Ralf Dahrendorf, em meados dos anos 90, constatou que não existe democracia sem democratas. Isso não significa que todos têm que ser democratas. Democratas sempre foram minoria, mas não podem ser uma minoria tão ínfima que não consigam cumprir o seu papel de ensejar que a democracia continue.
Isso dá um crack nas mentalidades majoritaristas. Quem dera que nós, os democratas, chegássemos a 1%. Aliás, nunca ultrapassamos muito essa porcentagem: nem na Atenas do século 5 a.C., nem no parlamento inglês dos bill of rights do século 17, nem entre os que, nos séculos 18 e 19, fundaram e consolidaram a democracia na América e nem hoje, no Brasil e no mundo.
Quem não entende a nova dinâmica das redes e não tem muita noção de democracia vai dizer que então estamos perdidos. Com 1% não se pode fazer nada. Partindo de 1% nunca vamos chegar a mais de 50%. Ou, quem sabe, só no século 23.
Mas por que precisaríamos chegar a mais de 50%? O papel precípuo dos democratas não é virar maioria e impor, pela força dos votos, a sua vontade. Os democratas são – sempre foram – o fermento na massa, não a massa.
Fermentar a massa significa, no caso, catalizar o processo de formação da opinião pública. A opinião pública que emerge (ou seja, aquela que brota por emergência das miríades de interações de opiniões privadas, não a soma aritmética dessas opiniões), esta sim, deve ser favorável à democracia. Para tanto, não é necessário que todas as pessoas sejam democratas convictas.
Mas, de qualquer modo, uma massa crítica de democratas é necessária para conseguir polinizar opiniões privadas transformando-as em opinião pública democrática. É possível que 1% seja suficiente (por razões de rede, quer dizer, da fenomenologia da interação social, que não podemos explicar aqui). Parece pouco, mas hoje não temos, no Brasil, 1 milhão e 500 mil democratas (que seria 1% de 150 milhões de eleitores).
Vamos falar a verdade. Não temos hoje, no Brasil, nem 1 milhão, nem 500 mil, talvez nem 100 mil pessoas que saibam explicar por que acham que a democracia é um valor universal e o principal valor da vida pública, que consigam distinguir uma posição liberal (em termos políticos) de uma posição i-liberal, que possam mostrar por que democracia não é a mesma coisa que majoritarismo e que estejam capazes de criticar os populismos contemporâneos mostrando por que eles são os principais adversários da democracia. Temos? Não temos.
Claro que as pessoas que concordam com a democracia (a preferem à autocracia ou, pelo menos, a aceitam ou toleram) são – felizmente – muito mais numerosas. A maioria da nossa população (ou quase) tende a concordar com a democracia, conquanto o número dos que não a valorizam venha aumentando assustadoramente, no Brasil e no mundo.
Larry Diamond (2015) traçou um quadro da recessão democrática (na qual entramos em meados da primeira década deste século). Roberto Stefan Foa e Yascha Mounk (2016-2017) detectaram a desconexão e a desconsolidação democráticas dos últimos anos. O mesmo Mounk e Jordan Kyle (2018) avaliaram empiricamente o estrago que o populismo faz na democracia. Anna Lührmann e Staffan Lindberg (2019), juntamente com o pessoal do V-Dem (da Universidade de Gotemburgo), têm analisado a terceira onda de autocratização em que estamos imersos. Mas quantos entendem tudo isso? E quantos estão interessados nisso?
Não. Não é uma coisa para especialistas. Se não tivermos alguma noção dessas coisas como vamos poder cumprir o papel de agentes fermentadores do processo de formação da opinião pública no mundo atual? Como vamos poder mostrar que o neopopulismo bolivarianista de Chávez e Maduro, Correa e Evo, Funes e Lugo, Ortega e Zelaya, Kirchner e Lula, usam a democracia contra a democracia, da mesma forma (embora não sejam a mesma coisa) que o populismo-autoritário (ou nacional-populismo) de Salvini e Orbán, dos irmãos Kaczyński e de Le Pen, de Farage e Strache, de Bannon e Trump, de Olavo e Bolsonaro?
Ora, se não soubermos mostrar isso, como vamos conseguir ser protagonistas de uma nova alternativa democrática na atualidade?
Mas aí algumas pessoas perguntam: qual democracia?
A democracia é contra-intuitiva. E é preciso compor seus diferentes elementos para “sintetizar o DNA” democrático. Alguns exemplos:
♥ a democracia como a política propriamente dita, ou seja, a política que toma como sentido a liberdade
♥ a democracia como processo de criação social do commons (no sentido político do termo)
♥ a democracia como o regime sem um senhor (na definição, talvez a primeira escrita, de Ésquilo, em Os Persas)
♥ a democracia como processo de desconstituição de autocracia
♥ a democracia como o regime sem doutrina; ou, a democracia não como um ensinar e sim como um deixar-aprender
♥ a democracia como o regime sem utopia; ou a política como “utopia” (na verdade, topia) da democracia (e não o contrário); ou, ainda, a democracia não como ponto de chegada de uma caminhada e sim como um modo de caminhar
♥ a democracia como o regime da opinião, da interação e da polinização mútua de opiniões, da liberdade de opinião – ou seja, da isologia, isonomia e isegoria no tocante às opiniões, que não desvaloriza a doxa em relação à episteme ou à techné (quando se trata do processo de formação da vontade política coletiva)
♥ a democracia como “metabolismo” de uma rede (mais distribuída do que centralizada) social (quer dizer, propriamente humana) de conversações
♥ a democracia como auto-organização societária (a rigor, comunitária)
♥ a democracia como modo-de-vida ou de convivência social
♥ a democracia como uma brecha no muro da cultura patriarcal; ou como um modo de desprogramar (detox, rehab) cultura autocrática
♥ a democracia como dinâmica neo-matrística ou revivescência de uma cultura matrística (pré-patriarcal)
♥ a democracia como um erro no script da Matrix ou como uma janela para o simbionte social poder respirar
♥ a democracia como um modo não-guerreiro (pazeante) de regulação de conflitos (e, neste sentido, como o contrário da guerra – que é a autocracia)
♥ a democracia como o governo de qualquer um (e não o governo de um, de poucos, de muitos ou da maioria)
♥ a democracia como fruição da liberdade presente (que se materializa quando se interage na comunidade política, após a libertação do reino da necessidade, da servidão da casa ou da família e das exigências sobrevivenciais)
♥ a democracia como fundação constante da polis para encontrar um espaço onde os seres humanos possam se reunir permanentemente, sem necessidade, para gerar uma nova entidade (ou uma nova “espécie social” que surge quando vivemos a convivência); ou, a democracia como criação de novos mundos sociais
Isso não esgota os pontos de vista possíveis. A democracia é atributo da sociedade aberta e, assim, da sociedade que tem o futuro aberto à invenção, portanto, aberta também à reinvenção de passado (ou seja, à possibilidade de construir e reconstruir a sua própria “tradição”).
Inspiração: os democratas atenienses, Clístenes, Efialtes, Péricles, Aspásia e, sobretudo, os sofistas, como Protágoras, Antífon, Crátilo, Górgias, Hípias, Pródigos, Trasímaco, talvez Alcídamas, Licofronte e o Anônimo Jâmblico. E todos aqueles que, mais de dois milênios depois, lograram captar pedaços do DNA democrático; e. g. Spinoza, Rousseau, Jefferson e os Federalistas, Paine, Tocqueville, Thoreau, Mill, Dewey, Popper, Arendt, Lefort, Castoriadis, Maturana, Rawls, Dahrendorf, Sen, Dahl, Rancière… É preciso juntar esses pedaços e acrescentar outros.
Esta pode ser considerada a décima-quinta reflexão terrestre sobre a democracia. Veja as outras reflexões:
Para ler as reflexões terrestres sobre a democracia:
Primeira reflexão terrestre sobre a democracia
Segunda reflexão terrestre sobre a democracia
Terceira reflexão terrestre sobre a democracia
Quarta reflexão terrestre sobre a democracia
Quinta reflexão terrestre sobre a democracia
Sexta reflexão terrestre sobre a democracia
Sétima reflexão terrestre sobre a democracia
Oitava reflexão terrestre sobre a democracia
Nona reflexão terrestre sobre a democracia
Décima reflexão terrestre sobre a democracia
Décima-primeira reflexão terrestre sobre a democracia
Décima-segunda reflexão terrestre sobre a democracia


