press, 1981), 5:129.

9. Tucídides, 6.60 (Loeb 3:287).

10. Ibid., 8.65-66 (Loeb 4:301-305, ligeiramente emendado).

11. Constituição de Atenas, 34.3 (Loeb 101).

12. Ibid., 35.1.

13. Platão, Apologia, 39D (Loeb 1:139).

14. Constituição de Atenas, 60.2-3 (Loeb 113-115).

15. Platão, Eutífron, 15D (Loeb 1:59).

16. O GE-L define a utilização de thes em Homero como “servo” ou escravo”. Mas tanto o léxico homérico de Cunliffe quanto o dicionário homérico alemão mais antigo de Georg Autenrieth concordam que o termo significava “empregado contratado”, em oposição (acrescenta Autenrieth) o dêmos, “servos ou escravos derrotados”. O termo cognato theteuo significava “trabalhar por salário fixo”. Em seu comentário à Odisséia, em que também aparecem essas palavras (18.3.12), Stanford concorda com Cunliffe e Autenrieth.

17. Ilíada, 1.444-445.

18. Eutífron, 4C (Loeb 1:15).

19. Ibid., 4B (Loeb 1:13-15).

20. Platão, Apologia, 21A ss. (Loeb 1:81).

21 Ibid 23C (Loeb 1:89). Vale a pena examinar a expressão que a Loeb
traduz como “do vosso partido democrático”. O original é “humon to plethei”, literalmente “de vós, massas/homens comuns”. Plethos é definido no GE-L como “uma grande multidão ou massa […] portanto, o povo, os plebeus […] também o governo do povo, democracia”. Há uma conotação de desdem na própria palavra. O Sócrates platônico não usa o termo demokratia, que era para os atenienses uma palavra tão positiva quanto “democracia” é para nós.

22. Burnet, op. cit., 90.

23. Lísias, Orações (Loeb Classical Library, 1930), 10.4 (199-201).

24. Ibid., 16.4 (Loeb 375-377).

25. Ibid., 12.52 (Loeb 253).

26. Xenofonte, Helénicas, 2.4.8 (Loeb 1:147).

27. Ibid., 2.4.43 (Loeb 1:171).

A liberdade de opinião em Atenas – O Julgamento de Sócrates de I. F. Stone – 8

As ideias totalitárias de Platão – O Julgamento de Sócrates de I. F. Stone – 10