No dia 25 de março de 2019 os inscritos no programa Novos Pensadores começaram a se debruçar sobre o primeiro volume de A Sociedade Aberta e Seus Inimigos, de Karl Popper (1945), intitulado O Fascínio de Platão.
Entender as razões do fascínio de Platão é fundamental para a aprendizagem democrática.
Como uma canja para os que não estão fazendo o programa vamos publicar aqui os textos originais de Popper – com destaques em vermelho e os comentários provocativos em azul – que geraram conversações democráticas entre os participantes do curso.
Já publicamos os comentários à Introdução do primeiro volume. E também os comentários aos dois primeiros capítulos. E, em seguida, os comentários ao terceiro capítulo e os comentários ao quarto capítulo. E os comentários ao capítulo 5 e ao capítulo 6 e ao capítulo 7. E também o capítulo 8. Segue abaixo o capítulo 9.
PRIMEIRA PARTE
O FASCÍNIO DE PLATÃO
Em favor da Sociedade Aberta (cerca de 430 a. C.):
“Embora somente poucos possam dar origem a uma politica, somos todos capazes de julgá-la”.
Péricles de Atenas
Contra a Sociedade Aberta (cerca de 80 anos depois):
“O maior de todos os princípios é que ninguém, seja homem ou mulher, deve carecer de um chefe. Nem deve a mente de qualquer pessoa ser habituada a permitir-lhe fazer ainda que a menor coisa por sua própria iniciativa, nem por zelo, nem mesmo por prazer. Na guerra como em meio à paz, porém, deve ela dirigir a vista para seu chefe e segui-lo fielmente. E mesmo nas mais ínfimas questões deve manter-se em submissão a essa chefia. Por exemplo, deve levantar-se, ou mover-se, ou lavar-se, ou tomar refeições… apenas se lhe for ordenado que o faça. Numa palavra, deve ensinar sua alma, por hábito prolongado, a nunca sonhar em agir independentemente e a tornar-se totalmente incapaz disso”.
Platão de Atenas
CAPÍTULO 9
ESTETICISMO, PERFECCIONISMO, UTOPISMO
“Tudo tem de ser esmagado para recomeçar. Nossa própria civilização condenada deve perecer, antes que possamos trazer ao mundo qualquer decência” — “ Mourlan”, em “Os Thibaults”, de ROGER MARTIN DU GARD.
Há certa consideração da política inerente ao programa de Platão que, creio eu, é das mais perigosas. Sua análise é de grande importância prática, do ponto de vista da mecânica social racional. A consideração platônica que tenho em mente pode ser descrita como a da mecânica utópica, em oposição a outra espécie de mecânica social que considero como a única racional e que pode ser descrita pelo nome de mecânica gradual. A consideração utópica é tanto mais perigosa quanto pode parecer ser a única alternativa para um historicismo extremado, para uma consideração radicalmente historicista que implica não podermos alterar o curso da história; ao mesmo tempo, parece ser um complemento necessário a um historicismo menos radical, como o de Platão, que permite a interferência humana.
Pode ser assim descrita a consideração utópica: qualquer ação racional deve ter certo alvo. É racional no mesmo grau em que visa a seu alvo consciente e consistentemente, e em que determina seus meios de acordo com esse fim. Escolher tal fim é, portanto, a primeira coisa que deveremos fazer se quisermos agir racionalmente; e devemos ser cuidadosos na determinação de nossos fins reais ou definitivos, dos quais devemos distinguir claramente aqueles fins intermédios ou parciais, que realmente são apenas meios, ou passos, no caminho para o fim definitivo. Se esquecermos essa distinção, então também nos esqueceremos de indagar se esses fins parciais são susceptíveis de promover o fim definitivo e, portanto, deixaremos de agir racionalmente. Tais princípios, aplicados ao reino da atividade política, exigem que determinemos nosso alvo político definitivo, ou o Estado Ideal, antes de empreender qualquer ação prática. Apenas quando esse fim definitivo for determinado, pelo menos em toscos traços, apenas quando estivermos, de posse de algo como um projeto da sociedade que visamos, só então poderemos começar a considerar os melhores modos e meios de sua realização e traçar um plano para a ação prática. São estas as preliminares necessárias de qualquer movimento político prático que possa ser chamado racional, e especialmente da mecânica social.
Tal é, em resumo, o processo metodológico a que denomino mecânica utópica (1). É convincente e atraente. De fato, é precisamente a espécie de processo metodológico capar de atrair todos aqueles que não estão afetados por preconceitos historicistas ou reagem contra eles. Isto só o torna mais perigoso, e mais imperativa sua crítica.
Antes de passar a criticar em minúcia a mecânica utópica, desejo esboçar outra consideração da mecânica social, isto é, da mecânica gradual. É uma consideração que julgo metodologicamente sadia. O político que adota esse método pode ter, ou não, um projeto de sociedade em mente, pode esperar, ou não, que a humanidade realize um dia um estado ideal e alcance a felicidade e a perfeição sobre a terra. Mas será consciente de que essa perfeição, se puder ser atingível, está muito distante, e de que cada geração de homens, os contemporâneos também, portanto, têm uma reivindicação; talvez não tanto uma reivindicação de serem felizes, mas a de não serem infelizes sempre que isso se puder evitar. Têm a reivindicação de que lhes seja dado todo o auxílio possível quando sofrerem. A mecânica gradual, em consequência, adotará o método de pesquisar e combater os maiores e mais prementes males da sociedade, em vez de buscar seu maior bem definitivo e combater por ele (2). Esta diferença está longe de ser meramente verbal. De fato, é da maior importância. É a diferença entre um método razoável de aperfeiçoar o quinhão do homem e um método que, se realmente experimentado, pode facilmente levar a um intolerável acréscimo de sofrimento humano. É a diferença entre um método que pode ser aplicado a qualquer momento e outro cuja defesa pode facilmente tornar-se um meio de transferir continuamente a ação para data posterior, em que as condições sejam mais favoráveis. E é também a diferença entre o único método de aperfeiçoar as coisas que até agora obteve êxito em qualquer tempo e em qualquer lugar (inclusive na Rússia, como veremos), e um outro que, onde quer que tenha sido tentado, só tem levado ao uso da violência em lugar da razão, se não ao próprio abandono desta e, de qualquer modo, ao de seu projeto original.
Em favor deste método, pode o mecânico social gradual proclamar que uma luta sistemática contra o sofrimento, a injustiça e a guerra tem mais possibilidades de ser sustentada pela aprovação e consenso de um grande número de pessoas do que a luta pelo estabelecimento de algum ideal. A existência de males sociais, isto é, de condições sociais sob as quais muitos homens sofrem, pode ser relativamente bem estabelecida. Os que sofrem podem julgar por si mesmos e os demais dificilmente podem negar que eles não prefeririam mudar de situação. Infinitamente mais difícil é raciocinar a respeito de uma sociedade ideal. A vida social é tão complicada que poucos homens, ou nenhum, poderão julgar um projeto de mecânica social em grande escala, ou se ele é praticável, ou se resultará num verdadeiro melhoramento, ou que espécie de sofrimento pode envolver, ou quais serão os meios para sua realização. Em oposição a isto, os projetos da mecânica gradual são relativamente simples. São projetos de instituições determinadas, de seguro de saúde e desemprego, por exemplo, ou de cortes de arbitramento, ou de um orçamento contra a depressão (3), ou de reforma educacional. Se não andarem bem, o dano não é muito grande, nem um reajustamento muito difícil. São menos arriscados e, por essa razão, menos sujeitos à controvérsia. Mas se é mais fácil alcançar um acordo razoável acerca dos males existentes e dos meios de combatê-los do que acerca de um bem ideal e dos meios de sua realização, também há mais esperança, então, de que usando esse método gradual podemos superar as maiores dificuldades práticas de toda reforma política razoável, a saber, as de empregar a razão, em vez da paixão e da violência, na execução do programa. Haverá a possibilidade de alcançar uma negociação razoável e, portanto, de efetuar o melhoramento por métodos democráticos. (“Negociação” é uma palavra feia, mas é importante que aprendamos seu uso apropriado. As instituições são inevitavelmente o resultado de uma negociação com circunstâncias, interesses, etc., embora, como pessoas, resistamos a influências dessa espécie.)
Em oposição a isso, o utópico tenta realizar um estado ideal, usando um projeto de sociedade como um todo; e isso exige o forte regime centralizado de uns poucos, o qual, portanto, é passível de conduzir a uma ditadura (4). Considero esta afirmação uma crítica da consideração utópica, pois tentei mostrar, no capítulo sobre o Princípio da Liderança, que um regime autoritário é a mais censurável forma de governo. Certos pontos não tocados naquele capítulo fornecem-nos argumentos ainda mais diretos contra a consideração utópica. Uma das dificuldades encontradas por um ditador benevolente é verificar se os efeitos de suas medidas concordam com suas boas intenções. A dificuldade surge do fato de que o autoritarismo deve desencorajar a crítica; em consequência, o ditador benevolente não terá facilidade em ouvir queixas referentes às medidas que tomou. Mas, sem alguns desses controles, ser-lhe-á árduo verificar se suas medidas alcançam o desejado alvo benevolente. A situação deve tornar-se ainda pior para o mecânico utópico. A reconstrução da sociedade é um grande empreendimento, que deve causar consideráveis incômodos a muitos, e por considerável lapso de tempo. Consequentemente, o mecânico utópico terá de fazer-se surdo a muitas queixas; de fato, será parte de sua função suprimir as objeções desarrazoadas. Mas, com elas, deverá também suprimir a crítica razoável. Outra dificuldade da mecânica utópica está em relação com o problema do sucessor do ditador. No capítulo 7 mencionamos certos aspectos desse problema. A mecânica utópica suscita dificuldades análogas e até mesmo mais sérias do que a enfrentada pelo tirano benevolente que tenta encontrar um sucessor de igual benevolência (5). A própria amplitude de tal empreendimento utópico torna-lhe improvável realizar seus fins durante a existência de um mecânico social, ou de um grupo de mecânicos. E se os sucessores não objetivarem o mesmo ideal, então todos os sofrimentos do povo por esse ideal podem ter sido em vão.
Popper ecoa aqui o debate, travado há mais de um século, entre reforma (que ele chama de “mecânica gradual”) e revolução (“consideração utópica”).
Uma generalização deste argumento leva a mais ampla crítica da consideração utópica. Essa consideração, como é claro, só pode ter valor prático se admitirmos que o projeto original, talvez com certos reajustamentos, permanece como básico para a obra, até que esta se complete. Mas isso levará algum tempo. É, contudo, de esperar que ideias e ideais mudem. Aquilo que pareceu ser o estado ideal ao povo que fez o projeto original pode não parecer assim a seus sucessores. Admitido isto, toda a consideração se desmorona. O método de estabelecer primeiramente um alvo político definitivo e depois começar o movimento para ele é fútil, se concordarmos em que tal alvo pode ser consideravelmente alterado no decurso de sua realização. A qualquer momento poder-se-á verificar que os passos até então dados realmente se desviam da realização do novo alvo. E se mudarmos a direção de acordo com o novo alvo, expor-nos-emos mais uma vez ao mesmo risco. A despeito de todos os sacrifícios feitos, podemos nunca chegar a parte alguma. Os que preferem dar um passo na direção de um ideal distante à realização de uma negociação gradual deveriam sempre lembrar-se de que, se o ideal está muito distante, pode-se mesmo tornar difícil dizer se o passo dado leva a ele ou nos afasta dele. Isto sucede especialmente se o caminho deve ser feito em ziguezagues, ou, no jargão de Hegel, “dialeticamente”, ou se não for claramente planejado. (Isto nos traz à velha e algo infantil indagação: até onde pode o fim justificar os meios? Embora proclamando que nenhum fim pode jamais justificar todos os meios, creio que um fim bem concreto e realizável pode justificar medidas temporárias que um ideal distante nunca poderia justificar (6).)
Exato!
Vemos agora que a consideração utópica só pode ser salva pela crença platônica num ideal absoluto e imutável, juntamente com outras duas admissões, a saber: a) que há métodos racionais para determinar, de uma vez e por todas, qual é esse ideal e, b) quais são os métodos de sua realização. Apenas essas admissões de largo alcance podem impedir-nos de declarar que a metodologia utópica é extremamente fútil. Mas mesmo o próprio Platão e os mais ardentes platônicos admitirão que a admissão a) não é por certo verdadeira; não há método racional para determinar o alvo definitivo, havendo apenas, se houver, certa espécie de intuição. Qualquer divergência de opinião entre os mecânicos utópicos deve portanto conduzir, na ausência de métodos racionais, ao emprego da força em lugar da razão, isto é, à violência. E se se fizer algum progresso em qualquer direção definida, este será feito apesar do método adotado, e não em razão dele. O sucesso pode ser devido, por exemplo, à excelência dos dirigentes, mas nunca nos deveremos esquecer de que excelentes dirigentes não podem ser produzidos por métodos racionais, e sim apenas por sorte.
É importante compreender devidamente esta crítica; não critico o ideal proclamando que um ideal nunca possa ser realizado, que ele deva permanecer sempre uma utopia. Não seria esta uma crítica válida, pois muitas que outrora haviam sido dogmaticamente declaradas irrealizáveis têm sido realizadas, como por exemplo o estabelecimento de instituições para assegurar a paz civil, isto é, para a prevenção do crime dentro do estado. E creio que, por exemplo, o estabelecimento de instituições correspondentes para prevenção do crime internacional, isto é, a agressão armada ou o estelionato, embora muitas vezes rotulado como utópico, nem é mesmo um problema muito difícil (7). O que critico sob o nome de mecânica utópica é a recomendação da reconstrução da sociedade como um todo; isto é, mudanças muito abrangentes, cujas consequências praticas são difíceis de calcular, em face de nossas experiências limitadas. Pretende ela um planejamento racional da sociedade inteira, embora não possuamos coisa alguma que se pareça ao conhecimento factual que seria necessário para tornar bom tão ambicioso objetivo. Não podemos possuir tal conhecimento por termos insuficiente experiência prática dessa espécie de planejamento, e o conhecimento dos fatos deve basear-se na experiência. Presentemente, o conhecimento necessário à mecânica em ampla escala simplesmente não existe.
Em vista desta critica, o mecânico utópico pode concordar com a necessidade de experiência prática, e dê uma tecnologia social baseada em experiências práticas. Argumentará, porém, que nunca chegaremos a conhecer mais a respeito de tais assuntos se recuarmos de fazer experimentações sociais, as únicas que nos podem fornecer a experiência prática necessitada. E poderia aduzir que a mecânica utópica nada mais é do que a aplicação do método experimental à sociedade. Experiências não se podem efetuar sem envolver mudanças de amplo alcance. Devem ser em larga escala, em vista do caráter peculiar da sociedade moderna com suas grandes massas de povo. Uma experiência de socialismo, por exemplo, se confinada a uma fábrica, ou a uma aldeia, ou mesmo a um distrito, nunca nos daria a espécie de informação realista de que tão prementemente necessitamos.
Tais argumentos em favor da mecânica utópica exibem um preconceito tão vastamente sustentado quanto é insustentável, a saber, o preconceito de que as experiências sociais devem ser em “larga escala”, de que devem envolver a sociedade inteira, para poderem ser executadas em condições realistas. Mas as experiências sociais graduais podem ser realizadas em condições realistas, no meio da sociedade, a despeito de serem em “pequena escala”, isto é, sem revolucionarem a sociedade inteira. De fato, estamos realizando constantemente tais experiências. A introdução de um novo sistema de seguro de vida, de uma nova espécie de tributação, de uma nova reforma penal, tudo isso são experiências sociais que têm repercussões em toda a sociedade sem remodelar a sociedade como um todo. Mesmo um homem que abre uma loja nova, ou que reserva uma entrada para o teatro, está realizando uma espécie de experiência social em pequena escala; e todo o nosso conhecimento das condições sociais é baseado na experiência adquirida com a realização de experimentações de tal espécie. O mecânico utópico a que nos estamos opondo teria razão quando acentua que uma experiência de socialismo teria pouco valor se realizada em condições de laboratório, como por exemplo numa aldeia isolada, visto como o que desejamos saber é o modo por que se processam as coisas em sociedade sob normais condições sociais. Mas esse próprio exemplo mostra onde reside o preconceito do mecânico utópico. Está ele convencido de que devemos refundir toda a estrutura da sociedade quando fazemos experiências com esta; e só pode, portanto, conceber uma experiência mais modesta como uma que refunda toda a estrutura de uma pequena sociedade. Mas a experiência que mais nos pode ensinar a alteração de uma instituição social em determinado tempo. Só desse modo, realmente, poderemos aprender como adequar as instituições ao arcabouço das outras instituições e como ajustá-las para que trabalhem de acordo com as nossas intenções. E só desse modo poderemos cometer enganos, aprendendo com os enganos, sem arriscar repercussões de tal gravidade que possam por em perigo o desejo de futuras reformas. Além do mais, o método utópico deve levar a uma perigosa adesão dogmática a um projeto pelo qual se fizeram incontáveis sacrifícios. Poderosos interesses devem ligar-se ao sucesso dessa experiência. Tudo isso não contribui para a racionalidade, ou para o valor científico, da experiência. Mas o método gradual permite experiências reiteradas e contínuos reajustamentos. De fato, pode conduzir à feliz situação em que os políticos comecem a encarar seus próprios enganos, em vez de tentar explicá-los e provar que sempre estiveram com a razão. Isto — e não o planejamento utópico nem a profecia histórica — significa a introdução do método científico na política, visto como todo o segredo do método científico é a disposição a aprender dos enganos (8).
Creio que estas opiniões podem ser corroboradas comparando a mecânica social e, por exemplo, a engenharia mecânica. O mecânico utópico naturalmente asseverará que os engenheiros mecânicos muitas vezes planejam maquinismos muito complicados como um todo, e que seus projetos podem cobrir e planejar antecipadamente não só certa espécie de maquinismos como mesmo toda a fábrica que os deve produzir. Minha resposta será a de que o engenheiro mecânico pode fazer tudo isso porque tem suficiente experiência a seu dispor, isto é, teorias desenvolvidas em tentativas e erros. Mas isso significa que ele pode planejar porque já cometeu todas as espécies de enganos; ou, em outras palavras, porque confia na experiência que adquiriu com a aplicação de métodos graduais. Seus novos maquinismos são o resultado de inúmeros aperfeiçoamentos pequenos. Normalmente, ele primeiro tem um modelo e só depois de grande número de ajustamentos graduais de suas diversas partes é que passa à etapa em que pode desenhar os planos finais para a produção. Similarmente, seu plano para a produção de sua máquina incorpora grande número de experiências, isto é, de aperfeiçoamentos graduais feitos em fábricas mais antigas. O método por atacado, ou em larga escala, só funciona quando o método gradual primeiro nos forneceu um grande número de experiências minuciosas, e, mesmo então, só dentro do domínio dessas experiências. Poucos fabricantes estariam em condições de passar à produção de uma nova máquina apenas com base num projeto, mesmo que este fosse traçado pelo maior dos peritos, sem antes fazer um modelo e “desenvolvê-lo” por meio de pequenos ajustamentos até o máximo possível.
É talvez útil contrastar essa crítica do idealismo platônico em política com a crítica que Marx faz ao que ele denomina “utopismo”. O que existe de comum entre a crítica de Marx e a minha é que ambas exigem mais realismo. Ambos acreditamos que os planos utópicos nunca serão realizados do modo pelo qual são concebidos, porque dificilmente qualquer ação social chegará a produzir precisamente o resultado esperado. (Isto não invalida, em minha opinião, o processo gradual, porque com ele podemos aprender — ou antes, devemos aprender — e mudar nossas opiniões enquanto agimos.) Há, porém, muitas diferenças entre nós. Ao argumentar contra o utopismo, Marx de fato condena qualquer mecânica social, ponto que é raramente compreendido. Denuncia ele a fé num planejamento racional das instituições sociais como inteiramente anti-realista, visto como a sociedade deve crescer de acordo com as leis da história e não de acordo com os nossos planos racionais. Tudo o que podemos fazer, assevera, é diminuir as dores do parto dos processos históricos. Em outras palavras, ele adota uma atitude radicalmente historicista, oposta a toda mecânica social. Mas há um elemento no utopismo que é particularmente característico do processo de Platão e ao qual Marx não se opõe, embora talvez seja o mais importante daqueles elementos que ataquei como não-realistas. É o amplo alcance do utopismo, sua tentativa de lidar com a sociedade como um todo, não deixando pedra por virar. É a convicção de que se tem de ir até à própria raiz do mal social, de que nada menos do que a completa erradicação do sistema social prejudicial bastará se quisermos “trazer alguma decência ao mundo” (como diz R. M. Du Gard). É, em suma, seu intransigente radicalismo. (O leitor notará que estou empregando este termo em seu sentido original e literal — não no novo sentido costumeiro de um “progressismo liberal”, mas a fim de caracterizar uma atitude de ir à raiz da questão”.) Tanto Platão como Marx sonham com a revolução apocalíptica que transfigurará radicalmente todo o mundo social.
Este amplo alcance, esse extremo radicalismo do tratamento platônico (e também do marxista) liga-se, creio, a seu esteticismo, isto é, ao desejo de construir um mundo que não só seja um pouco melhor e mais racional do que o nosso mas que seja livre de toda a feiura deste; não um estofo maluco, um velho traje mal remendado, mas uma veste inteiramente nova, um mundo novo realmente belo (9). Esse esteticismo é uma atitude muito compreensível; de fato, acredito que a maior parte de nós sofre um pouco de tais sonhos de perfeição. (Algumas razões de assim sentirmos, espero, emergirão do capítulo seguinte). Mas esse entusiasmo estético só se toma valioso quando refreado pela razão, por um sentimento de responsabilidade, por um impulso humanitário a prestar, ajuda. De outro modo, será um entusiasmo perigoso, passível de desenvolver-se em alguma forma de neurose ou histeria.
Em parte alguma encontramos esse esteticismo mais fortemente expresso do que em Platão. Era ele um artista e, como muitos dos melhores artistas, tentava visualizar um modelo, o “original divino” de sua obra, e “copiá-lo” fielmente. Bom número das citações apresentadas no capítulo anterior ilustram esse ponto. O que Platão descreve como dialéctica é, de modo principal, a intuição intelectual do mundo de pura beleza. Seus filósofos adestrados são homens que “viram à verdade do que é belo, e justo, e bom” (10) e podem trazê-lo do céu á terra. A política, para Platão, é a Arte Real. É uma arte— não no sentido metafórico em que podemos falar acerca da arte de manejar os homens, ou da arte de fazer as coisas, mas num sentido mais literal do vocábulo. É uma arte de composição, como a música, a pintura ou a arquitetura. O político platônico compõe cidades, por amor à beleza.
Aqui, porém, devo protestar. Não acredito que as vidas humanas possam tornar-se os meios de satisfazer o desejo de auto-expressão de um artista. Devemos antes exigir que cada homem receba o direito, se o desejar, de modelar ele próprio sua vida, enquanto isto não interferir demais com as dos outros. Por muito que eu possa simpatizar com o impulso artístico, sugiro que o artista busque expressar-se com outro material. A política, reclamo, deve sustentar princípios igualitários e individualistas; os sonhos de beleza devem submeter-se à necessidade de auxiliar os homens aflitos, os homens que sofrem injustiças, e à necessidade de construir instituições que sirvam a esses objetivos (11).
É interessante observar a estreita relação entre o extremo radicalismo de Platão, a exigência de medidas de amplo alcance, e seu esteticismo. As passagens seguintes são altamente características. Ao falar sobre “o filósofo que tem comunhão com o divino”, Platão menciona primeiro que ele será “sobrecarregado pela premência… de realizar sua visão celestial nos indivíduos, assim como na cidade”, — uma cidade que “nunca conhecerá a felicidade, a menos que seus desenhadores sejam artistas que tenham o divino como seu modelo”. Indagado a respeito dos pormenores de seu modo de fazer o desenho, o “Sócrates” de Platão dá a seguinte surpreendente resposta: “Tomarão como sua tela uma cidade e os caracteres dos homens e, antes de tudo, deixarão limpa essa tela, o que de modo algum é coisa fácil. Mas este é justamente o ponto, sabes, em que eles diferem dos outros. Não começarão a trabalhar numa cidade, nem num indivíduo (nem traçarão leis), a menos que lhes seja dada uma tela limpa, ou que eles mesmos a limpem” (12).
Aqui surge novamente a ideia mais maligna para a democracia que já foi concebida em todos os tempos: a ideia de limpeza (ou pureza). Popper quer nos dizer que essa ideia não era de Sócrates e sim de Platão, que a teria colocado indevidamente na boca do seu mestre pervertendo o seu pensamento. Não é provável. A ideia de “tela limpa” (ou de tela limpada) levou às maiores atrocidades já cometidas: o jacobinismo (da terra-arrasada) e o reinado do terror, o bolchevismo e a ditadura do proletariado, o fascismo e o nazismo e o supremacismo racial. Como se vê, essa ideia continua presente na instrumentalização política do moralismo popular feita pelos novos cruzados da limpeza ética.
Que espécie de coisa tinha Platão em mente ao falar de limpeza da tela é explicado pouco mais adiante. “Como pode isso ser feito?” indaga Glaucon. E Sócrates responde: “Todos os cidadãos com mais de dez anos de idade devem ser expulsos da cidade e deportados para qualquer parte do pais; e as crianças, que agora estão livres da influência do mesquinho caráter de seus pais, devem ser retidas e educadas nos caminhos dos verdadeiros filósofos e de acordo com as leis que temos descrito”. No mesmo espirito fala Platão, no Estadista, dos dirigentes reais que governam de acordo com a Ciência Real da Política: “Quer suceda que governem com a lei ou sem a lei, sobre súditos voluntários ou forçados;… que quer purguem o estado, para bem deste, matando ou deportando alguns de seus cidadãos…, enquanto procederem de acordo com a ciência e a justiça e preservarem… o estado, tornando-o melhor do que era, esta forma de governo pode ser descrita como a única que é certa”.
Eis a noção de educação de Platão (e de Sócrates, inútil negar). Como vemos, a ideia de educação que sobreviveu até hoje guarda elementos dessa intenção perversa: “fazer a cabeça” dos filhos dos outros.
Este é o modo por que deve proceder o político-artista. Isto é o que significa a limpeza da tela. Deve ele erradicar as instituições e tradições existentes. Deve purificar, expurgar, expelir, deportar, matar. (“Liquidar”, é a terrível palavra moderna para isso). A afirmativa de Platão é deveras uma autêntica descrição da intransigente atitude de todas as formas de extremado radicalismo — da recusa estética em transigir. A opinião de que a sociedade deva ser bela como uma obra de arte leva apenas, com demasiada facilidade, a medidas violentas. Mas todo esse radicalismo e violência são anti-realistas e fúteis. (Isto tem sido mostrado pelo exemplo do desenvolvimento da Rússia. Depois do desastre econômico a que levou a limpeza de tela do chamado “comunismo de guerra”, Lenin introduziu sua “Nova Política Econômica”, que de fato era uma espécie de mecânica gradual, embora sem a formulação consciente de seus princípios ou de uma tecnologia. Começou restaurando muitos dos aspectos do quadro que fora erradicado com tantos sofrimentos humanos. Dinheiro, mercados, diferenciação de renda, propriedade privada — e por certo tempo mesmo o empreendimento particular na produção — foram reintroduzidos e só depois que essa base foi restabelecida teve começo um novo período de reforma (13).
A fim de criticar os fundamentos do radicalismo estético de Platão, podemos distinguir dois pontos diferentes.
O primeiro é este: aquilo que certas pessoas têm em mente quando falam de nosso “sistema social” e da necessidade de substituí-lo por outro “sistema” é muito semelhante a um quadro pintado numa tela que tem de ser limpada antes que se possa pintar nela outro novo. Mas há algumas grandes diferenças. Uma delas é a de que o pintor e aqueles que cooperam com ele, assim como as instituições que tornam sua vida possível, seus sonhos e planos de um mundo melhor e seus padrões de decência e moralidade, tudo isso faz parte do sistema social, isto é, da pintura a ser desmanchada. Se realmente tivessem de limpar a tela, teriam de destruir-se a si mesmos e a seus planos utópicos. (E o que se seguisse, provavelmente, não seria uma bela cópia do ideal platônico, mas o caos). O político artista clama, como Arquimedes, por um lugar fora do mundo social, em que possa fincar pé a fim de erguê-lo sobre seus gonzos. Mas tal lugar não existe e o mundo social deve continuar a funcionar durante qualquer reconstrução. Por esta simples razão é que devemos reformar suas instituições pouco a pouco, até que tenhamos maior experiência de mecânica social.
Isto nos conduz ao segundo ponto, mais importante, ao irracionalismo que é inerente ao radicalismo. Em todos os assuntos, só podemos aprender tentando e errando, cometendo enganos e fazendo melhoramentos; nunca podemos confiar na inspiração, embora as inspirações sejam valiosíssimas sempre que puderem ser controladas pela experiência. Consequentemente, não é razoável admitir que uma reconstrução completa de nosso mundo social conduzira imediatamente a um sistema capaz de funcionar.
Deveríamos antes esperar que, dada a falta de experiência, muitos enganos se cometeriam, só passíveis de eliminação por um longo e laborioso processo de pequenos ajustamentos; em outras palavras, por aquele método racional de mecânica gradual cuja aplicação advogamos. Mas aqueles a quem desagrada esse método, como insuficientemente radical, teriam então, de tornar a desmanchar sua sociedade recém-construída, a fim de começar de novo com uma tela limpa; e desde que o novo começo, pelas mesmas razões, não levaria também à perfeição, teriam de repetir esse processo sem jamais chegar a parte alguma. Os que admitem isto e estão preparados para adotar nosso método mais modesto dos aperfeiçoamentos graduais, mas só após a primeira limpeza radical da tela, dificilmente poderão escapar à crítica de que sua primeira limpeza e suas medidas violentas foram inteiramente desnecessárias.
O esteticismo e o radicalismo devem levar-nos a repelir a razão e a substituí-la por uma desesperada esperança de milagres políticos. Esta atitude irracional, que nasce de uma embriaguez de sonhos de um mundo belo, é o que chamo romantismo (14). Pode procurar sua cidade celeste no passado ou no futuro, pode pregar a “volta à natureza”, ou a “marcha para um mundo de amor e beleza”; mas apela antes para as nossas emoções do que para a razão. Mesmo com as melhores intenções de fazer um céu na terra, só consegue fazer dela um inferno — aquele inferno que somente o homem prepara para seus semelhantes.
Eis aqui um ponto importante, notado por Popper. A democracia é terrestre. A utopia é celeste. A democracia não é uma utopia, não quer trazer um novo sistema perfeito para colocar no lugar de outro, sujo e imperfeito. São nossas ações cotidianas, singulares e precárias, que podem produzir um mundo com mais liberdade e igualdade. Não existe este céu onde os modelos de um sistema ideal, justo e perfeito, estejam arquivados, só esperando que algum visionário vá lá acessá-los e trazê-los para a terra. Toda tentativa de “fazer um céu na terra” acaba em autocracia (ou tirania).
Notas
As notas estão desorganizadas (por culpa do próprio Popper, do tradutor e do editor brasileiros) e sem revisão.
A legenda é tirada da p. 575 da edição inglesa de “Os Thibault”, de Roger Martin du Gard (Summer 1914, Londres, 1940).
1 — Minha descrição da mecânica social utópica parece coincidir com a espécie de mecânica social advogada por M. Eastman em Marxism – Is it Science?; ver especialmente pag. 22 sg. Tenho a impressão de que as concepções de Eastman representam o balanço de um pêndulo, do historicismo para a mecânica utópica. Mas é possível que me engane e o que Eastman tenha em em mente esteja mais no rumo do que chamo mecânica gradual. A concepção de Roscoe Pound de “mecânica social” é claramente “gradual”; cf. nota 9 ao cap. 3; ver também nota 18 (3) ao cap. 5.
2 — Acredito que não há simetria, do ponto de vista ético, entre sofrimento e felicidade, ou entre dor e prazer. Tanto o princípio da felicidade máxima dos utilitários como o princípio de Kant — “ promover a felicidade dos demais” — parecem-me (pelo menos em suas formulações) fundamentalmente errados neste ponto, que, entretanto, não é de argumentação racional. (Sobre os aspectos irracionais das crenças éticas, ver nota 11 ao presente capítulo, e sobre o aspecto racional, as secções II e, especialmente II do cap. 24). Em meu parecer (cf. nota 6 (2) ao cap. 5) o sofrimento humano faz um direto apelo moral, a saber, o apelo por auxilio, ao passo que não há tal apelo para que se aumente a felicidade de um homem que de qualquer modo vá indo muito bem. (Outra crítica da fórmula utilitária “levar ao máximo o prazer” é que ela admite, em princípio, uma escala contínua prazer-dor, que nos permite tratar os graus de dor como graus negativos de prazer. Mas, do ponto de vista moral, a dor não pode ser pesada pelo prazer e, especialmente, não a dor de uma pessoa pelo prazer de outra pessoa. Em vez de maior felicidade para o maior número, dizer-se-ia mais modestamente reclamar o menor quinhão de sofrimento evitável para todos; e, mais, que o sofrimento inevitável — tal como a fome em épocas de inevitável carência de alimentos — seja distribuído tão igualmente quanto possível.) Acho que há certa espécie de analogia entre esta concepção da ética e a concepção da metodologia científica que defendi em minha obra Logik der Forschung. Será mais claro, no campo da ética, formularmos nossas exigências em forma negativa, isto é, reclamando a eliminação de sofrimentos, em vez da promoção de felicidade. Similarmente, é útil formular a tarefa do método científico como a eliminação das teorias falsas (dentre as várias tentativas apresentadas para prova), em vez do alcance de verdades estabelecidas.
3 — Um exemplo muito bom desta espécie de mecânica gradual, ou talvez da tecnologia gradual correspondente, está nos dois artigos de C. G. F. Simkin sobre “Reforma Orçamentária”, no Economic Record, da Austrália (1941, p. 192 sgs., e 1942, p. 16 sgs.). Satisfaz-me poder citar esses dois artigos, pois eles fazem consciente uso dos princípios metodológicos que defendo; mostram, assim, que tais princípios são úteis na prática da pesquisa tecnológica. Não sugiro que a mecânica gradual não possa ser ousada, ou que se deva limitar aos problemas “menores”. Mas acho que o grau de complicação com que podemos lidar é governado pelo grau de nossa experiência conquistada na prática sistemática e consciente da mecânica gradual.
4 — Esta concepção foi recentemente acentuada por F. A. von Hayek em vários artigos interessantes (cf. p. ex., seu “ A liberdade e o sistema econômico”, Public Policy Pamphlets, Chicago, 1939). O que chamo “mecânica utópica” coincide em grande parte, a meu ver, com o que Hayek chamaria “planificação centralizada” ou “coletivista”. O próprio Hayek recomenda o que denomina “ planificação para a liberdade”. Suponho que ele concordaria em que o caráter desta coincidisse com o da “mecânica gradual”. Poder-se-ia, creio, formular as objeções de Hayek ao planejamento coletivista mais ou menos assim: se tentarmos construir a sociedade de acordo com uma planta, verificaremos então que não poderemos incorporar à nossa planta a liberdade individual, ou, se o fizermos, que não a poderemos efetivar. A razão está em que o planejamento econômico centralizado elimina da vida econômica uma das mais importantes funções do indivíduo, a saber, sua função como escolhèdor do produto, como consumidor. Em outras palavras, a crítica de Hayek pertence à esfera da tecnologia social. Ele salienta certa impossibilidade tecnológica, isto é, a de traçar um plano para uma sociedade que a um tempo seja econômicamente centralizada e individualista.
Os leitores de The Road to Serfdom (1944) de Hayek podem sentir-se intrigados com esta nota, pois a atitude de Hayek nessa obra é tão clara que não deixa margem aos comentários um tanto vagos de minha nota. Deve-se levar em conta, porém, que essa nota foi impressa antes que se publicasse o livro de Hayek e, embora muitas das principais ideias deste já houvessem sido esboçadas em seus trabalhos anteriores, não estavam ainda tão explicitamente manifestadas como em The Road to Serfdom. E muitas ideias que agora naturalmente associamos ao nome de Hayek eram-me estranhas quando escrevi a nota.
A luz do que hoje sabemos sobre a posição de Hayek, meu sumário não me parece errado, embora, sem dúvida, seja uma avaliação incompleta de sua posição. As seguintes modificações talvez possam por as coisas no devido pé:
(a) O próprio Hayek não empregaria a expressão “ mecânica social” para qualquer atividade política que estivesse disposto a defender. Ele se opõe a essa expressão por estar associada a uma tendência geral que ele denominou “cientismo” — a crença ingênua de que os métodos das ciências naturais (ou antes, do que muita gente crê serem os métodos das ciências naturais) devem produzir resultados singularmente impressionantes no campo social (Cf. as duas séries de ai+igos de Hayek, Scientism and the Study of Society, Economica, IX-XI, 1942-44, e The Counter-Revolution of Science, ibid., VIII, 1941.)
Se, por “cientismo”, entendermos uma tendência a macaquear, no campo das ciências sociais, o que se supõe serem os métodos das ciências naturais, então o historicismo pode ser descrito como uma espécie de cientismo. Um argumento típico e influente do “cientismo” em favor do historicismo seria este, em resumo: “Podemos predizer echoses; por que não seríamos capazes de predizer revoluções?”; ou, de nodo mais trabalhado: “ A tarefa da ciência é predizer; assim, a tarefa das ciências sociais deverá ser a feitura de predições sociais, isto é, históricas.” Tentei refutar essa espécie de argumento (cf. minha Pobreza do Historicismo, Economica, 1944-45, esp. parte III, 1945, e “Predição e Profecia, e sua Significação para a Teoria “Social”, Library of the Xth International Congress of Philosophy, Amsterdão,1948); neste sentido, oponho-me ao cientismo.
Mas se por “cientismo” entendermos a concepção de que os métodos das ciências sociais são, em extensão bem considerável, os mesmos das ciências naturais, então sou obrigado a confessar-me réu de adesão ao “ cientismo”; na verdade, acredito que a similaridade entre as ciências sociais e as naturais pode mesmo ser usada para corrigir ideias errônea» a respeito das ciências naturais mostrando que estas são muito mais similares às ciências sociais do que geralmente se supõe.
Por essa razão é que continuei a usar o termo de Roscoe Pound “mecânica social”, no sentido de Roscoe Pound, o qual, tanto quanto posso ver, está livre daquele “cientismo” que, penso, deve ser repelido.
Posta de lado a terminologia, julgo ainda que as opiniões de Hayek podem ser interpretadas favoravelmente ao que chamo “mecânica gradual”. Por outro lado, Hayek deu uma formulação muito mais clara de suas opiniões do que o indicava o meu antigo esboço. A parte de sua concepção que corresponde ao que eu chamaria “ mecânica social” (no sentido de Pound) é sua sugestão de haver urgente necessidade, para uma sociedade livre, de reconstruir o que ele descreve como o seu “arcabouço legal”.
5 — Cf. nota 25 ao cap. 7.
6 — O problema de saber se um fim bom, ou não, justifica meios maus, parece surgir de casos tais como saber se se deve mentir a um doente a fim de tranquilizar-lhe o espírito, ou se se deveria deixar um povo na ignorância, a fim de torná-lo feliz, ou se alguém deveria começar longa e sangrenta guerra civil a fim de estabelecer um mundo de paz’ e beleza.
Em todos esses casos, a ação considerada consiste em produzir primeiro um resultado mais imediato (chamado “meios”), que se julga um mal, a fim de que um resultado secundário (chamado “fim”), que se julga um bem, possa ser produzido.
Penso que em todos esses casos surgem três espécies de indagações:
(a) Até onde estamos capacitados a admitir que os meios de fato conduzirão ao fim esperado? Gomo os meios são o resultado mais imediato, eles serão, na maioria dos casos, o resultado mais certo da ação considerada, e o fim, que é mais remoto, será menos certo.
A questão aqui suscitada é uma questão antes de fato que de avaliações morais. E á questão de saber se, efetivamente, a conexão causal admitida entre os meios e o fim pode merecer confiança; e pode-se dizer que, se a admitida conexão causal não se sustentar, o caso não era de meios e fins e, portanto, não deveria ser realmente considerado a tal título.
Isso pode ser verdade. Mas, na prática, o ponto aqui considerado contém o que talvez seja o mais importante aspecto moral, pois, embora a questão (se os meios considerados produzirão o fim considerado) seja uma questão de fato, nossa atitude para com essa questão suscita um dos problemas morais mais fundamentais: o problema de se devemos confiar, em tais casos, em nossa convicção de que tal conexão causal se sustente; ou, em ‘outras palavras, se devemos confiar, dogmaticamente, em teorias causais, ou se devemos adotar uma atitude cética para com elas, especialmente quando o resultado imediato de nossa ação, por si mesmo, for considerado um mal.
A questão talvez não seja tão importante no primeiro de nossos três exemplos, mas é importante nos outros dois. Certas pessoas podem sentir com muita certeza que as conexões causais nesses dois casos se sustentem; mas a conexão pode ser muito remota; e mesmo a certeza emocional de sua crença pode, em si, ser o resultado de uma tentativa para suprimir suas dúvidas. (O choque, em outras palavras, e entre o fanático e o racionalista no sentido socrático, o homem que procura conhecer suas limitações intelectuais.) A decisão será tanto mais importante quanto maior for o mal dos “meios”. Seja domo for, educar a si mesmo para adotar uma atitude de ceticismo em relação às teorias causais dos outros e de modéstia intelectual é, sem dúvida, um dos mais importantes deveres morais.
Admitamos, piorem, que a suposta conexão causal se mantenha, ou, em outras palavras, que haja uma situação em que adequadamente se possa falar de meios e fins. Teremos de distinguir, então, entre duas outras questões, (b) e (c).
(b) Admitindo que a relação causal se mantenha e que possamos estar razoavelmente certos dela, o problema se torna, principalmente, o de escolher to menor de dois males — o dos meios considerados e o que deverá surgir se não forem adotados esses meios. Em outras palavras, o melhor dos fins não justifica, como tal, os meios maus, mas a tentativa de evitar piores resultados pode justificar ações que por si mesmas introduzam maus resultados. (A maioria de nós não duvida de que seja certo amputar um membro de alguém para salvar-lhe a vida.)
Nesta conexão, pode-se tornar muito importante o fato de não sermos capazes de avaliar os males em questão. Certos marxistas, por exemplo (cf. nota 9 ao cap. 10) acreditam que muito menos sofrimento estaria envolvido numa violenta revolução social do que nos males crônicos inerentes ao que chamam “capitalismo”. Mas, mesmo supondo que essa revolução leve a um melhor estado de coisas, como podem eles avaliar os sofrimentos em um estado e no outro?
Aqui surge de novo uma questão de fato, e novamente é dever nosso não superestimar nosso conhecimento dos fatos. Mas, dado que os meios considerados, no cotejo, melhorarão a situação — teremos verificado se outros meios não obteriam melhores resultados a menor preço?
O mesmo exemplo, porém, suscita outra questão muito importante. Voltando a admitir que a soma total de sofrimentos sob o “ capitalismo” ultrapasse, se ele continuar por diversas gerações, o sofrimento da guerra civil — poderemos condenar uma geração a sofrer pior causa das gerações futuras? (Há uma grande diferença entre sacrificar-se alguém por causa de outros e entre sacrificar os outros — ou a si mesmo e aos outros — para algum fim.)
(c) O terceiro ponto de importância é que não devemos pensar que o chamado “ fim”, como resultado final, seja mais importante do que o resultado intermediário, os “meios”. Esta ideia, sugerida por sentenças tais como “está bem tudo quanto acaba bem”, é enganadora. Por exemplo, meios “maus”, tais como uma nova e poderosa arma usada na guerra para fins de vitória, podem, depois de realizado esse “ fim”, criar novas perturbações. Em outras palavras, mesmo quando algo possa ser corretamente descrito como meios para um fim, muitas vezes será mais do que isso. Produz resultados fora do fim em questão; e o que teremos de cotejar não são os (passados já presentes) meios contra (futuros) fins, mas os resultados totais, até onde possam ser previstos, de determinado curso de ação em relação aos de outro. Esses resultados se espalham sobre um período de tempo que inclui resultados intermediários; e o “fim” proposto não deve ser o último a considerar.
7 — Acredito que o paralelismo entre os problemas institucionais da paz civil e da paz internacional é importantíssimo. Qualquer organização internacional que tenha instituições legislativas, administrativas e judiciárias assim como um executivo armado que esteja preparado a agir deveria ser tão bem sucedida na sustentação da paz internacional como as instituições análogas o são dentro do estado. Mas parece-me importante não esperar mais do que isso. Temos sido capazes de reduzir o crime, dentro dos estados, a algo relativamente sem importância, mas não fomos capazes de expeli-lo inteiramente. Deveremos, portanto, por longo tempo no futuro, necessitar de uma força policial que esteja disposta a golpear e que algumas vezes golpeia. Da mesma forma, creio que deveremos estar preparados para a probabilidade de não podermos expelir o crime internacional. Se declararmos que nosso alvo é tornar a guerra impossível, de uma vez e para sempre, então podemos empreender demais, com o resultado .fatal de podermos dispor de uma força capacitada a golpear quando forem desiludidas essas esperanças. (O fracasso da Liga das Nações em agir contra os agressores, pelo menos no caso do ataque ao Manchukuo, foi amplamente devido ao sentimento geral de que a Liga se estabelecera a fim de acabar com todas as guerras e não de reprimi-las. Isso mostra que a propaganda contra todas as guerras se derrota por si mesma. Devemos por fim à anarquia internacional e estar dispostos a entrar em guerra contra qualquer crime internacional.) (Cf. esp. H. Mannheim, War and Crime, 1941; e A. D. Lindsay, “Guerra para por termo à Guerra”, em Backgromd and Issues, 1940.)
Mas é também importante buscar o ponto fraco na analogia entre a paz civil e a paz internacional, isto é, o ponto em que a analogia se rompe. No caso da paz civil, sustentada pelo estado, há o cidadão individual a ser protegido pelo estado. O cidadão é, por assim dizer, uma unidade “natural” ou átomo (embora haja certo elemento convencional mesmo nas condições de cidadania). De outro lado, os membros, ou unidades, ou átomos de nossa ordem internacional serão estados. Mas um estado nunca pode ser uma unidade “natural” como um cidadão; não há limites naturais para um estado. Os limites de um estado modificam-se e só podem ser definidos pela aplicação do princípio de um status quo; e como todo status quo deve referir-se a uma data arbitrariamente escolhida, a determinação das fronteiras de um estado é puramente convencional.
A tentativa de encontrar alguns limites “naturais” para os estados e, consequentemente, de encarar um estado como uma unidade “natural”, leva ao princípio do estado nacional e às ficções românticas do nacionalismo, racismo e tribalismo. Mas este princípio não é “natural” e a ideia de que existem unidades naturais como nações, ou grupos linguísticos ou raciais,, é inteiramente fictícia. Se algo podemos aprender da história, é aqui, pois, desde o alvorecer da história, os homens continuamente se misturaram, uniram-se, separaram-se e voltaram a misturar-se, e isso não pode ser desfeito, mesmo se fosse desejável.
Há um segundo ponto em que se rompe a analogia entre a paz civil e a internacional. O estado deve proteger o cidadão individual, suas unidades ou átomos; mas a organização internacional também deve, em última análise, proteger os indivíduos humanos, e não as suas unidades ou átomos, isto é, os estados ou nações.
A completa renúncia ao princípio do estado nacional (princípio que deve sua popularidade exclusivamente ao fato de apelar para os instintos tribais e de ser o mais barato e mais seguro meio pelo qual abre caminho um político que nada de melhor tem a oferecer) e o reconhecimento da necessidade de delimitação convencional de todos os estados, juntamente com maior visão de que os indivíduos humanos, e não os estados ou nações, devem ser a preocupação final até mesmo das organizações internacionais, ajudar-nos-ão a compreender com clareza e a superar as dificuldades oriundas da quebra de nossa analogia fundamental (Cf. também cap. 12, notas 51-54 e texto, e nota 2 ao cap. 13).
(2) Parece-me que a observação de que os indivíduos humanos devam ser reconhecidos como a principal preocupação não só das organizações internacionais, mas de toda política, internacional assim como “ nacional’’ ou paroquial, tem importantes aplicações. Devemos compreender que podemos tratar os indivíduos com justiça, mesmo quando decidimos derrubar a organização do poder de um estado agressivo (ou “nação”) a que esses indivíduos pertençam. É um preconceito amplamente acolhido o de que a destruição e controle do poder militar, político e mesmo econômico de um estado ou “nação” signifique a miséria ou subjugação de seus cidadãos individuais. Mas esse preconceito é tão infundado quanto perigoso.
É infundado, posto que uma organização internacional deve proteger os cidadãos do estado assim enfraquecido contra a exploração de sua fraqueza política e militar. O único dano ao cidadão individual que não pode ser evitado é o feito ao seu orgulho nacional; e se lembrarmos que ele era o cidadão de um estado agressor, então trata-se de um dano que de qualquer modo seria inevitável, sendo o importante debelar a agressão.
O preconceito de que não podemos distinguir entre o tratamento dado a um estado e o dado a seus cidadãos individuais é também muito perigoso, pois, quando chega o problema de lidar com um país agressor, ele necessariamente cria duas facções nos países vitoriosos, a saber, a facção dos que pedem tratamento duro e a dos que pedem tolerância. Em regra, ambas esquecem a possibilidade de tratar um estado duramente e, ao mesmo tempo, tolerantemente, a seus cidadãos.
Mas se esta possibilidade for posta de parte, então provavelmente sucederá o seguinte: Logo após a vitória, o estado agressor e seus cidadãos serão tratados com relativa dureza. Mas o estado, a organização do poder, não será tratado com a dureza razoável, devido a certa recusa a castigar indivíduos inocentes, isto é, devido á influência da facção indulgente, que, sem o pretender, estará indiretamente defendendo essa organização do poder. Desse modo, enquanto os cidadãos estiverem sendo tratados com rigor maior do que o merecido, o estado gozará da indulgência. Após algum tempo, entretanto, uma reação provavelmente ocorrerá nos países vitoriosos. As tendências igualitárias e humanitárias são de molde a fortalecer a facção da tolerância até que se inverta a política da dureza. Mas esse desenvolvimento não dará apenas uma plausível oportunidade para que o agressor faça nova agressão; também lhe fornecerá a arma da indignação moral de quem sofreu injustiça, ao passo que as nações vitoriosas podem afligir-se com a desaprovação dos que sentem que podem ter agido mal.
Este indesejabilíssimo desenvolvimento deve no fim levar a uma nova agressão. Mas pode ser evitado se — e apenas se — desde o princípio, uma clara distinção for feita entre o estado agressor (e os responsáveis por seus atos), de um lado, e os seus cidadãos, de outro. A dureza para com o agressor, e mesmo a destruição radical de seu aparelhamento de força, não produzirão essa reação moral dos sentimentos humanitários nos países vitoriosos, se ela for combinada com uma política de justiça para com os cidadãos individuais.
Mas será possível quebrantar o poder político de um estado sem ofender indiscriminadamente seus cidadãos? A fim de provar que isso é possível, formularei um exemplo de uma política que destrói o poder político e militar de um estado agressor sem violar os interesses de seus cidadãos individuais.
A orla do país agressor, incluindo seu litoral e suas principais (não todas) fontes de energia hidráulica, carvão e ferro, deve ser separada do estado e administrada como um território internacional, para a ele nunca mais voltar. Os portos, assim como as matérias primas, podem tornar-se acessíveis aos cidadãos do estado para suas atividades econômicas legítimas, sem lhes serem impostas quaisquer desvantagens econômicas, com a condição de que convidem comissões internacionais a controlar o uso adequado dessas facilidades. Qualquer uso que possa ajudar a construir novo potencial de guerra é proibido e, se houver suspeita de que as facilidades internacionalizadas e as matérias primas assim possam ser usadas, seu uso terá de ser paralisado imediatamente. Caberá, então à parte suspeita convidar para uma completa investigação, facilitando-a e oferecendo satisfatórias garantias de uso adequado de seus recursos.
Tal procedimento não eliminaria a possibilidade de novo ataque, mas forçaria o estado agressor a atacar os territórios internacionalizados, antes de construir novo poderio bélico. Assim, tal ataque seria sem perspectivas, desde que os outros países tivessem mantido e desenvolvido seu potencial de guerra. Em frente de tal situação, o antigo estado agressor seria forçado a mudar radicalmente de atitude e a adotar a da cooperação. Seria forçado a convidar ao controle internacional de sua indústria e a facilitar a investigação da autoridade internacional controladora (em vez de obstruí-la), porque somente tal atitude garantiria o uso das facilidades necessitadas por suas indústrias; e tal desenvolvimento teria todas as possibilidades de verificar-se sem qualquer maior interferência na política interna do estado.
O perigo de que a internacionalização daquelas facilidades pudesse ser mal utilizada com o propósito de explorar ou de humilhar a população do país derrotado pode ser defrontado por medidas legais internacionais que organizem tribunais de apelação, etc.
Este exemplo mostra que não é impossível tratar duramente um estado e benignamente os seus cidadãos.
(Deixei as partes (1) e (2) desta nota exatamente como foram escritas em 1942. Só na parte (3), que não é fundamental, fiz um acréscimo, após os primeiros dois parágrafos).
(3) Mas será científica essa focalização mecânica do problema da paz? Muitos contestarão, estou certo, de que uma atitude verdadeiramente científica em relação ao problema da paz e da guerra deve ser diferente. Dirão que devemos estudar primeiramente as causas da guerra. Devemos estudar as forças que levam à guerra e também aquelas que podem levar à paz. Recentemente proclamou-se, por exemplo que a “paz duradoura” só pode vir se considerarmos plenamente as forças dinâmicas subjacentes” da sociedade que podem produzir a guerra ou a paz. A fim de descobrir essas forças, deveremos, naturalmente, estudar história. Em outras palavras, devemos abordar o problema da paz por um método historicista e não por um método tecnológico. Proclama-se que é esse o único processo científico.
O historicista pode, com a ajuda da história, mostrar que as causas da guerra podem ser encontradas no choque dos interesses econômicos, ou no conflito das classes, ou no das ideologias — por exemplo, liberdade contra tirania — ou no choque das raças, nações, imperialismos, sistemas militaristas, etc.; ou no medo, na inveja, no desejo de tomar vingança, ou em todas essas coisas ao mesmo tempo e em muitas outras mais. E demonstrará, desse modo, que a tarefa de remover essas causas é extremamente difícil. E mostrará que não há base para se erguer uma organização internacional, enquanto não se removerem as causas da guerra, p. ex., as causas econômicas, etc.
Do mesmo modo, o psicologismo pode arguir que as causas da guerra devem ser procuradas na “natureza humana”, ou, mais especificamente, em sua belicosidade; e que o método de obter a paz deve consistir em abrir outras válvulas de escape a esses impulsos agressivos. (A leitura de histórias de terror tem sido sugerida com toda a seriedade — apesar do fato de que alguns de nossos últimos ditadores tinham predileção por elas.)
Não acho que esses métodos de tratar desse importante problema sejam muito promissores. E não creio, especialmente, no plausível argumento de que, para estabelecer a paz, devamos verificar a causa ou causas da guerra.
É claro que há casos em que o método de procurar as causas de algum mal e removê-las pode ser bem sucedido. Se sinto uma dor no pé, posso verificar que é causada por uma pedrinha e removê-la. Mas não devemos generalizar a partir daí. O método de remover pedrinhas nem mesmo chega a cobrir todos os casos de dor em meu pé. Em alguns de tais casos eu poderei não achar a causa; em outros, talvez não seja capaz de removê-la.
Em geral, o método de remover as causas de certo acontecimento indesejável só é aplicável quando conhecemos uma curta lista das condições necessárias (isto é, uma lista de condições tais que o fato em questão não se possa realizar senão quando ocorrer pelo menos uma das condições da lista, e quando todas essas condições puderem ser controladas, ou mais precisamente prevenidas. (Pode-se notar que as condições necessárias dificilmente são o que se descreve pela vaga palavra “causas”; são, antes, o que se costuma chamar “causas contribuintes” ; em regra, quando falamos de “causas” queremos dizer um conjunto de condições suficientes.) Mas não acho que possamos organizar tal lista de condições necessárias da guerra. Guerras têm sido deflagradas sob as mais variadas circunstâncias. As guerras não são simples fenômenos como, por exemplo, trovoadas. Não há razão para que, pelo fato de denominar como “guerras” uma vasta variedade de fenômenos, asseguremos que todas elas sejam “causadas” do mesmo modo.
Tudo isso mostra que o processo aparentemente científico, sem preconceitos e convincente, do estudo das “causas da guerra”, é, na realidade, não só pré-conceituoso como susceptível de obstruir o caminho para uma verdadeira solução; de fato, é pseudo-científico.
Até onde iríamos se, em vez de organizar leis e uma força policial, tratássemos “cientificamente” o problema da criminalidade, isto é, tentando descobrir quais são precisamente as causas do crime? Não quero dizer que aqui ou ali não possamos descobrir importantes fatores que contribuem para o crime ou a guerra e que não possamos, desse modo, evitar muito dano; mas isso bem pode ser feito depois que tenhamos o crime sob controle, isto é, depois de havermos organizado nossa força policial. Por outro lado, o estudo das “causas” econômicas, psicológicas, hereditárias, morais, etc., do crime e a tentativa de remover essas causas dificilmente nos levaria a descobrir que uma força policial (que não remove as causas) pode colocar o crime sob controle. Pondo inteiramente de parte a vaguidão de expressões tais como “a causa da guerra”, o processo todo é o que não existe de científico. É como se alguém insistisse em que não é científico usar um sobretudo quando faz frio, pois antes deveríamos estudar as causas do tempo frio e removê-las. Ou, talvez, que a lubrificação é anti-científica, porque antes deveríamos descobrir as causas da fricção e removê-las. Este último exemplo mostra, creio eu, o absurdo de tal crítica aparentemente científica, pois, justamente como a lubrificação por certo reduz as “ causas” da fricção, assim também uma força de polícia internacional (ou outra corporação armada dessa espécie) pode reduzir uma importante “ causa’’ de guerra, a saber, a esperança de “ sair-se bem com ela.”
8 — Tentei mostrar isto em minha Logik der Forschung. Acredito, de conformidade com a metodologia esboçada, que a sistemática mecânica gradual nos ajudará a construir uma tecnologia social empírica, alcançada pelo método de erros e acertos. Acho que apenas desse modo podemos começar a edificar uma ciência social empírica. O fato de que tal ciência social não chegue a existir até agora e de que o método histórico seja incapaz de impulsioná-la muito é um dos mais fortes argumentos contra a possibilidade da mecânica social utópica ou em larga escala. Ver também minha Pobreza do Historicismo (Econômica, 1944-45).
9 — Para uma formulação muito semelhante, ver a conferência de John Carruthers, “Socialismo e Radicalismo” (publicada em folheto pela Hammersmith Socialist Society, Londres, 1894). Argumenta ele, de modo típico, contra a reforma gradual: “Toda medida paliativa traz consigo seu próprio mal e o mal é geralmente maior do que aquilo que pretendia curar. A menos que nos decidamos a ter vestes completamente novas, devemos preparar-nos para andar em farrapos, pois o remendo não melhorará a roupa velha.” (Deve-se notar que Carruthers entende o “radicalismo” que usou no título de sua conferência quase como o oposto do sentido que damos à palavra. Carruthers defende um programa intransigente de “limpeza de tela” e ataca o “radicalismo”, isto é o programa de reformas “progressivas” propugnado pelos “liberais radicais”. Este uso do termo radical é, por certo, mais comum do que o meu; não obstante, a palavra significa originariamente “indo á raiz” — do mal, por exemplo, ou “erradicando o mal”; e não há substituto apropriado para ela.)
Sobre as citações do parágrafo que se segue no texto (o “original divino” que os político-artista deve “copiar”) ver Rep., 500e/501a. Ver também notas 25 e 26 ao cap. 8.
Na Teoria das Formas de Platão existem, creio, elementos que são da maior importância para a compreensão e para a teoria da arte. Esse aspecto do platonismo é tratado por J. A. Stewart em seu livro Plato’s Doctrine of Ideas (1909), 128 sgs. Creio, porém, que ele acentua demais o objeto da pura contemplação (em contraposição àquele “modelo” que o artista não só visualiza mas trabalha para reproduzir em sua tela).
10 — Rep., 520c. — Para a “ Arte Real”, ver especialmente o Estadista; cf. nota 57 (2) ao cap. 8.
11 — Tem-se dito muitas vezes que a ética é apenas uma parte da
estética, pois as questões éticas, em última análise, são questões de gosto. (Çf. p. ex., G. E. G. Catlin, The Science and Methods of Politics, 315 sgs.) Se, com isso, apenas se quer dizer que os problemas éticos não podem ser resolvidos pelos métodos racionais da ciência, então concordo. Mas não devemos esquecer que há vasta diferença entre “ problemas de gosto” morais e problemas de gosto em estética. Se me desgosta um romance, uma peça musical ou talvez uma pintura, não preciso lê-la, nem ouvi-la, nem olhar para ela. Os problemas estéticos (com a possível exceção da arquitetura) são amplamente de caráter privado, mas os problemas éticos dizem respeito aos homens e a suas vidas. Nessa extensão, há entre eles diferença fundamental.
12 — Para esta citação e as precedentes cf. Rep., S00d-S01a (grifos meus) ; cf. também notas 29 (fim) ao cap. 4 e 25, 26, 27, 38 (esp. 25 e 38), cap. 8.
As duas citações do parágrafo que se segue são de Rep., 541a e do Estadista, 293c-e.
É interessante (por ser, acredito, característico da histeria do radicalismo romântico com sua ambiciosa arrogância de semelhança divina — hubris) ver que ambas as passagens da Rep., — a limpeza da tela, de 500d sgs., e o expurgo, de 541a — são precedidas por uma referência á semelhança divina dos filósofos; cf. 500c-d, “O filósofo torna-se… semelhante a um deus”, e 540c-d (cf. nota 37 ao cap. 8 e texto), “E o Estado erigirá monumentos, a expensas do público, para homenageá- los; e sacrifícios lhes serão oferecidos, como a semi-deuses… ou pelo pelo menos como homens abençoados pela graça e semelhantes a um deus.”
É também interessante, pelas mesmas razões, ver que a primeira dessas passagens é precedida pela passagem (498d e sg; cf. nota 59 ao cap. 8) em que Platão expressa sua esperança de que os filósofos se possam tornar, como governantes, aceitáveis até para os “muitos”.
Relativamente ao termo “liquidar”, pode-se citar a seguinte explosão moderna de radicalismo: “Não é evidente que, se tivermos de chegar ao socialismo — um socialismo real e permanente — toda oposição fundamental deve ser “ liquidada” (isto é, tornada politicamente inativa pelo corte das franquias e, se necessário, pela prisão)?” Esta notável pergunta retórica vem impressa na pag. 18 do não menos notável folheto (Christians in the Class Struggle”, por Gilbert Cope, com um Prefácio do Bispo de Bradford (1942; quanto ao historicismo desse folheto, ver nota 4 ao cap. 1). O Bispo, em seu Prefácio, denuncia o “nosso atual sistema econômico” como “imoral e anti-Cristão” e diz que “quando algo mostra ser de modo tão claro obra do demônio… nada pode impedir um ministro da Igreja de trabalhar por sua destruição”. Consequentemente, recomenda “este folheto como uma análise lúcida e penetrante.”
Mais algumas sentenças podem ser citadas do folheto. “Dois partidos podem assegurar uma democracia parcial, mas uma democracia completa só pode ser estabelecida por um só partido…” (p. 17). — “No período de transição… os trabalhadores… devem ser conduzidos e organizados por um só partido, que não tolerará a existência de qualquer outro partido fundamentalmente oposto a ele… (p. 19). — “A liberdade, no estado socialista, significa que a ninguém se permite atacar o princípio da propriedade comum, mas que todos são encorajados a trabalhar para sua mais efetiva realização e funcionamento… A importante questão de como deverá ser anulada a oposição depende dos métodos utilizados pela própria oposição”, (p. 18).
O mais interessante de todos é, talvez, o seguinte argumento (também encontrado na pag. 18). que merece ser cuidadosamente lido: “Por que é possível haver um partido socialista num país capitalista, se não é possível haver um partido capitalista num estado socialista? A resposta é simplesmente que este é um movimento que envolve todas as forças produtivas de uma grande maioria contra uma pequena minoria, ao passo que aquele é uma tentativa de uma minoria para restaurar sua posição de poder e privilégio pela renovada exploração da maioria”. Em outras palavras, uma “ pequena minoria” governante pode dar-se ao luxo de ser tolerante, ao passo que uma “grande maioria” não pode permitir-se tolerar uma “pequena minoria”. Esta simples resposta é em verdade um modelo de “lúcida e penetrante análise”, como diz o Bispo.
13 — Cf. para este desenvolvimento também o cap. 13, esp. nota 7 e texto.
14 — Parece que o romantismo, na literatura como na filosofia, ‘ pode ser rastreado até Platão. É bem sabido que Rousseau foi diretamente influenciado por ele (cf. nota 1 ao cap. 6). Rousseau conhecia o Estadista de Platão (cf. o Contrato Social, livro II, cap. VII e livro III, cap. VI) e seu louvor aos primitivos pastores montanheses. Mas, á parte dessa influência diretâ, é provável que Rousseau tirasse seu romantismo pastoral e seu amor ao primitivo indiretamente de Platão, pois foi certamente influenciado pela Renascença Italiana, que redes- cobriu Platão e especialmente seu naturalismo e seus sonhos de uma sociedade perfeita de primitivos pastores (cf. notas 11 (3) e 32 ao cap. 4 e nota 1 ao cap. 6). — É interessante notar que Voltaire reconheceu imediatamente os perigos do romântico obscurantismo de Rousseau, assim como Kant não foi impedido por sua admiração a Rousseau de reconhecer esse perigo, ao defrontar-se com ele nas “Ideias” de Herder (cf. também nota 56 ao cap. 12 e texto).
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