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A liberdade de opinião em Atenas – O Julgamento de Sócrates de I. F. Stone – 8

Continuamos a transcrever o excelente livro de I. F. Stone (1988), O Julgamento de Sócrates, tradução brasileira de Paulo Henriques Britto, do original em inglês The Trial of Socrates, publicada pela Editora Schwarcz (São Paulo: Companhia das Letras, 2005).

Já foram publicados:

1) O Prefácio, o Prelúdio e os três primeiros capítulos da Primeira parte: 1 – As divergências básicas; 2 – Sócrates e Homero; 3 – Uma pista no episódio de Tersites

2) O quarto capítulo: A natureza da virtude e do conhecimento

3) O quinto capítulo: A coragem como virtude

4) O sexto capítulo: Uma busca inútil: Sócrates e as definições absolutas

5) O sétimo capítulo: Sócrates e a retórica

6) O oitavo capítulo: O ideal de vida: a terceira divergência socrática

7) O nono e último capítulo da Primeira parte: Os preconceitos de Sócrates.

Publicamos abaixo o capítulo que dá início à Segunda parte.

Segunda parte

A PROVAÇÃO

10. POR QUE ESPERARAM TANTO?

As NUVENS FOI ENCENADA 25 anos e Os pássaros dezoito anos antes do julgamento de Sócrates. As peças de Aristófanes e os fragmentos de obras de outros poetas cômicos revelam que o inconformismo socrático — político, filosófico e religioso — era notório. Sócrates não agia clandestinamente. Não era nenhum dissidente sobressaltado a publicar samizdat — para empregar o termo russo — e a distribuir seus escritos de mão em mão, ou enviá-los para o estrangeiro. Suas opiniões eram manifestadas “em qualquer esquina”: na palaestra, onde os jovens atletas treinavam, ou no mercado. Onde quer que os atenienses se reunissem, tinham liberdade para ouvi-lo. Não havia KGB — nem FBI nem CIA, aliás — a grampear seu telefone para conhecer suas ideias. Embora instituições desse tipo já existissem em outras regiões da Grécia, em Atenas não havia nada semelhante. Esparta, conforme sabemos de várias fontes, tinha uma krypteia, isto é, uma polícia secreta, que não apenas espionava os hilotas que “não conheciam seu lugar”, mas também assassinava os rebeldes e dissidentes potenciais que havia entre eles (1).

Tudo leva a crer que a espionagem política não demorou para surgir, com o advento das tiranias em cidades-Estados gregas como Siracusa, onde Platão certa vez tentou transformar o tirano Dionísio II, que era seu amigo, num “rei-filósofo” modelo. Lá, segundo Aristóteles, um dos precursores de Dionísio, Hierão, usava agents provocateurs, bem como espiões, para investigar “todo e qualquer pronunciamento ou ato” que indicasse dissidência. Mulheres conhecidas como “ouvidos aguçados” eram enviadas para “todas as reuniões e congressos”. Sua missão consistia não apenas em relatar todo pronunciamento perigoso, mas também, por sua própria presença — ou pela possibilidade de estarem presentes —, inibir os que criticavam o regime. Observa Aristóteles: “Quando os homens temem espiões desse tipo, eles controlam a língua” (2). Em Atenas, todos usavam suas línguas para dizer o que bem entendiam; e ninguém usufruía desse direito mais que Sócrates.

Em Atenas, o teatro desempenhava a função da imprensa numa democracia moderna. Os poetas cômicos eram “jornalistas”, espalhando mexericos maliciosos e picantes e criticando os que cometiam irregularidades no exercício de cargos públicos. A maior parte da produção abundante desses teatrólogos se perdeu. As únicas comédias completas que chegaram até nós são as de Aristófanes. Sócrates aparece em quatro delas, e conhecemos fragmentos de quatro outros poetas cômicos que mencionam a estranheza da figura e das ideias de Sócrates (3). Sabemos que havia também uma outra peça, perdida, intitulada Konnos, de autoria de um poeta cômico chamado Amêipsias, cujo personagem principal era Sócrates. São essas as únicas referências ao filósofo feitas no tempo em que ele ainda era vivo.

No entanto, o fato de Sócrates ser um dos alvos favoritos dos poetas cômicos não significa que tivesse má fama; pelo contrário, indica que era um personagem famoso e popular. Os atenienses gostavam de seus concidadãos excêntricos. Gostavam também de rir dos mais altos funcionários da cidade. Os poetas cômicos não poupavam nem mesmo o olímpico Péricles, com sua namorada intelectualizada, Aspásia, e o círculo de intelectuais que os frequentavam. Mas as piadas grosseiras, até mesmo licenciosas, que Péricles inspirava não impediam que os atenienses o reelegessem tantas vezes que Tucídides chegou a dizer que ele se transformara praticamente em monarca. O sucessor de Péricles, Cléon, embora considerado um “demagogo”, ou seja, um líder popular, também era alvo de inúmeras pilhérias. Mas nem por isso deixou de ser reeleito também.

Como já vimos, o próprio Sócrates tinha muito senso de humor e com frequência zombava de si mesmo. E pouco provável que se irritasse com as gozações de que era alvo. Em seus ensaios, as Obras morais, Plutarco conta que certa vez perguntaram a Sócrates se ele se indignava com a maneira como Aristófanes o tratara nas Nuvens. Respondeu ele: “Quando sou alvo de alguma pilhéria no teatro, sinto-me como se estivesse numa grande festa, entre amigos” (4). De fato, no Banquete, um dos mais belos diálogos de Platão, aparecem Sócrates e Aristófanes conversando, mais perfeita amizade.

Contudo, na Apologia Sócrates dá a impressão de que atribui a origem do preconceito contra ele aos poetas cômicos. Bem no início de sua defesa, Sócrates afirma que, muito antes de lhe serem dirigidas as acusações que o levaram ao tribunal, havia sofrido uma série de ataques caluniosos. Diz que jamais pôde confrontá-los e refutá-los porque os acusadores eram anônimos, de modo que “nem foi possível trazê-los aqui” — isto é, ao tribunal — “e interrogá-los”. Assim, ele foi obrigado “a lutar, por assim dizer, com sombras, e interrogá-las sem ter resposta”. Diz Sócrates: “Nem sequer se pode saber ou dizer seus nomes, salvo quando se trata, porventura, de um comediógrafo”. Mas isso é ambíguo. Pode ser interpretado — como normalmente se faz como uma referência a Aristófanes e às Nuvens. Mas pode também ser uma referência a qualquer um que fosse comediógrafo.

Sócrates afirma que esses acusadores antigos “atingiram-nos quando, em sua maioria, ainda eram crianças” (5). Isso não era exagero. Também as crianças frequentavam o teatro, e sabemos, com base nas datas das encenações, que as primeiras paródias de Sócrates apareceram em 423 a.C., quando muitos de seus juízes ainda eram, de fato, crianças. Naquele ano, no festival anual da cidade de Dionísia, estrearam duas comédias sobre Sócrates, e as duas ganharam prêmios: em segundo lugar ficou a de Amêipsias, Konnos; em terceiro, As nuvens.

Só conhecemos dois fragmentos do Konnos, mas é possível que as piadas a respeito de Sócrates fossem parecidas com as que encontramos nas Nuvens. Nessa comédia, Sócrates preside um phrontisterion, ou “pensatório”. Também no Konnos havia um coro de phrontistai, pensadores”. Ninguém sabe exatamente o significado do título da peça, mas o verbo konneo significava “saber”.

Tal como As nuvens, o Konnos era uma sátira aos intelectuais, talvez o título significasse “o sabedor”, “aquele que sabe”.

Parece que um terceiro poeta cômico, Êupolis, fez uma sátira semelhante. Num fragmento seu, Sócrates é mencionado num contexto em que há um jogo de palavras com o verbo phrontizo — “pensar” ou “contemplar”. Afirma um dos personagens de Êupolis: “Sim, e abomino esse Sócrates pobretão e falastrão, que contempla tudo que há no mundo mas não sabe como há de conseguir fazer sua próxima refeição”. Não sabemos nem o nome nem o assunto da comédia da qual esse fragmento fazia parte. Mas o professor Ferguson, da Open University, Inglaterra, que traduz esse fragmento no livro em que se reúnem menções a Sócrates, diz que há um comentário marginal às Nuvens que remonta à Antiguidade e afirma que, “embora Êupolis não apresentasse Sócrates com frequência [em suas peças], ele o satiriza melhor do que o faz Aristófanes em toda a peça As nuvens” (6).

A genialidade e o amor de Platão fizeram de Sócrates uma espécie de santo profano da civilização ocidental. Mas os fragmentos que chegaram até nós da chamada comédia antiga ateniense do século V mostram que seus concidadãos sempre o consideraram um excêntrico, um esquisitão, embora simpático, um “personagem” local. Era assim que o viam seus contemporâneos, e não pelas lentes douradas dos diálogos platônicos. O humor da comédia antiga é grosseiro e obsceno; não é humor para puritanos. É a fonte original do Minsky’s. Encontrei nas páginas de Aristófanes os protótipos dos mesmos quadros e piadas grosseiras que me lembro de ter visto e ouvido, ainda menino, semiclandestinamente, em espetáculos de revista nos Estados Unidos — até os mesmos gestos obscenos, como, por exemplo, o de esticar o dedo médio e apontá-lo para cima.

Mas só mesmo um pedante desprovido de senso de humor poderia achar que as gozações dos poetas cômicos teriam levado ao julgamento de Sócrates. Quando Êupolis o representava como um homem que “contemplava” tudo, mas não sabia de onde viria sua próxima refeição, estava fazendo uma piada grosseira e um pouco cruel — como o humor tantas vezes é, aliás —, mas estava longe de acusar Sócrates de algo que pudesse levá-lo ao tribunal. Dizer que Sócrates foi condenado por causa dos poetas cômicos é como dizer, hoje em dia, que a derrota de um político se deve ao modo como os cartunistas “deturparam” sua imagem nos jornais.

Na Apologia, Sócrates faz duas referências incisivas à maneira como é caricaturado nas Nuvens. Afirma ele que “na comédia de Aristófanes” seus juízes viram “um Sócrates carregado pela cena, apregoando que caminhava pelo ar”. Sócrates está exagerando quando afirma que isso é o mesmo que chamá-lo de “criminoso e abelhudo”. Aristófanes estava fazendo graça e não acusando ninguém de coisa alguma.

Sócrates queixa-se também de que seus juízes desde a infância eram levados pelos poetas cômicos a ver “um certo Sócrates, um sábio, a pesquisar as coisas que há no céu e sob a terra, a fazer com que o argumento mais fraco prevaleça sobre o mais forte”. São esses, diz ele, “meus perigosos inimigos”.

Mas não se tem notícia de ninguém que tivesse sido processado em Atenas por causa do que foi dito a seu respeito pelos poetas cômicos. Se as gozações desses escritores fossem levadas a sério, a maioria dos homens públicos da cidade teria terminado na cadeia. Isso é verdade não apenas em relação ao século V, o de Sócrates, como também ao IV, o de Platão, quando também esse filósofo tornou-se alvo frequente dos comediantes de seu tempo.

O Sócrates platônico queixa-se de que seus concidadãos acham que aqueles que pesquisam “as coisas que há no céu e sob a terra” são livres-pensadores que “nem sequer acreditam nos deuses” (7). Afirma que o que lhe trouxe má reputação foram tais calúnias. Mas os atenienses, como os próprios diálogos de Platão afirmam, vinham em multidão — e pagavam bom dinheiro para ouvir filósofos e “sofistas” livre-pensadores, oriundos de todas as regiões da Grécia, a expor ideias radicais.

Quanto à acusação de não acreditar nos deuses, os atenienses estavam acostumados a ouvir afirmações desrespeitosas em relação aos deuses no teatro, tanto em comédias quanto em tragédias. Desde dois séculos antes de Sócrates que os filósofos vinham lançando os fundamentos da ciência natural e da investigação metafísica. O extraordinário pioneirismo dos gregos no livre-pensamento ainda nos surpreende quando examinamos os fragmentos dos chamados pré-socráticos. Quase todos os conceitos básicos da ciência e da filosofia podem ser encontrados neles, em forma embrionária. Foram eles os primeiros a falar em evolução e a conceber o átomo. E, nesse ínterim, os deuses antigos eram — se não exatamente destronados — rebaixados e deixados de lado, reduzidos à condição de fábulas veneráveis ou personificações metafóricas de forças naturais e ideias abstratas.

Esses filósofos eram racionalistas, e raramente se interessavam por aquilo que entendemos por “teologia”. Nem sequer conheciam esse termo, que surgirá na Grécia apenas no século seguinte ao de Sócrates. A palavra theologia — o discurso sobre os deuses — surge pela primeira vez na República, quando Platão explica o que os poetas em sua utopia terão o direito de dizer a respeito dos poderes divinos (8). Em sua sociedade ideal, um Sócrates certamente seria punido por divergir da theologia oficial do Estado, mas não em Atenas.

As divindades olímpicas de Homero e Hesíodo haviam perdido importância e estatura diante das forças materiais e abstrações imateriais que os pré-socráticos identificavam como as forças básicas do universo. Os deuses foram relegados a um papel secundário no drama cósmico. Quando alguns desses primeiros livres-pensadores resolveram ocupar-se da natureza dos deuses, os resultados foram devastadores. Em nossa Bíblia, Deus cria o homem à Sua imagem. Mas um século antes de Sócrates, Xenófanes virou de cabeça para cima essa concepção antropomórfica e afirmou que os homens criavam os deuses à sua imagem humana. Observou ele que os etíopes tinham deuses com “narizes achatados e cabelos negros”, enquanto os trácios adoravam deuses que tinham “olhos cinzentos e cabelos vermelhos” como eles.

Acrescentou que se bois, cavalos e leões tivessem mãos e pudessem esculpir imagens, também adorariam deuses semelhantes a eles. Xenófanes ousou até mesmo criticar Homero e Hesíodo, as duas “bíblias” da religião grega tradicional; escreveu: “Eles contam as histórias mais ímpias que pode haver a respeito dos deuses: histórias de roubo, adultério e fraude mútua” (9). É uma queixa bem semelhante à feita por Platão, quando ele se propõe a censurar os poetas.

Tudo indica que Xenófanes era uma espécie de panteísta, enquanto Platão concedia aos deuses olímpicos uma existência obscura e irrelevante em alguma esfera entre a terra e a estratosfera de suas Ideias eternas. Mas nem Xenófanes no século VI a.C. nem Platão no IV a.C. foram processados por atacarem a religião.

O politeísmo, por sua própria natureza pluralista, espaçosa e tolerante, estava sempre aberto para deuses novos e novas concepções a respeito dos velhos. Sua mitologia personificava as forças naturais e podia ser facilmente adaptada, através da alegoria, de modo a expressar conceitos metafísicos. Os velhos deuses apareciam com roupas novas e eram objetos de um culto semelhante, mas renovado.

O ateísmo era pouco conhecido, sendo difícil de ser apreendido pelos pagãos, que viam divindade em tudo que os cercava; não apenas no Olimpo, mas também na lareira e no marco de fronteira, que também eram divindades, ainda que de espécie mais humilde. Era possível, na mesma cidade e no mesmo século, cultuar Zeus como um velho devasso e promíscuo, dominado e traído pela mulher, Juno, ou como a deificação da Justiça.

Sócrates meteu-se em apuros por causa de suas ideias políticas, e não de suas concepções filosóficas ou teológicas. Discutir suas ideias religiosas é desviar a atenção das questões mais relevantes. Em toda a Apologia, não há nenhuma passagem em que Sócrates sequer mencione as pilhérias a respeito de suas tendências pró-espartanas e dos jovens pró-espartanos que o idolatravam e imitavam. O problema que temos de abordar, portanto, é o seguinte: por que motivo essas velhas gozações políticas de repente perderam a graça?

Notas

1. Em relação à espionagem em Esparta, ver Tucídides, 4.80; Xenofonte, Constituição da Lacedemonia, 4.4, e Plutarco, Vida de Licurgo, 28.

2. Política, 5.9.3 (Loeb 461).

3. Esses fragmentos encontram-se em Ferguson, Source book, 172-173.

4. Plutarco, Obras morais, 16 vols. (Loeb Classical Library, 1956, reinpressão), Sobre a educação, 10C (1:49).

5. Platão, Apologia, 18B-D (Loeb 1:71-73).

6. Ferguson, Source book, 173.

7. Platão, Apologia, 18B-19C (Loeb 1:73-75).

8. República, 379A.

9. Freeman, Ancilla, 22, frag. 116, 117 e 12.

Os preconceitos de Sócrates contra a política – O Julgamento de Sócrates de I. F. Stone – 7

Três golpes contra a democracia ateniense – O Julgamento de Sócrates de I. F. Stone – 9