Para ter uma dimensão da incidência e dos males dos populismos contemporâneos para a democracia vamos partir da classificação dos regimes políticos do V-Dem (Universidade de Gotemburgo), usando a tabela publicada no seu último relatório (de 2021) (1).
DEMOCRACIAS LIBERAIS (32 regimes)
Austria LD
Belgium LD
Costa Rica LD
Estonia LD
Finland LD
France LD
Germany LD
Ireland LD
Israel LD
Japan LD
Luxembourg LD
Netherlands LD
New Zealand LD
Spain LD
Sweden LD
Switzerland LD
Taiwan LD
United Kingdom LD
USA LD
Australia LD–
Barbados LD–
Canada LD–
Cyprus LD–
Denmark LD–
Ghana LD–
Greece LD–
Iceland LD–
Italy LD–
Latvia LD–
Norway LD–
South Korea LD–
Uruguay LD–
DEMOCRACIAS ELEITORAIS (60 regimes)
Botswana ED+
Chile ED+
Lesotho ED+
Lithuania ED+
Malta ED+
Mauritius ED+
Namibia ED+
Portugal ED+
Senegal ED+
Seychelles ED+
Slovakia ED+
Slovenia ED+
South Africa ED+
Trinidad and Tobago ED+
Vanuatu ED+
Argentina ED
Brazil ED
Bulgaria ED
Burkina Faso ED
Cape Verde ED
Colombia ED
Croatia ED
Czech Republic ED
Dominican Republic ED
Ecuador ED
El Salvador ED
Georgia ED
Guatemala ED
Indonesia ED
Jamaica ED
Kosovo ED
Liberia ED
Maldives ED
Mexico ED
Moldova ED
Mongolia ED
Nepal ED
North Macedonia ED
Panama ED
Paraguay ED
Peru ED
Poland ED
Romania ED
S.Tomé & P. ED
Solomon Islands ED
Sri Lanka ED
Suriname ED
Timor-Leste ED
Tunisia ED
Albania ED–
Bhutan ED–
BiH ED–
Gambia ED–
Guinea-Bissau ED–
Guyana ED–
Malawi ED–
Niger ED–
Nigeria ED–
Sierra Leone ED–
Ukraine ED–
AUTOCRACIAS ELEITORAIS (62 regimes)
Armenia EA+
Hungary EA+
India EA+
Kenya EA+
Lebanon EA+
Madagascar EA+
Mali EA+
Montenegro EA+
Afghanistan EA
Algeria EA
Angola EA
Azerbaijan EA
Bangladesh EA
Belarus EA
Benin EA
Bolivia EA
Burundi EA
Cambodia EA
Cameroon EA
CAR EA
Chad EA
Comoros EA
Congo EA
Djibouti EA
DRC EA
Equatorial Guinea EA
Ethiopia EA
Fiji EA
Gabon EA
Haiti EA
Honduras EA
Iran EA
Iraq EA
Ivory Coast EA
Kazakhstan EA
Kyrgyzstan EA
Malaysia EA
Mauritania EA
Mozambique EA
Myanmar EA
Nicaragua EA
Pakistan EA
Palestine/West Bank EA
Papua New Guinea EA
Philippines EA
Russia EA
Rwanda EA
Serbia EA
Singapore EA
Somaliland EA
Tajikistan EA
Tanzania EA
Togo EA
Turkey EA
Uganda EA
Venezuela EA
Zambia EA
Zanzibar EA
Zimbabwe EA
Egypt EA–
Guinea EA–
Turkmenistan EA–
AUTOCRACIAS FECHADAS (NÃO-ELEITORAIS) (24 regimes)
Kuwait CA+
Uzbekistan CA+
Vietnam CA+
Bahrain CA
China CA
Cuba CA
Eritrea CA
Eswatini CA
Hong Kong CA
Jordan CA
Laos CA
Libya CA
Morocco CA
North Korea CA
Oman CA
Palestine/Gaza CA
Qatar CA
Saudi Arabia CA
Somalia CA
Sudan CA
Syria CA
Thailand CA
UAE CA
Yemen CA
Cabe ressaltar, observando a lista acima, que as autocracias eleitorais – por incrível que possa parecer – são o tipo de regime mais numeroso no mundo (em 2020). E que a maioria dos seres humanos do planeta vive sob regimes autocráticos (e, pior, nunca viveu sob regimes democráticos). E, por último, que o número de democracias liberais está diminuindo (ou parando de crescer) enquanto que o de autocracias eleitorais está aumentando.
Todavia, a classificação do V-Dem não esclarece quais regimes são parasitáveis pelos populismos contemporâneos. Antes de mais nada é preciso saber que os populismos contemporâneos não são variantes da velha demagogia, nem do mau hábito de gastar mais do que se arrecada (ou da prática da irresponsabilidade fiscal). Não são o mesmo que assistencialismo ou clientelismo. Não! Os populismos contemporâneos são uma afecção da democracia eleitoral cujo propósito é transformar a política democrática em guerra eleitoral, seja para paralisar o processo de democratização, seja para invertê-lo, transformando-o em processo de autocratização.
Há, portanto, dois tipos de populismos contemporâneos: um democrático-eleitoral e outro autocrático-eleitoral. O primeiro tipo usa a democracia eleitoral para impedir que ela vire uma democracia liberal. O segundo tipo usa a democracia eleitoral visando convertê-la em autocracia eleitoral.
Pode haver, portanto, populismo democrático, desde que apenas democrático-eleitoral, nunca democrático-liberal. Em geral se diz que os populismos são i-liberais. Frequentemente, também são majoritaristas e, em alguns casos, hegemonistas.
Além disso, nem todos os populismos são de direita ou de extrema-direita (como o trumpismo, o brexitismo, o salvinismo, o lepenismo, o erdoganismo, o orbanismo). Todos os populismos de extrema-direita levam – se realizados por tempo suficiente – à autocracias eleitorais. Há também os populismos de esquerda (como o chavismo-madurismo, o orteguismo ou sandinismo eleitoral, o evoismo, o correismo, o lugonismo, o funesismo, o zelayaismo, o kirchnerismo e o lulopetismo). Nem, todos os populismos de esquerda levam à autocracia: a maioria não. Apenas ficam parasitando a democracia eleitoral e enfreando a continuidade do processo de democratização. Mas há casos em que sim, como os regimes da Venezuela de Maduro e da Nicarágua de Ortega – que viraram ditaduras (do tipo emergente de ditadura no século 21, quer dizer, autocracias eleitorais).
Analisar os populismos contemporâneos é como escrever um tratado de “parasitologia política”. O quadro abaixo dá uma ideia do que estamos falando:
Pelo quadro acima pode-se ver que somente a democracia liberal é capaz de metabolizar as forças políticas populistas impedindo-as de alterar o genoma da democracia (sim, todo populismo pode alterar o genoma da democracia).
E sim, existem democracias eleitorais não parasitadas por populismos. Mas a única maneira de evitar que elas sejam infectadas pelos populismos é manterem em curso o processo de democratização rumo a uma democracia liberal. Na medida em que uma democracia eleitoral não consegue fazer isso, ela fica vulnerável aos populismos. Ou estaciona no “estágio” de democracia eleitoral, ou decai para uma autocracia eleitoral. Como ilustra a metáfora da bicicleta, parar o processo de democratização rumo a uma democracia liberal coloca as democracias eleitorais em permanente risco de serem assaltadas por forças políticas i-liberais que podem, sim, conquistar maiorias eleitorais.
Não existe líder populista sem altos índices de popularidade. Para a democracia, entretanto, isso – por si só – não lhe confere legitimidade. Do contrário os maiores ditadores da história, que tinham altíssimos índices de aprovação, não teriam sido também os maiores genocidas da humanidade. Sim, qualquer líder populista com alta-gravitatem, capaz de mesmerizar as massas, terá um alto número de intenções de votos nas pesquisas e de votos nas urnas. Por isso que é tão difícil remover populistas do governo apenas por processos eleitorais. Eles dominam a “tecnologia eleitoral” a tal ponto, transformando-a em guerra, que seria necessário constituir forças políticas de combate preparadas para removê-los (via de regra também populistas), o que acaba tendo os mesmos efeitos nocivos dos populismos, quando não acirrando polarizações (“nós” contra “eles”) que os reforçam.
Nota
(1) Cf. Autocratization Turns Viral DEMOCRACY REPORT 2021. Produced by the V-Dem Institute at the University of Gothenburg (página 31). Varieties of Democracy (V-Dem) produces the largest global dataset on democracy with almost 30 million data points for 202 countries from 1789 to 2020. Involving over 3,500 scholars and other country experts, V-Dem measures hundreds of different attributes of democracy. V-Dem enables new ways to study the nature, causes, and consequences of democracy embracing its multiple meanings.